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A revolução das mulheres

José Paulo Florenzano 2 de agosto de 2018

Em maio de 1975, às vésperas da independência do país, o líder da Frente de Libertação de Moçambique, Samora Machel, despedia-se do povo da Tanzânia, agradecendo o apoio recebido durante a luta travada contra o colonialismo português, desencadeada desde meados dos anos sessenta do século passado. Diante de cem mil pessoas, reunidas no Estádio Nacional de Dar-Es-Salam, ele reafirmava os compromissos que haviam movido os combatentes da FRELIMO:

Pretende-se criar um homem novo, destruir os males que o colonialismo instilou, tais como o egoísmo, o individualismo e a ambição negativa.[1]

A tarefa utópica consistia em zerar os males do regime político precedente, para, a partir da experiência revolucionária, edificar a obra antropológica consubstanciada no advento do “homem novo”. A fim de colocá-la em prática, os dirigentes da FRELIMO lançavam mão de todos os recursos disponíveis, transformando cada setor da vida social em um campo de batalha a favor do projeto acalentado pelos militantes da luta de libertação nacional. Uma área, em especial, adquiria relevância estratégica, como se pode depreender das notícias veiculadas pelo jornal Notícias, principal órgão de imprensa do novo regime: “O desporto tem um papel importantíssimo a desempenhar na promoção do homem novo e na sociedade que se deseja nova”.[2]

Esvaziado dos antigos valores que lhe haviam sido atribuídos pelo colonialismo português, liberto do sistema de significados que o orientara historicamente na direção delineada pela lógica capitalista do interesse pessoal; o esporte da revolução emergia livre das amarras ideológicas e dos privilégios materiais do passado. Um campo incomensurável de possibilidades abria-se doravante aos agentes da transformação social. Nada escapava ao crivo do questionamento: qual o conteúdo de que deveria se revestir a prática esportiva; a quem ela estava destinada; que tipo de vínculo ela poderia estabelecer com a política? A resposta a estas indagações deixava claro que a construção do homem novo implicava de forma correlata a emancipação da nova mulher, e esta ação conjunta, por sua vez, englobava como arena privilegiada o campo esportivo.

Nesse sentido, o acerto de contas com o passado tornava-se inadiável. Conforme ponderava o jornal Notícias, alinhado com os ideais da FRELIMO: “a mulher, devido ao colonialismo, havia sido afastada de práticas deste gênero”.[3] Mas, agora, no contexto da revolução, ela era convidada a se aproximar dos esportes, escolhendo, sem qualquer tipo de restrição, as modalidades que mais lhe interessavam praticar. Sendo assim, em fevereiro de 1976, menos de um ano após a independência, o referido periódico anunciava a realização de uma rodada dupla no Estádio do Sporting, de Maputo, antiga filial da agremiação homônima de Lisboa. No intervalo entre uma partida e outra do futebol masculino estava programado um espetáculo considerado inusitado, envolvendo duas equipes formadas por mulheres do Minkadjuíne, bairro popular localizado na periferia da capital. Previsto para durar trinta minutos, ele pretendia assinalar um marco histórico:

É a primeira vez no nosso país que se efetua um jogo de futebol feminino.[4]

A rigor, no final dos anos cinquenta a imprensa colonial já havia registrado a realização de uma partida entre mulheres, patrocinada pelos clubes da Segunda Divisão da Associação de Futebol de Lourenço Marques[5]. O velho jornal Notícias, à época sob controle colonial, não poupara críticas à qualidade das atletas, as quais, segundo a reportagem, proporcionaram aos espectadores um “terrível prélio”, acrescentando o autor do texto em tom de escárnio que a “culpada”, certamente, foi a bola! Além disso, o órgão da elite lusitana preocupara-se, então, em averiguar “se as autoridades superiores” haviam dado o “consentimento” para a realização do jogo.

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A revolução das mulheres. Foto: creativeart/Freepik.

Desse modo, no contexto da dominação portuguesa, o futebol feminino via-se enquadrado por um discurso de poder que combinava ameaça e derrisão, evocando, de um lado, o sentido perturbador de que se revestia a prática clandestina para a ordem simbólica, e, de outro lado, o caráter esdrúxulo de uma atividade que não convinha levar a sério. Já no quadro da independência política, a prática das mulheres recebia por parte do novo jornal Notícias total apoio e estímulo, merecendo um tratamento livre dos estereótipos pelos quais a modalidade esportiva costumava ser retratada. Encará-la sob um prisma diverso, no entanto, requeria um esforço que transcendia as quatro linhas do campo. Com efeito, naquele início de 1976, no momento em que a revolução saudava a entrada em cena das jogadoras, achava-se em cartaz no centro de Maputo a película intitulada: “As Ibéricas Futebol Clube”. A propaganda veiculada na imprensa prometia muita diversão aos telespectadores: “Uma comédia original que só tem o objetivo de fazer rir! ”[6] De original, obviamente, o filme não tinha nada, limitando-se a reiterar o velho clichê da jogadora dotada de sensualidade, mas desprovida de talento.

