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Protagonismo do Corinthians Feminino: expressão máxima do que é ser Corinthians na atualidade

Julia Menossi 25 de junho de 2024

Foi Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa Vieira de Oliveira, (que despensa apresentação, exímio jogador com uma humanidade e sabedoria que eram e são raras neste meio), quem de certa forma perpetuou a popularidade e fomentou uma imagem de um Corinthians que defende o povo, onde muitos torcedores ou não, do clube paulista, tiveram contato com a Democracia Corinthiana e minimamente entenderam o significado que esse clube carrega. A partir do seu surgimento em 1910, o Sport Club Corinthians Paulista (SCCP) foi se moldando e criou algo único e profundo, onde é notável a sua popularização principalmente nas camadas mais baixas da sociedade. De forma específica, nos dizeres do primeiro presidente da instituição, Miguel Battaglia: “O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time”.  Desde então, o clube desenvolveu um forte histórico nos três pilares que fomentam as principais desigualdades no sistema que vivemos hoje, classe, raça e gênero, respectivamente. O último por sinal, foi e continua sendo um processo mais lento.

Como é sabido por todos, não existe um Brasil sem futebol, mas por tempos existiu um Brasil sem futebol para mulheres, e tudo de forma institucionalizada. Como exemplo disso, durante a Era Vargas foi proibido que as mulheres praticassem esportes sem que houvesse compatibilidade com a “natureza feminina”. Ou seja, mulheres jogando futebol era algo ilegal, um decreto lei que perdurou de 1941-1983. Além da ilegalidade perante a lei, também havia o preconceito social e familiar que atravessa décadas e décadas e é perpetuado até hoje. Em maior ou menor grau esse preconceito é o principal obstáculo enfrentado pela modalidade no Brasil.

Frases que representam um pensamento atrasado e preconceituoso como “ninguém assiste futebol feminino”, “nem é futebol”, “isso nem é esporte para mulher” dentre tantas outras, são ouvidas e lidas diariamente em nossa vida social e familiar. E mesmo que a passos lentos fomos conquistando esse espaço. O processo histórico de criação de cada clube na modalidade feminina perpassou estágios delicados e extremamente machistas. Uma luta que começou lá atrás e que parece longe de acabar. No caso do Corinthians não foi diferente. A diferença crucial é que ao atingir uma estabilidade, rapidamente alcançou um status de altíssimo rendimento e pouco a pouco a maior parte da torcida não resistiu e hoje abraça de forma genuína toda sagacidade e competência feminina em nome do clube. Que por sinal, não só dão show dentro de campo, como e principalmente fora dele.

O Sport Club Corinthians Paulista tem sua credibilidade em termos sociais e políticos. Participou e levou a frente pautas imensamente significativas, no campo do trabalho, na inclusão de negros no esporte, na defesa pela democracia, na resistência a vida contra um regime opressor, dentre tantos outros momentos marcantes na história sociopolítica do país e do futebol. Mas, atualmente, com gestões mais conservadoras, o clube foi perdendo sua essência em defesa das premissas básicas de vivência em sociedade. Sua instituição masculina, aos poucos parece estar perdendo seu protagonismo nesse âmbito, e de forma involuntária e evidentemente positiva vem dando espaço a equipe feminina. Ela que, em sua expressão máxima, vem se tornando mais Corinthians que o Corinthians masculino, ou mesmo sendo a principal referência do que é ser Corinthians.

Corinthians Feminino
Foto: Mauro Horita/Fotos Públicas

Do surgimento do SCCP Feminino aos dias atuais

O início do Corinthians Feminino é um tanto quanto confuso e ao mesmo tempo indigesto. Ele passa pelo nome e sobrenome de uma modelo, Milene Domingues. Por volta de 1994, Milene que fazia parte de uma agência chamada “Flash Book” e por meio de um convite do então presidente do Corinthians, Alberto Dualib, chama as demais parceiras de trabalho para jogar futebol. Parece loucura, mas naquele contexto a Federação Paulista de Futebol FPF publicou um decreto onde dizia que mulheres não poderiam raspar ou ter cabelo curtinho para jogar futebol, com a justificativa de que o embelezamento das mulheres era um dos responsáveis pelo sucesso do campeonato. Não é de se surpreender, afinal, desde sempre, mulheres passam por misoginia e machismo para conseguir seu espaço.

