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O racismo não é um problema

Izadora Silva Pimenta 9 de julho de 2024

Todas as palavras neste texto serão compreendidas porque, antes de lê-lo, você aprendeu os significados delas. Adquirimos esses significados ao longo da vida. Aprendemos significados através do que ouvimos e de nossas experiências pessoais. Você deve saber que, quando eu ouvi os Beatles cantando “the sun is up, the sky is blue” no Brasil, meu país natal, isso não teve o mesmo impacto que tem quando eu enfrento um inverno alemão.

Aprendemos significados e os compartilhamos. É um aprendizado coletivo. Como sociedade, negociamos significados e construímos esses significados ao longo do tempo. Portanto, não seria uma surpresa se eu dissesse que, quando eu cheguei a esse mundo, já existiam significados esperando por mim. Significados esperando para me definir. “Bem-vinda, pessoa racializada!”.

A ideologia dominante do racismo sistêmico já estava presente durante meu nascimento, evidente nos detalhes do meu cabelo crespo e nas esperanças dos membros da família de que, devido à pele clara do meu pai, minha pele poderia ser mais clara do que a da minha mãe, para que eu sofresse menos. Esses são os significados que eles aprenderam e compartilharam. Esses são os significados que me fizeram perceber que sou uma pessoa racializada e, mais do que isso, que eu não tinha controle sobre o que a narrativa de ser uma pessoa racializada realmente significava. Eu apenas tinha que lidar com as consequências.

Eu aprendi muito com bell hooks. Eu aprendi que, para aliviar a nossa dor, nós temos que nos munir da teoria. Porque há um momento em que as pessoas racializadas percebem que existe sempre essa dor. Uma dor de que nós nunca poderemos controlar as nossas imagens, como nos vemos e como somos vistos pelos outros. Essa dor de, durante uma vida toda, ouvir esses significados. Por muitas vezes, inclusive, repetir esses significados. Me diminuir diante dos outros. Me posicionando enquanto uma pessoa inferior e escrevendo palavras que são incompatíveis com a minha experiência no mundo.

Mas quando a gente toma conta da teoria, a gente também toma conta daquilo que não foi dito sobre a gente. E a gente começa a contar a nossa história. Nos últimos anos, pensar sobre a construção de significados e sua conexão com ideologias dominantes me levou a investigar esse fenômeno nos últimos anos. Muitas pesquisas lidam com a identificação do racismo no contexto, mas eu quis ir além – eu gostaria de entender como nós reconhecemos o racismo, como esse tema é colocado na sociedade e quais são os significados que estamos aprendendo sobre racismo. Afinal: quem domina a narrativa do racismo?

Racismo não é um problema

Um dia antes de defender a minha tese de doutorado, Vini Jr enfrentava mais uma situação de racismo no Real Madrid. Na minha banca, o caso foi trazido à tona. Todas as vezes em que eu me posiciono enquanto uma pesquisadora que investiga o racismo no futebol direcionado a jogadores homens e negros, muitas respostas são esperadas. Afinal, como nós podemos combater o problema do racismo no futebol?

Eu começo dizendo que racismo não é um problema. Racismo é uma consequência. Racismo é uma consequência de um conceito inventado – raça – que traz consequências reais para a vida de quem sofre os significados atrelados a esse conceito. Racismo, portanto, não é um problema. Racismo é uma perpetuação de uma hierarquia social. Mais uma vez invocando bell hooks, racismo, com todas as suas interseccionalidades, é um produto do nosso verdadeiro problema: uma estrutura de uma sociedade branca, capitalista, hetero e patriarcal.

Qualquer pessoa que participe de uma sociedade ou ambiente racista internaliza esses significados, navegando maneiras de confrontá-los ou perpetuá-los diariamente, com impactos genuínos nas identidades e relações sociais. Neste modelo de sociedade, não se nasce preto ou branco, mas se aprende como incorporar esses papéis, juntamente com todos os significados e implicações associados.

No contexto contemporâneo, ser negro é sempre um produto de uma ideologia dominante que considera o mundo orientado pelo branco como o padrão. Simultaneamente, enquanto o conceito de raça está em jogo, os indivíduos racializados são linguisticamente lançados como “os outros”. O racismo serve como uma estratégia de sobrevivência para esse poder sistêmico, dominando a linguagem e determinando o que a linguagem expressa e o que as linguagens permitem ou negam. Determina quem lidera, quem segue e quem é excluído da pista de dança. Mais do que a dor infligida pelos outros, o racismo é sobre a falta de poder para controlar as próprias narrativas.

racismo
Fonte: Foto von RF._.studio: https://www.pexels.com/de-de/foto/feld-gras-gesichtslos-sport-3886235/

Como o racismo no futebol está sendo relatado?

