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O torcedor diante da mercantilização do futebol, dois casos extremos: FC United of Manchester e SV Áustria Salzburg

Luis Bouissou 14 de junho de 2024

O futebol, como nós conhecemos, surgiu com caráter lúdico. As suas características centrais eram o lazer, a diversão, o ócio e a criação de laços de pertencimento entre os indivíduos (ELIAS; DUNNING, 1995). Especialmente nas últimas décadas, o esporte passou a movimentar enormes cifras, segundo o presidente da FIFA, Gianni Infantino, são movimentados cerca de US$ 286 bilhões anualmente. Assim, o futebol perdeu, pelo menos parcialmente, o seu caráter lúdico, que cedeu lugar a uma lógica mercantilista.

Há diversas formas de interação entre o torcedor e o clube, para Charles Critcher (1979), há uma relação de “membros”, mais enraizada, visceral e baseada na reciprocidade; uma relação de “clientes”, de caráter instrumental, capaz de quebrar ou enfraquecer caso as exigências do comprador não sejam atendidas; e uma relação de “consumidores”, mais superficial ainda e voltada para apreciação e consumo do espetáculo, sem maiores envolvimentos afetivos.

Neste contexto de mercantilização do futebol, Irlan Santos (2021) fala da “empresarização” dos clubes e da “clientelização” do torcedor, que a meu ver andam de mãos dadas: há um estímulo recíproco para uma relação orientada pelo consumo. O torcedor “membro” perde a sua relevância diante da demanda pela formação de um maior público “consumidor” do espetáculo, que por sua vez financia este mercado. O processo de “clientelização”, a grosso modo, busca também a formação de um imenso público consumidor do futebol de forma expansiva, sem amarras sentimentais a uma única agremiação, disposto a consumir todo e qualquer produto relacionado a esse mercado (Santos, 2021). Ainda, esta não é a única faceta do processo de “clientelização” do torcedor, outras são: a busca dos clubes por atrair um público de maior poder aquisitivo aos seus jogos, e a exploração da paixão do torcedor, isto é, é colocado que a forma que o torcedor deve demonstrar a sua paixão ao clube é consumindo. Além disso, Damo (1998) fala sobre o “pertencimento clubístico”, que designa uma modalidade de vínculo intensa, duradoura e exclusiva de relação entre torcedores e clubes, e mesmo torcedores entre si, caracterizado por traços mais profundos e uma relação ativa do torcer.

Então, é de se pensar que diante dos padrões impostos pelo processo de mercantilização do futebol, certos torcedores, insatisfeitos com tais padrões, tiveram reações às mudanças geradas por este processo: protestos, transgressão de regras e até a criação de novos clubes de futebol. As reações dos torcedores, e as formas com que eles se mobilizam diante, por exemplo, da mercantilização do futebol vem sendo estudada e pesquisada por diversos autores, dentre eles Numerato (2018), Cleland (et al, 2018), Kennedy (2013) e Santos (2021), o último chamou o fenômeno de “ativismos torcedores”.

Em 2003, Malcolm Glazer, dono do atual campeão do Super Bowl, o Tampa Bay Buccaneers, comprou 2,9% das ações do Manchester United. Com o passar dos anos, o empresário norte-americano comprou mais fatias do clube inglês, e em 2005, já tinha controle total do clube. No mesmo ano, na final da FA Cup, um grupo de torcedores protestou contra a forma com que Glazer havia comprado o clube, e ainda, no início da temporada 2005/2006, o novo dono foi recepcionado no Old Trafford sob fortes protestos, e teve que sair do estádio, para a sua própria segurança, dentro de uma van da polícia.

A forma com que o novo dono dirigia o Manchester United afastou parte dos torcedores de tal maneira que um novo clube foi criado: o FC United of Manchester, que disputa a sétima divisão inglesa. Segundo o portal do novo clube de Manchester, a “invasão americana” foi o estopim para a sua criação, e ainda: “o roubo da instituição de Manchester, tirado a força da sua população, foi o topo de uma pirâmide de destruição, com mudanças nos horários das partidas para o benefício da televisão, o estádio sem alma cheio de novos torcedores que preferem sentar-se e assistir, seguranças “mão-pesada”, e ingressos com preços abusivos sustentando tudo”.

FC United
Broadhurst Park, estádio do FC United. Fonte: Wikipedia

Quando questionados por que criaram um novo clube, e não apenas começaram a torcer para outro, a resposta foi que queriam permanecer juntos, cantar músicas do United e trazer de volta as coisas boas do passado. O FC United of Manchester é, então, um clube democrático e sem fins lucrativos criado por torcedores do Manchester United.