De lá até 2008 o Corinthians Feminino não teve um bom desenvolvimento, o que por sinal, corresponde a teoria descabida de embelezamento, para ser jogadora precisa ser modelo?  Finda essa fase, somente em 2016 o Corinthians feminino volta as atividades, que renasce por meio de uma parceria com o Audax, conhecido como Corinthians Audax. Nessa época, o consagrado Arthur Elias já era treinador do time, assim como algumas atletas já atuavam na equipe. Nesse contexto o clube alvinegro/Audax levou o título do campeonato brasileiro e no ano seguinte a primeira libertadores da história do futebol feminino brasileiro.

Ao perceberem que a equipe feminina do Corinthians estava fluindo, a diretoria resolveu se desvencilhar do Audax dando início a uma nova fase do clube paulista, já independente. Vale ressaltar, que o principal fator que contribuiu para um ótimo desenvolvimento do clube alvinegro feminino foi a diretora de futebol Cris Gambaré, que não só foi essencial para o Corinthians como também para o futebol feminino no geral. Com isso, o trabalho conjunto de Cris Gambaré, Arthur Elias e o departamento médico que visavam o mesmo objetivo de elevar o nível da equipe paulista feminina, só poderia ter um resultado: o sucesso. As brabas como ficaram conhecidas, acabaram não só atingindo outro patamar, como também se tornando a maior referência para os demais clubes e para a própria modalidade no Brasil e no mundo. A título de curiosidade, nas convocações para a seleção feminina, desde 2018, a maioria das selecionadas são jogadoras do Corinthians.

Um breve exemplo da referência que o Corinthians Feminino se tornou, são as ações pioneiras do executivo do clube, como a profissionalização dos contratos das atletas em 2020. Segundo a pesquisadora Ítana Luiza dos Santos: “A atitude foi pioneira no país. Até então, as jogadoras não tinham vínculo empregatício com o clube, somente acordos de prestação de serviços durante a temporada. Com a mudança, elas passaram a ter contratos semelhantes aos dos homens, com direito à multa rescisória, direitos de imagem e correção de valores para Brasil e exterior”.    

Outro tópico essencial para esse sucesso é a relação time-torcida, a fiel que já é conhecida pelas suas façanhas gigantescas de devoção a equipe masculina, não fez por menos com a feminina, que atualmente detém o maior recorde de público da América na história do futebol feminino, o maior número de seguidores em redes sociais do Brasil e recentemente ultrapassou a equipe alemã Bayern de Munique, se tornando a 7º mais seguida do mundo. Sem dúvidas alguma, abraçar o time feminino é um ato de resistência para a modalidade, e esse é outro quesito que torna o Corinthians a maior referência.

Além de tudo isso, no futebol, sabemos que nada mais reflete o sucesso do que títulos, e o Corinthians entende bem disso, em seis anos foram quatro libertadores da América, cinco campeonatos brasileiros, uma copa do Brasil e quatro campeonatos paulista. Totalizando em dezesseis títulos nesse período. Em todo campeonato feminino, o favorito tem nome e sobrenome Sport Clube Corinthians Paulista Feminino.

Corinthians Feminino
Foto: Rodrigo Gazzanel / Agência Corinthians / Fotos Públicas

Seu impacto midiático

Dada certa visibilidade, a equipe feminina do Corinthians atingiu outro patamar principalmente por conta do seu desenvolvimento midiático.  Em 2020, por exemplo, pela primeira vez o futebol feminino atingiu números consideráveis, com recorde de audiência entre os clubes brasileiros, o perfil do Brasileirão Feminino do Twitter transmitiu a partida entre Corinthians x Palmeiras e contou com mais de 1,6 milhões de visualizações. A partir desses números houve uma impulsão dos canais de televisão para realizarem a cobertura dos jogos. No ano seguinte em 2021, a Band assumiu os direitos do brasileiro feminino e conseguiu bons números, registrando um aumento de 80% de audiência durante os horários das partidas. Em sua maioria, os recordes de audiência pertencem a equipe alvinegra.

