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Sobre o que pensam as mulheres? Notas sobre futebol, mulheres e pesquisa

“Se eu fosse macho eu seria jogador de futebol”.

 

A frase é da mãe anônima de um aspirante a jogador acompanhado por João Moreira Salles no primeiro filme da série de documentários Futebol (1998)[1].

Nos dias de hoje é possível que mais gente saiba que não é preciso ser “macho” para jogar futebol, ainda que viver de renda advinda exclusivamente com essa atividade não seja tarefa das mais fáceis no Brasil[2].

Nos causa um pouco de incômodo escrever sobre a temática nesse período, o “mês da mulher”. Explicamos: o dia da mulher é mais um daqueles mecanismos criados com a melhor das intenções, mas que geram um efeito de lugar ou tempo de exceção[3], um dia entre os 365 do ano para as mulheres serem exaltadas. Essa exaltação, não raro, também é bastante problemática, reafirmando pressupostos essencialistas sobre beleza, sensibilidade, instinto maternal e coisas do tipo. Não à toa é comum que empresas presenteiem suas funcionárias com uma rosa ou um “dia de beleza”.

Reconhecendo, contudo, a visibilidade que a data acaba por produzir e a importância de discutir-se esse tema, escolhemos aproveitá-la para fazer uma homenagem não tão recorrente, abordando a relação das mulheres com o futebol também “fora das quatro linhas” e da arquibancada.

O futebol jogado por mulheres conquistou alguns espaços nesses últimos anos e tende a crescer após o PROFUT[4] com alguns grandes clubes tendo a necessidade de reabrir/criar um lugar para as mulheres em seus clubes, mais por obrigação do que por acreditar no futebol jogado por elas[5]. Ter um time de mulheres em um clube tradicional hoje em dia, além de cumprir o acordo, é uma forma de agregar valor positivo à sua marca, ou seja, do ponto de vista mercadológico, “pega bem” para sua imagem.

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - JUNE 5: General view of the Sony Dream Goal 2014 event at Museu da Republica on June 5, in Rio de Janeiro, Brazil. (Photo by Francisco de Souza/Getty Images)
O empoderamento das meninas no futebol. Foto: Francisco de Souza – Getty Images.

Em meio a essa onda de apoio ao futebol e de empoderamento de mulheres de maneira geral, pensamos sobre como certos espaços e tempos de exceção acabam sendo criados como “efeito colateral” de ações afirmativas da liberdade das mulheres.

Mesmo na mídia alternativa é raro encontrar mulheres colunistas em meio a homens com a mesma função. Como exemplo, em sites importantes e que consideramos interessantes como o Impedimento, o Trivela e o Doentes por Futebol, há, respectivamente, 17, 13 e 20 colunistas, totalizando 40, dos quais apenas duas são mulheres, ambas do Impedimento[6].

Não estamos afirmando com isso que esses sites sejam machistas ou que essa ausência de mulheres seja pensada de maneira proposital. Mas essa ausência expressa uma desigualdade comum em outros ambientes nos quais, seja ou não de maneira intencional, os espaços reservados para as mulheres acabam se limitando a condição de fetiche[7] ou ocasiões especiais como um programa só com mulheres no dia reservado à elas ou durante a Copa do Mundo, por exemplo.

Diante desse cenário, por vezes as mulheres optam por se reunir em um espaço “só delas”. O blog Dibradoras – produzido por mulheres para falar sobre mulheres para qualquer um que se interesse, pode ser citado como um exemplo do que denominamos aqui de lugar de exceção em um ambiente ainda avesso a uma maior presença cotidiana de mulheres falando sobre futebol, seja de homens ou de mulheres, dentre os supostos “entendedores” do assunto.

Essas exceções nem sempre se restringem ao dia da mulher. No ano passado a campanha Agora É Que São Elas, voltada para discussão do machismo por mulheres em espaço cedido por homens em diversos veículos de comunicação – colunas em jornais e sites, blogs, canais do YouTube, etc – também foi adotada por jornalistas esportivos.

Atos conscientes de respeito vêm crescendo, mas talvez preconceitos reproduzidos sem intencionalidade continuem arraigados e naturalizados aqui e ali. Assim, apesar do crescente apoio a uma maior participação de mulheres em espaços tradicionalmente masculinos, para sua efetivação se mostram necessárias ações para além dos atos públicos de respeito datados que rapidamente sucumbem em distrações cotidianas.

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - JUNE 5: General view of the Sony Dream Goal 2014 event at Museu da Republica on June 5, in Rio de Janeiro, Brazil. (Photo by Francisco de Souza/Getty Images)
Quando o assunto é futebol meninas e meninos podem estar juntos. Foto: Francisco de Souza / Getty Images.

Pensando acerca de outro espaço no qual também convivemos, o da Academia, tivemos a impressão que a tendência a essa formação de espaços e tempos de exceção também se repete. Nos pareceu que eram proporcionalmente poucas as mulheres que se dedicam a pesquisar o futebol e boa parte daquelas que o fazem se dedicavam a discutir a participação das mulheres na modalidade. Lembramos que essa afirmação é apenas uma hipótese a partir de observações pessoais das autoras em eventos e do conhecimento dos interesses acadêmicos de uma série de autoras que pesquisam futebol.

