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Quem já viu Sissi, Julianas e companhia…

Marcus Vinícius Costa Lage 20 de julho de 2023

Falta pouco pra bola rolar pra mais uma Copa do Mundo e até agora nada de reboliço, em lugar nenhum. Nos comércios, nos colégios, no trabalho: nada. Na TV, na imprensa, uma ou outra coisinha, e só.

Tá certo que tem muita gente, como eu, ainda desencantada com a seleção canarinho. Tanto pelo que entrega em campo, quanto pelo sequestro da amarelinha pelos golpistas de primeira viagem. Tá certo também que a Copa que se avizinha será lá do outro lado do mundo, na “Terra dos Cangurus”.

Mas o ponto é outro. É que, dessa vez, quem correrá atrás da bola são elas, e não eles.

Mas também não serei hipócrita. Cresci jogando bola com meu pai, meu vô Élio, meu vô Oswaldo… e com meninos; nunca com meninas. Na TV sempre passava jogo de meninos; e com meninos assistindo. De modo que o futebol praticado por mulheres não recebe lá tanta atenção da minha parte assim.

Apesar disso tenho algumas lembranças fortes que gostaria de compartilhar. Talvez a mais antiga seja a do primeiro jogo de meninas que vi na TV. Deve ter sido em 1994, 1995 ou 1996. E foi da seleção brasileira que, na época, tinha Michael Jackson, Meg, Pretinha, Formiga, Sissi e companhia. Elas excursionavam pelo país e jogaram alguns jogos no Parque do Sabiá, em Uberlândia. Os jogos eram pela manhã – outra raridade, à época – e custavam um quilo de alimento não perecível. O estádio, mais um gigante da ditadura, ficava lotado e os botecos em Araguari, onde morava, viravam a TV de tubo, sintonizada na Band, pra calçada e a gente ficava em pé, vendo as meninas brasileiras fazerem cinco, seis, sete gols nas adversárias; sorrindo, brincando.

Nessa mesma época, na Olimpíada de Atlanta, em 1996, me encantei pela Sissi, camisa 10 habilidosa. Quem não viu a Sissi jogar, dá um Ludo nesse texto da Leila Melo.

Ela era craque!

Sissi
Sissi pela Seeção Brasileira. Fonte: CBF

De estatura mediana, parecia maior que todas ao seu lado. Armava e finalizava com maestria. Batia falta como se jogasse a bola com a mão, onde quisesse. Quando a vi vestindo a camisa do São Paulo, vi a sucessora do Raí, meu primeiro grande ídolo no futebol.

Certa vez, a torcida gritou, em jogo dos meninos: “Ei Muricy, bota a Sissi”.

Pena que os jogos dela passavam tão pouco na TV. Hoje tenho apenas alguns flashes daquela carequinha habilidosa em campo.

Da mesma forma que só tenho flashes da Juliana, primeira mulher que jogou bola comigo. Isso também deve ter acontecido nessa mesma época, lá pra 90 e alguma coisa.

A Juliana era uma moça bonita, forte, branca, cabelo loiro e ondulado – quase crespo –, e uma pinta (ou verruga) no bigode. Todo dia, menos sábado e domingo, ela ia trabalhar lá em casa. Não lembro da Juliana cozinhando, mas arrumando a casa, o jardim e ficando com a gente, minha irmã e eu. Acho que mais comigo, até. Eu gostava da Juliana. Aliás, gostava de todas as pessoas que trabalharam lá em casa. Gostava de ficar na área e na cozinha, conversando fiado com elas, brincando com os cachorros e chutando bola.

De todas as pessoas que trabalharam lá em casa, só me lembro da Juliana chutando bola comigo. Poucas vezes – flashes, como disse –, mas me lembro.

O que lembro também é da Juliana contar que jogava no Araguari, time da cidade. Achava o máximo.

Fui uma meia dúzia de vezes ver o Araguari jogar no Vasconcelos Montes – estádio que virou estacionamento de supermercado, que tristeza. Nunca vi a Juliana, nem o time de meninas do Araguari. Só o time dos meninos. Era sempre uma festa bonita, colorida, com cheiros e sons extraordinários.

Eu adorava ir ao campo, assistir aos jogos – e ainda adoro. E ficava imaginando, já em casa, a Juliana em campo. Chuteira preta nos pés – que era o que tinha na época –, meião branco, short azul e blusa vermelha; no gramado, no campo, no palco do estádio. Trajando o manto do mesmo Araguari que, em 1958, montou dois times de meninas e saiu em exibição por aí. Naquela época, as meninas eram proibidas de jogar, por lei. Mulher e futebol era combinação que dava cadeia.

Mesmo assim, as meninas do Araguari vieram a Belo Horizonte, em 59, e jogaram no Independência lotado, vestindo camisas do América e do Atlético. Quem não conhece essa história, dê um pulinho na primeira parte da belíssima reportagem “Pioneiras F.C.”, do Renan Damasceno, publicada no Estado de Minas.

Hoje é outra Juliana quem bate um bolão comigo. A Juju, minha amada esposa. Com ela, viajei pra tudo quanto é canto pra ver o Coelho jogar no início dos anos 2000.

Juju que também é a mãe das minhas filhas. Meninas que, hoje, me fazem querer invadir a quadra e xingar os meninos que não tocam a bola pra elas porque elas “não sabem jogar”. Quem já viu Sissi, Julianas e companhia, jamais faria ou diria isso!

Aproveitando o ensejo: parabéns às meninas do América, que estão de volta à elite do futebol nacional!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Como citar

LAGE, Marcus Vinícius Costa. Quem já viu Sissi, Julianas e companhia…. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 20, 2023.
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