O time foi um dos primeiros a criar perfis exclusivos em redes sociais como X (antigo Twitter), Facebook e Instagram, além de canais exclusivos. Essa ação repercutiu positivamente e impulsionou outros clubes a adotarem a estratégia de visibilidade e contato com torcedores e torcedoras. Com isso, a pesquisadora Ítana Luiza dos Santos, questionou em que medida as narrativas do Twitter do SCCP contribuíram para a visibilidade do futebol de mulheres? Para ela, a linha de raciocínio se encaminha no entendimento de que os horários nobres da programação sobre futebol se dedicam exclusivamente a modalidade masculina. Partidas, mesa redonda, notícias, informações sobre escalação, momento do clube, enfim. No caso da modalidade feminina, quem desempenha esse papel são as redes sociais, espaços em que o torcedor encontra tudo sobre o elenco principal e as categorias de base. A resposta da pesquisadora Ítana sobre sua própria indagação foi de que as redes sociais do SCCP “colocam sempre as jogadoras como protagonistas das narrativas apresentadas em suas publicações, interagindo com a comunidade ali presente e disponibilizando as informações e meios para acompanharem o time nos campeonatos”.

Esse papel midiático desempenhado pela equipe corinthiana feminina é de extrema importância, afinal de contas, para boa parte da população a cultura de consumir mulheres no futebol, causa estranhamento, pois é um ambiente no qual estamos acostumados com corpos masculinos. Mas essa mesma cultura só cresce porque existe uma produção de conteúdo e narrativas que proporcionam ver, ouvir e falar sobre seja no âmbito familiar ou social. Sabemos que atualmente as mídias tradicionais travam uma árdua batalha com as redes sociais, e é justamente essa passagem do tradicional para o “moderno” do ponto de vista informativo, que auxilia no avanço desse tema, visto que durante anos até hoje, as mídias tradicionais pouco visibilizaram o futebol feminino.

Atos de protesto contra misoginia e assédio sexual

As práticas do futebol foram restritas e limitadas por classe (ricos), raça (brancos) e gênero (homem), uma hegemonia que perdurou anos. Respectivamente os dois primeiros, foram sendo superados através de muita luta, diga-se de passagem, foram processos revolucionários. Já a questão de gênero no futebol continuou restrita por décadas e décadas. É crucial entender isso para fomentar a necessidade dessa mudança. Com a inserção de mulheres no futebol de forma legal, por volta de 1984 ao fim da Ditadura Militar e através da regulamentação da CND, houve um certo vislumbre de mudança no cenário. Um vislumbre, até porque o que vem em seguida, é tão amargo quanto a modalidade ter sido ilegal por anos.

Mulheres podem jogar futebol, criar equipes e serem competitivas, mas isso está longe de significar que são respeitadas nesses espaços. Nossa sociedade machista é ainda mais reforçada no meio do futebol, onde denúncias de assédio e abuso sexual são comuns e corriqueiros. Como se a lógica fosse “tudo bem você conviver neste meio, contanto que eu fale de você com segundas intenções, invada seu corpo e sua liberdade”. Não há um recorte a ser feito, esse é um problema sistêmico e global que atinge todos os níveis, seja na base, num campeonato nacional ou mesmo na própria Copa do Mundo. (Na última edição da copa do mundo feminina em 2023, a jogadora espanhola da seleção campeã, Jenni Hermoso, foi beijada sem consenso pelo então presidente da Real Federação Espanhola de Futebol Luís Rubiales, que posteriormente foi afastado da posição e de todas as atividades por três anos).

E o que a equipe feminina do Corinthians tem a ver com isso? Com expressa visibilidade, alcançando o topo do futebol mundial, as brabas não se invisibilizaram da responsabilidade que carregam, e usam frequentemente esse alcance para fomentar protestos e dar voz ao que é silenciado pelas mídias tradicionais. São inúmeros exemplos, como quando em abril de 2023 a equipe masculina do Corinthians contratou o técnico Cuca (que havia sido condenado por estupro coletivo a uma menina de 13 anos na Suíça em 1987, e não arcou com suas responsabilidades), as brabas não deixaram barato e com apoio da torcida corinthiana emitiu um manifesto com os dizeres: “Respeita as Minas não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado. Ser Corinthians significa viver e lutar por direitos todos os dias”. Enquanto a equipe masculina abraçava o então técnico Cuca, a massa corinthiana, as organizadas e as brabas, impulsionaram a derrubada do técnico.