Quando decidi explorar as representações do racismo no jornalismo de hard news, escolher o futebol como ponto focal para esta pesquisa foi uma decisão natural. Futebol e mídia têm sido interligados desde sua popularização. Mas o futebol, como mercadoria, precisa ser comercializado. Consequentemente, já é esperado que ele não seja associado com questões que são moralmente ruins perante a sociedade – como o racismo.

Mas nós já sabemos de uma coisa: o microcosmo do futebol reflete a estrutura vigente na nossa sociedade. Não são as pessoas negras e racializadas – e suas interseccionalidades – que estão presentes na tomada de decisão. O futebol contribui ativamente para produzir, reproduzir e sustentar o modelo da nossa sociedade. Portanto, isso me levou a pensar: como estamos falando sobre combater o racismo no futebol?

Depois de analisar um corpus composto por notícias publicadas no Brasil e na Inglaterra, eu entendi que o racismo no futebol é visto como, antes de tudo, um problema para o futebol. Os discursos midiáticos estão repletos de pessoas que querem ajudar a combater o problema e utilizar recursos para aliviar a culpa. No privilégio do poder, elas reforçam quem somos todos iguais – o que chamamos de daltonismo racial. Isso cria uma fantasia na qual o racismo é visto como um problema individual, desviando a responsabilidade dos arranjos institucionais. O racismo se torna algo feito pelos outros. Esses significados muitas vezes surgem inconscientemente, decorrentes de padrões sociais aprendidos.

Apresentando-se como indivíduos que veem todos como iguais, eles podem se absolver da responsabilidade moral associada ao racismo. Os jogadores negros também sofrem com algumas expectativas comportamentais. A experiência de ser negro dentro do futebol é limitada: eles devem se comportar de maneira impecável ou protestar de uma maneira muito educada para receber elogios.

Torcedores racistas são rotulados como uma “desgraça para o futebol”, e indivíduos racistas são considerados como aqueles que destroem o futebol. Simultaneamente, um jogador de futebol que desvia a atenção do produto “futebol” para abordar o racismo pode ser visto como aquele que está causando problemas na hora errada. Existe uma forma e lugar. Ditado por aqueles que estão no poder. Mas não existe espaço para a verdadeira experiência do racismo. Não existe espaço para entender que, aquilo que estamos fazendo enquanto sociedade, precisa ser mudado.

Tudo é expresso exclusivamente da perspectiva de proteger o futebol a qualquer custo, muitas vezes com pouca ou nenhuma consideração pelas experiências dos negros com o esporte.

Linguagem = poder

Linguagem é poder. Viver em sociedade significa ser consumido e influenciado por ideologias. As ideologias representam nosso aprendizado ao longo da vida sobre as coisas. Portanto, não é surpreendente que em uma sociedade branca, capitalista, hetero e patriarcal, o principal discurso sobre a luta contra o racismo nada tenha a ver com a verdadeira experiência do racismo. A luta contra o racismo na mídia ainda está desatualizada, baseada em suposições que o individualizam, ao invés de reconhecer o racismo como produto de uma estrutura.

Quando eu realizei esse trabalho, também pude entender melhor a minha perspectiva e a minha experiência com o racismo na sociedade. Aprendi que minha voz não é ouvida. Aprendi que tudo o que o racismo significa para mim não é o que significa para outras pessoas que não são afetadas por ele. Eu vejo cor por toda parte. Eu escrevo esse texto logo depois de perceber que eu era a única pessoa negra visitando a Galeria Uffizi em Florença – e depois passar o dia contando quantas outras pessoas negras além de mim eu via turistando (e não trabalhando) pela cidade e chegar ao número de sete pessoas.

O racismo não é um problema. A estrutura da nossa sociedade é um problema.

Tese completa (em inglês): Racism in football: patterns in media discourse

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Izadora Silva Pimenta

Doutora em Digital Linguistics (Technische Universität Darmstadt, 2023). Mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2019) e bacharela em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2013). https://doraindiscourse.de

Como citar

PIMENTA, Izadora Silva. O racismo não é um problema. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 9, 2024.
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