Paralelamente, em 2005, a empresa de bebidas energéticas “Red Bull” comprou o clube austríaco, SV Austria Salzburg. Porém, a compra do clube não foi apenas uma mudança de donos, mas sim, uma mudança radical de identidade, tudo mudou: o nome, que passou a ser Red Bull Salzburg, o nome do estádio, o escudo e, por fim, as cores. Na realidade, um novo clube foi fundado, o que foi comprado foi a licença para jogar a primeira divisão do campeonato austríaco. Os torcedores protestaram, sem sucesso, contra as mudanças feitas, e acabaram se encontrando sem clube para torcer; a solução detectada foi refundar o antigo clube, com o mesmo nome e as mesmas cores; o SV Austria Salzburg recomeçou as suas atividades na última divisão austríaca.

Austria Salzburg
Torcida do Austria Salzburg. Fonte: Wikipedia

Em 2023, 18 anos depois da criação do Red Bull Salzburg e do recomeço do SV Austria Salzburg, as duas equipes se enfrentaram em um jogo válido pela Copa da Áustria. Nestes 18 anos, a equipe da Red Bull conquistou 14 campeonatos austríacos e 9 copas austríacas, enquanto o Austria Salzburg se encontra na terceira divisão. O Red Bull Salzburg ganhou o jogo por 4 a 0, mas o que marcou a partida foi a festa da torcida do SV Austria Salzburg, com um mosaico representando Mozart, músico austríaco, batendo com um violino em um touro vermelho. Além disso, a torcida entoou cantos como “vocês podem ter dinheiro, mas jamais terão a nossa honra” (PELEJA, 2023).

Então, a mercantilização do futebol, que ascendeu nas últimas décadas, gera reações diversas dos torcedores, incluindo resistência e protestos contra a perda de direitos e contra mudanças radicais na identidade dos clubes. Em casos mais radicais, como o do FC United of Manchester e o do SV Austria Salzburg, os torcedores se mobilizaram para fundar novos clubes, com os quais, há um sentimento de pertencimento clubístico. Também, é importante ressaltar que o futebol é complexo, e campo de diversos atores que têm os mais variados sentimentos e perspectivas sobre a modalidade. Logo, embora dominante, a lógica mercantilista não é a única no futebol, e os casos dos clubes de Manchester e de Salzburgo demonstram isso.

Referências bibliográficas

MOREIRA, A. Futebol movimenta o equivalente ao PIB da Finlândia, diz presidente da Fifa. Valor Econômico. São Paulo, 27/09/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/09/27/futebol-movimenta-o-equivalente-ao-pib-d a-finlandia-diz-presidente-da-fifa.ghtml.

GONÇALVES, J.; CARVALHO, C. A mercantilização do futebol brasileiro: instrumentos, avanços e resistências. Cadernos EBAPE. BR, v. 4, n° 2, jun. 2006.

Santos, I. S. Futebol-negócio e ativismos torcedores: notas para um estudo da política em clubes da Europa e América do Sul. Recorde. Rio de Janeiro, v. 14, n° 1, jan./jun. 2021.

Santos, I. S. Mercantilização do futebol e movimentos de resistência dos torcedores: histórico, abordagens e experiências brasileiras. Esporte e Sociedade. Rio de Janeiro, v. 11, n° 27, mar. 2016.

SANSOM, D. The Glazers at Manchester United: The story of their turbulent tenure so far. Sky Sports. Reino Unido, 01/11/2023. 

History. FC United of Manchester. Disponível em: https://fc-utd.co.uk/history

FLANAGAN, M. Clash of Tradition and Innovation: SV Austria Salzburg vs Red Bull Salzburg. Sports Gazette. Disponível em: https://sportsgazette.co.uk/clash-of-tradition-and-innovation-sv-austria-salzburg-vs-red-bull-s alzburg/.

PELEJA (@PELEJA). 2023. “Austria Salzburg e Red Bull Salzburg protagonizaram um encontro histórico”. X, 27 de setembro de 2023, 10:10 a.m. https://x.com/PELEJA/status/1707019999775215925.

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Como citar

BOUISSOU, Luis. O torcedor diante da mercantilização do futebol, dois casos extremos: FC United of Manchester e SV Áustria Salzburg. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 14, 2024.
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