Não parou por aí, elas seguiram assumindo esse compromisso. O caso mais recente foi o da equipe feminina do Santos FC. Dezenove atletas das sereias da vila denunciaram o então técnico Kleiton Lima por assédio. A equipe santista afastou o técnico e depois de rápida “apuração” das cartas, resolveram reatar com o assediador a posição de técnico novamente.  Ao saberem, as brabas não mediram esforço para protestarem e no dia doze de abril em uma partida contra o América Mineiro, as jogadoras levaram a mão a boca e taparam as orelhas durante o hino nacional e na comemoração dos gols, recado para os que não dão ouvidos e se calam perante as denúncias. Na rodada seguinte, o próprio Kleiton Lima decidiu sair do clube santista.

No geral, atitudes como essas impulsionaram outras equipes femininas a se posicionarem diante de situações semelhantes. As brabas de Itaquera não recuam e sempre levantam bandeiras importantes que somado a hegemonia na modalidade, não passam despercebidas e impactam diretamente nas medidas a serem tomadas sobre os variados casos.

Corinthians Feminino
Torcida do Corinthians na partida
contra o Internacional de Porto Alegre em março de 2024, na Arena Corinthians, pelo Campeonato Brasileiro Feminino. Foto: Mauro Horita / CBF / Fotos Públicas

Conclusão

Diante do exposto, cabe salientar que uma questão chave foi a força motriz que impulsionou a escrita desse texto: a equipe feminina do Corinthians superou a modalidade masculina? Existem dois pontos que colaboram com uma assimilação de superação da própria modalidade no clube, visto que é um clube recente (2016). Primeiro (em um recorte sociopolítico) que quando falamos sobre futebol, historicamente é um esporte que como já dito, recortou classe, raça e gênero, onde os dois primeiros através de muita luta conseguiram a superação. Enquanto só em fins do século passado, a passos lentos as mulheres buscam seu espaço, afinal, como já apontado, obstáculo foi o que não faltou. Nesse sentido, entende-se que comparado aos outros dois pilares de desigualdade mencionados, o de gênero está atrasado e que só recentemente vem ganhando muita força. No Brasil, quando nos deparamos com esses recortes e cenários, é muito improvável que exista a possibilidade de falar sobre essa superação da modalidade sem usar o Sport Club Corinthians Paulista Feminino como referência. Não é um exagero afirmar que após a Democracia Corinthiana os movimentos realizados pela modalidade feminina recentemente é o que mais define a cara do clube.

O segundo ponto é um apelo técnico. Se por um lado, vemos um clube engajado na causa feminina, por outro vemos uma modalidade vitoriosa. São muitos títulos desde a sua reativação em 2016. Se comparado ao masculino, de 2016 até aqui eles somam três campeonatos paulistas (2017-2018-2019) e um campeonato nacional (2017). Enquanto as brabas ostentam uma prateleira absurda com dezesseis títulos, os já citados um pouco acima. Um nível absurdo para a modalidade, jamais visto no Brasil. A equipe levou para o Parque São Jorge não só troféus como recordes, seja de público no estádio ou investimento na modalidade. Além de claro fomentar cada vez mais uma pauta além de qualquer recorte de gênero, que ressalta a importância da modalidade feminina para a fiel torcida, a de que o Corinthians é um só. Campanha promovida por elas mesmas em 2019 com a #UmSóCorinthians, e se a equipe masculina atravessa crises e má gestões, elas não poupam tempo para reafirmar e reacender essa devoção ao clube.

Referências Bibliográficas

SANTOS. Ítana Luzia dos. #Respeitaasmina: O twitter do Corinthians Feminino e a ressignificação do futebol de mulheres. 2022. Monografia (Graduação Jornalismo) – Universidade Federal de Uberlândia, 2022.

Passa Bola. A História do Corinthians feminino até hoje. Youtube, 2021. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ceR9wArv4N8> Acesso em 23 de abril de 2024.

MELO. Maria Deyvislene Patricio de. As ações do Corinthians em busca de maior visibilidade para as questões da mulher no futebol. Trabalho de conclusão de curso (Graduação Comunicação e Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MENOSSI, Julia. Protagonismo do Corinthians Feminino: expressão máxima do que é ser Corinthians na atualidade. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 25, 2024.
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