Não obstante as contradições envolvendo a afirmação da nova identidade da atleta de futebol, o processo da revolução seguia adiante, promovendo uma prática antes submetida ao deboche e à censura. Um ano depois da partida considerada inaugural, disputada na capital do país, o jornal Notícias voltava a destacar a realização de um jogo envolvendo mulheres, desta feita “entre operárias” de duas fábricas de tecido, a Sabrina e a Investro”.[7] Agendado para o estádio do Ferroviário, clube ligado no período colonial à empresa dos Caminhos de Ferro, o encontro foi promovido pela Organização das Mulheres Moçambicanas, entidade criada no período do exílio, em 1973, na Tanzânia. Durante a segunda conferência da OMM, realizada três anos depois em Maputo, o valor da luta para erradicar nas mulheres os “complexos de inferioridade” era mais uma vez enfatizado.[8] Para levar a cabo a promessa de emancipação, a OMM desenvolvia múltiplas ações nas áreas de educação, saúde, trabalho, e, por último, mas não menos importante, no esporte. Dentro desta última esfera, a prática do futebol recebia uma atenção especial, sendo estimulada nos bairros populares, nas companhias industriais e nas instituições de ensino, incluindo as da comunidade muçulmana, como, por exemplo, a Escola Anuaril Isslamo.[9] Pouco a pouco, da condição marginal na qual se encontrava relegada no passado, ela passava a ocupar uma posição central no contexto da revolução, constituindo-se no ponto de confluência de inúmeras ações emanadas tanto do Estado quanto da sociedade civil. Assim, no segundo semestre de 1978, mais uma vez no campo do Ferroviário, anunciava-se a realização de um torneio quadrangular reunindo equipes de bairro e times de fábrica, uma iniciativa do Serviço Provincial de Educação Física, Setor do Desporto do Trabalho.[10] Esta iniciativa, ressaltava a reportagem de Notícias, possuía um significado especial:

Ela poderá ser o primeiro passo para a massificação do futebol entre as mulheres moçambicanas.[11]

Eis a estratégia da revolução moçambicana: nada mais, nada menos do que promover a difusão do futebol entre um setor da população comumente visto como inapto para a sua prática, não destinado, nem pela natureza, nem pela divindade, para exercitá-la, a não ser para a diversão masculina nos gramados ou nos cinemas. Contra uma visão arraigada no imaginário global que perpassava os mais variados regimes políticos e sistemas de dominação, a revolução socialista em Moçambique afirmava a disposição inabalável de romper com o “velho tabu” segundo o qual futebol era “só para homens”.[12] Uma sociedade que se desejava sexualmente igualitária não deveria manter interdito às mulheres o campo de jogo, restringindo-lhes as possibilidades de expressão lúdica. Como sublinhara Mariana, operária e jogadora, o desporto se convertera com a revolução socialista em um “campo verdadeiramente aberto”.[13] Mas ninguém poderia imaginar naquele momento até onde chegariam as experiências de reinvenção do futebol, tema do nosso próximo artigo.


[1] Cf. “Pretende-se criar um homem novo destruindo os males do colonialismo”, Notícias, 23 de maio de 1975. Como se sabe, após um período de transição, a independência de Moçambique foi selada no dia 25 de junho de 1975

[2] Cf. “Revolucionar o desporto através do poder popular”, Notícias, 23 de fevereiro de 1975.

[3] Cf. “O desporto é para as massas”, Notícias, 31 de março de 1975.

[4] Cf. “Futebol feminino pela primeira vez em Maputo”, Notícias, 26 de fevereiro de 1976.

[5] Cf. “Um jogo de futebol entre raparigas”, Notícias, 2 de outubro de 1959.

[6] Cf. “As Ibéricas Futebol Clube”, Notícias, 26 de janeiro de 1976.

[7] Cf. “Festival desportivo promovido pela OMM amanhã no Ferroviário”, Notícias, 1 de novembro de 1977.

[8] Cf. “2ª Conferência da OMM abre hoje em Maputo”, Notícias, 10 de novembro de 1976. Cf. “Para as mulheres, ´a luta continua`”, Movimento, nº100, 30 de maio de 1977.

[9] Cf. “Escola Anuaril Isslamo venceu torneio da OMM”, Notícias, 14 de fevereiro de 1978.

[10] Cf. “Futebol de onze entre mulheres”, Notícias, 15 de setembro de 1978

[11] Cf. “Futebol de onze entre mulheres”, Notícias, 15 de fevereiro de 1978

[12] Cf. “Futebol de onze entre mulheres”, Notícias, 15 de fevereiro de 1973. Com efeito, no segundo encontro da Organização das Mulheres Moçambicanas, realizado em 1976, uma das resoluções afirmava: “Tanto a sociedade tradicional quanto a colonial viam a mulher como objeto de prazer e como fonte de trabalho manual barato”

[13] Cf. “Avança a transformação no desporto”, Notícias, 4 de outubro de 1978.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A revolução das mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 2, 2018.
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