Tendo isso em vista, realizamos um breve levantamento dentre os colaboradores do Ludopédio, levando em considerações os textos da sessão Arquibancada e os artigos publicados presentes no perfil das pesquisadoras da Comunidade Ludopédica[8].

De um total de 704 membros encontramos 134 mulheres sendo que 98 delas não possuem textos publicados no site[9]. Das 40 restantes, 29 – a maioria – falam em seus textos de assuntos ligados ao futebol praticado por homens e sem discutir gênero. Apenas 10 escreveram sobre futebol jogado por mulheres ou sobre árbitras e torcedoras[10]. E dentre essas 10, a metade também estuda e publica sobre assuntos diversos ligados ao futebol vivenciado por homens.

Ainda que essa amostragem seja pequena para falar sobre as mulheres pesquisadoras no Brasil, reconhecemos que o Ludopédio é um importante concentrador de pesquisadores sobre futebol e, portanto, consideramos esse reflexo importante no que diz respeito à participação das mulheres nas pesquisas sobre o tema.

A hipótese inicial era a de que havia poucas mulheres falando sobre futebol jogado por homens ou sobre torcedores, sem discutir gênero. Mas com esse rápido levantamento descobrimos que a maioria das mulheres pesquisadoras que publicam nessa sessão do Ludopédio fala mais sobre outros assuntos do que sobre as experiências das próprias mulheres nesse esporte.

Diante disso, pensamos que possivelmente há uma diferença de proporção entre homens e mulheres que influenciou na construção de nossa hipótese. Explicando melhor, possivelmente o amplo número de homens discutindo o universo dos homens no futebol faz com que as mulheres pareçam poucas ou até inexistentes. Já na discussão da participação das mulheres, são poucos os homens interessados, fazendo com que as pesquisadoras apareçam mais. Esperamos ter deixado claro ao longo do texto que essa aparente menor visibilidade ou protagonismo não é baseada exclusivamente nessas diferenças quantitativas. Elas são antes sintomas, e não causas, das diferenças entre homens e mulheres no futebol, seja no campo ou no campus.

Nos tempos que vivemos, vale ressaltar que somos a favor que as pessoas escrevam sobre o que queiram escrever. Mas é importante não perder de vista que esse “querer escrever” pessoal também é determinado por uma série de atravessamentos políticos e sociais que nos constituem como humanos, dentre eles as questões de gênero expostas aqui. Embora consideremos importantes os espaços para as mulheres e para se falar de gênero de maneira mais abrangente, pensamos ser igualmente interessante quando mulheres surgem em contextos que não foram “separados” para elas ou constituídos como um “oásis” por elas próprias.

Notas:

[1] FUTEBOL: episódio 1 – o sonho. Direção: Arthur Fontes e João Moreira Salles. Produzido por GNT Vídeo Filmes, 1998. DVD.

[2] Os maiores salários de clubes brasileiros são próximos de R$2.500, sendo que muitos não pagam salários, arcando apenas com uma ajuda de custo e/ou outros atrativos – como alimentação, transporte e bolsas de estudo – que em situações de trabalho formal poderiam ser consideradas como bonificações, mas nesses casos de trabalho informal funcionam como a própria remuneração. Assim, as jogadoras em atividade no país, não raramente, trabalham também em outras atividades.

[3] Utilizamos esse termo no sentido de um espaço físico, virtual ou temporal, isolado ou momentâneo, no qual as mulheres são valorizadas ou, no que mais importa a esse texto, no qual são convocadas ou se agrupam para se apropriar de lugares ou exercer funções que cotidianamente lhe são negadas ou desincentivadas. Ao longo do texto desenvolveremos esse argumento no que tange à discussão do futebol.

[4] A Lei no 13.155/2015 cria o PROFUT, Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro. As entidades esportivas que aderirem ao Programa poderão negociar suas dívidas fiscais com a União, desde que cumpram um conjunto de contrapartidas, entre as quais o investimento no futebol feminino. No total, 111 clubes participam do programa, dentre os clubes que participam da Série A do Campeonato Brasileiro, apenas Palmeiras, Sport e Chapecoense não aderiram ao PROFUT.

[5] As tentativas de vários presidentes de clubes, junto ao Governo Federal, de não incluir tal imposição na Lei demonstram esse desinteresse.

[6] Apesar de não ser mais atualizado enquanto blog desde 2014, consideramos o Impedimento um site importante dentre os interessados pela temática.

[7] Os concursos de musas dos clubes e a recorrente presença de apresentadoras de programas esportivos que apenas intermediam as discussões protagonizadas pelos comentaristas homens são exemplos disso.

[8] Levantamento realizado em 28-02-2016.

[9] Identificamos nesse meio 3 perfis duplicados e mais 12 através dos quais não pudemos identificar o sexo da pessoa, alguns com nome de grupos ou empresas.

[10] No levantamento realizado não foram encontrados textos que tratassem de outras formas de participação da mulher no futebol, na gestão de clubes e federações, por exemplo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos; ANJOS, Luiza Aguiar dos. Sobre o que pensam as mulheres? Notas sobre futebol, mulheres e pesquisa. Ludopédio, São Paulo, v. 81, n. 4, 2016.
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