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Partidazos agônicos entre Peru e Argentina

Fabio Perina 17 de novembro de 2020

Ao se cruzar a história futebolística com a história social do Peru se vê que o drama está presentes em vários momentos. A começar pela tragédia do Estadio Nacional de Lima, de 1964. Quando Peru e Argentina disputavam o torneio pré-olímpico. Um batismo de fogo aos partidazos agônicos posteriores. O lance capital que detonou uma situação sem controle foi um gol anulado dos peruanos seguido de invasões de campo pela torcida local. Uma visão isolada nesses primeiros atos produziu uma condenação “extra-jurídica” a dois personagens como bodes expiatórios: o árbitro uruguaio Pazos pela anulação e uma liderança torcedora conhecida como ‘Negro Bomba’ pela invasão. No entanto, um total de mais de 300 mortes em apenas poucas horas teve como acontecimento determinante a decisão irresponsável da polícia peruana em trancar os portões e sufocar a multidão pisoteada com muito gás lacrimogênio! Evidente que ao saírem do estádio a desordem dos torcedores teve como principais alvos de vandalismo as instalações da polícia e os prédios públicos. Após o tumulto o presidente reformista Belaúnde Terry decretou 30 dias de estado de emergência. (A maior tragédia já ocorrida em um contexto de futebol não foi a mais conhecida do mundo, já que os casos de estádios europeus no final dos anos 80 também com notável incompetência dos organizadores da partida coincidiram com ampla midiatização do hooliganismo).

Sou partidário de um posicionamento da Sociologia do Esporte que critica a hipótese que apenas a um árbitro ou apenas a um torcedor possa ser creditada tamanha responsabilidade somente pelo frágil argumento de “incitação à violência” como se isso contagiasse mais do que um vírus. Parece-me ser muito mais sólida ver como causa imediata a incompetência dos agentes de segurança e como causa nem tão imediata as tensões que se acumularam fora dos estádios, porém encontraram sua canalização dentro dele. Ao longo dos anos 60, o Peru foi atravessado por uma conjuntura explosiva: urbanização acelerada, movimentos camponeses e guerrilheiros no campo (com a expectativa de ‘incendiar’ a Cordilheira dos Andes ao transformá-la em uma imensa Sierra Maestra como em Cuba) e um golpe militar ‘provisório’ em 62 e outro ‘revolucionário’ em 68. O que reforça a hipótese que as recém adquiridas bombas de gás lacrimogênio foram usadas no estádio Nacional como um ensaio contra os protestos sociais que se agravaram na época.

Foto: Reprodução

Infelizmente quis um capricho do destino que apenas 4 anos depois houvesse na Argentina algo similar, conhecida como tragédia da Puerta 12. Em 68, em um River-Boca no Monumental de Nuñez. Até que na arquibancada visitante se recusou a abrir os portões e liberar a saída causando um esmagamento em massa de 71 mortos. Infelizmente houve o arquivamento do caso sem que apurar culpados diante do problema de contar como única fonte documental a dos policiais e, sobretudo, ter ocorrido durante a ditadura de Ongania. Um regime que procurou relegar a política a um calabouço e em seu lugar deixar apenas soluções técnicas e corporativas. Como um produto de uma radicalização na visão dos militares em que não bastaria tutelarem a ordem mas refunda-la sob marcos autoritários—como única forma de bloquear o peronismo nas massas e nas guerrilhas. Em suma, casos assim mostram que uma tragédia pontual em um estádio é a demonstração das mazelas estruturais do terceiro mundo.

Algum alento no final dos anos 60 veio com o futebol diante da épica classificação dos peruanos nas Eliminatórias em plena Bombonera com um 2 a 2 que deixou de fora os argentinos, em 69. Gols de Albrecht e Rendo para os argentinos e dois de Ramirez para os peruanos. A seleção peruana, treinada pelo craque brasileiro Didi, fez uma honrosa campanha na Copa do Mundo do México em 70. Perdendo para a seleção canarinho mas logo depois tendo sua revanche na semifinal da Copa América de 75 com a com grande vitória por 3 a 1 no Mineirão. Foi a arrancada para o seu terceiro e ultimo titulo continental em uma final alternativa com a surpreendente Colômbia. A consagração de sua melhor geração com craques como Teófilo Cubillas, Cueto, Sotil, Gallardo e Oblitas.

O último ato do auge da seleção peruana foi na Copa do Mundo da Argentina em 78. Uma partida que nessa lista se foi a menos agônica certamente foi a mais polêmica. Já eliminada na segunda fase, ela foi o fiel da balança ao decidir a disputa da vaga à final entre argentinos e brasileiros. A partida no estádio Gigante de Arroyito, em Rosário, contra os donos da casa, é até hoje uma das mais misteriosas da história do futebol, pois a derrota por 6 a 0 levantou suspeitas de suborno ou de ameaça influenciando o resultado. Nada mais do que isso até aqui: suspeitas. 2 gols de Kempes, 2 de Luque, 1 de Tarantini e 1 de Houseman. Mesmo gostando de bons ‘causos’ em mesa de bar, refuto as narrativas que sumariamente desprezam o futebol por conta de indícios de manipulação sem provas convincentes. Afinal no inicio de partida o Peru teve uma bola na trave, o que derrubaria uma teoria mirabolante como essa como se fosse a maior certeza do mundo. Assim como refuto quem despreza o título argentino por conta desse episódio mal esclarecido como se o treinador Menotti e os jogadores fossem culpados. Para esses o choro é livre! (Ora, a seletividade das narrativas é tão grande que poucos sabem que nos camarotes daquele Mundial havia um convidado de honra totalmente aleatório ao futebol e até suspeito de seus interesses imperialistas: o chanceler estadunidense, Henry Kissinger, quem 5 anos antes dera a carta branca ao golpe militar chileno.

Assim como esses entusiastas das conspirações nunca sabem explicar como que nunca foi “manipulado” pelo brasileiro João Havelange enquanto presidente da FIFA para que o Brasil saísse de seu jejum de mais de 20 anos sem vencer Copa do Mundo enquanto a Argentina venceu duas!). Assim como muitos desavisados tendem a concluir que houve uma colaboração entre as juntas militares de ambos os países, porém não consideram que cada regime estava em fases diferentes e para sentidos diferentes: o declínio da revolução nacional no Peru e a ascensão do processo de reorganização nacional na Argentina como uma laboratório neoliberal quase tão violento quanto o caso chileno.

Argentina de 1978. Foto: Wikipédia

Após uma frustrante Copa do Mundo da Espanha em 82, o Peru esteve prestes a retornar ao México em 86. Estavam vencendo a Argentina no Monumental de Nuñez por 2 a 1, porém nos minutos finais um lançamento na área encontrou o zagueiro Passarela que com categoria dominou no peito e chutou. Mas foi de Gareca o último toque em cima da linha para confirmar o sofrido empate na conta certa para o passaporte argentino para o México de onde voltou com a taça— por ironia Gareca não seguiu como parte do plantel de Bilardo. Essa sofrida eliminação se alargou ao condenar o futebol peruano a décadas de decadência diante de seguidas ausências em Copas do Mundo por sua seleção. Ambos países estavam em 85 esperançosos com o retorno da democracia e elegeram programas populares (porém quando em governo saíram fracassados): Alan Garcia no Peru e Raúl Alfonsín na Argentina.

Depois, alguns duelos um pouco mais ‘mornos’ ocorreram em quartas-de-final de Copa América: vitória do Peru em 97 e vitória da Argentina em 2004. Em comum nesse período, além de ambas as seleções terem sucumbido diante do Brasil no caminho ao título, é que como países ambos padeciam dos destroços de vários anos do neoliberalismo com grande convulsão social, econômica e política: vide as renúncias em 2001 de Fujimori no Peru e de la Rúa na Argentina.

Quis um capricho do destino que mesmo na atual era de eliminatórias longas ambos os países se encontrassem em rodadas finais e derradeiras: em 2009 e 2017. Ambos na penúltima rodada e ambos na Argentina. Em 2009 ambos os países tiveram o retorno de alguma esperança junto de governos populares: o retorno de Alan Garcia no Peru e Cristina Kirchner na Argentina. Uma partida dramática no Monumental de Nunez em que somente no início do segundo tempo Higuaín abriu o placar. Em meio a uma chuva torrencial que complicava o bom toque de bola argentino favoreceu um Peru sem responsabilidades chegar ao empate nos acréscimos com Rengifo. Mas nos instantes finais uma confusão na área peruana em meio a poças d’agua fez a bola bater em Martin Palermo e marcar seu gol mais importante pela seleção. A seguir a alegria do treinador Maradona com o 2 a 1 e o alívio da vaga quase assegurada.

Já em 2017 fora de campo ambos países viviam fracassos de governos neoliberais: a brusca renuncia de Kuczynski no Peru e a gradual decadência de Macri na Argentina. Já em 2017 o encontro crucial foi na Bombonera em que ambos corriam riscos de ficar de fora. E com um gostinho especial por Gareca estando de novo no centro de um confronto decisivo, mas agora como treinador peruano. A combinação de resultados na ultima rodada classificou ambos. Mas o fato mais curioso entorno desse empate sem gols bem disputado foi o chá de coca que o ídolo Paolo Guerrero tomou no hotel durante a viagem e meses depois representou a luta do Peru diante da FIFA para derrubar a suspensão por doping.

Ambos os países voltam a se encontrar em 17 de novembro de 2020, em Lima, justamente no início de uma eliminatória que também promete ser bem disputada na expectativa de mais uma grande partida. Sem dúvida tensão fora de campo não faltará diante da intensa turbulência na política peruana com um impeachment de um presidente e a renuncia de seu substituto com ruas tomadas por protestos.

 

Referências

https://www.clarin.com/deportes/gol-anulado-desencadeno-mayor-tragedia-estadio-futbol-328-muertos-lima_0_Db5FSdYvC.html

https://revistalibero.com/blogs/contenidos/la-tragedia-de-lima-55-anos-del-horror-que-dejo-mas-de-300-muertos

https://globoesporte.globo.com/blogs/latinoamerica-futbol-club/post/2018/11/21/puerta-12-a-maior-tragedia-do-futebol-argentino.ghtml

RÉNIQUE, José Luis. A revolução peruana. São Paulo: UNESP, 2009.

CAVAROZZI, Marcelo. Autoritarismo y democracia (1955-1996): La transición del Estado al mercado en la Argentina. 1997.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Partidazos agônicos entre Peru e Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 33, 2020.
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