179.31

Sortilégio a meia-noite

José Paulo Florenzano 29 de maio de 2024

Em fevereiro de 1958 o selecionado masculino de basquete conquistou o título do XVII Campeonato Sul-Americano realizado no Chile. Em junho daquele mesmo ano o selecionado nacional sagrou-se campeão de futebol da VI Copa do Mundo disputada na Suécia. Em fevereiro de 1959, novamente no Chile, o feito se repetiu com a conquista do III Campeonato Mundial de Basquete. A sequência era de tirar o fôlego. Com efeito, poucos meses depois desta última proeza, quando a tenista Maria Esther Bueno trouxe para o país a taça do torneio de Wimbledon, na Inglaterra, a Folha da Manhã não se conteve: “O mundo”, proclamava a manchete ufanista, “curva-se mais uma vez ante a força do esporte brasileiro”.[1] Embora a esfera esportiva orbitasse ao redor do futebol, ela possuía modalidades de jogos individuais e coletivos com brilho próprio, desvelando dessa maneira o potencial lúdico ainda em grande parte inexplorado.   

A conquista do III Campeonato Mundial de Basquete parecia confirmar a vocação esportiva do país. Embora o caminho rumo ao título tivesse sido aplainado pela decisão política da União Soviética de não enfrentar a China nacionalista – Taiwan -, não se podia negar os méritos do time auriverde.[2] Ele reunia atletas de talento como, por exemplo, o ala Wlamir Marques, cognominado Diabo Loiro devido às “diabruras” realizadas durante os jogos. Se os estadunidenses eram reconhecidos como “os verdadeiros reis da bola ao cesto”, em compensação os brasileiros emergiam como os portadores de uma diferença que Wlamir Marques – “misto de dançarino e esportista” – personificava com suas “diabruras”.[3] A dança do diabo, por sua vez, evoluía embalada pelas “batucadas” promovidas por Carmo de Souza, alcunhado Rosa Branca, jogador negro cuja performance musical distinguia os brasileiros como “os mais alegres” do torneio.[4] O ethos festivo, no entanto, não excluía os componentes indispensáveis para a campanha exitosa do time, construída, segundo A Gazeta Esportiva, com base na combinação “de classe e de raça”, de “categoria e de frieza”.[5]

O periódico paulista, dessa maneira, consolidava um padrão interpretativo a respeito da série impressionante de conquistas obtidas por equipes do país em um curto lapso de tempo. Fosse a Copa do Mundo, na Suécia, em meados de 1958, fosse o Mundial de Basquete, no Chile, no início de 1959, a narrativa produzida pelo jornal a respeito dos referidos sucessos acionava uma rede de categorias dentro da qual a noção de “raça” emergia como ponto nevrálgico do esquema explicativo. Ela, por certo, não se revestia do mesmo significado em todos os textos, em determinados contextos surgia cercada de ambiguidades e imprecisões semânticas, oscilando entre o conceito e a metáfora, ora aludindo a uma suposta realidade objetiva (na acepção consagrada pelo racismo pseudocientífico), ora evocando a potencial capacidade coletiva (na interpretação proporcionada pelo tropo linguístico).

As lutas simbólicas travadas no campo esportivo tomavam-na como referência quase incontornável, mesmo quando se tratava de negar-lhe qualquer valor epistemológico ou fundamento científico, como nos revela o exemplo da corrida internacional de São Silvestre, considerada, então, “a maior prova pedestre do mundo”, consoante os termos superlativos tão ao gosto de A Gazeta Esportiva, a organizadora do tradicional evento de atletismo que animava os festejos de fim de ano na cidade de São Paulo.[6] Alinhemo-nos por um instante ao lado dos cerca de quinhentos mil espectadores que na virada do ano de 1958 saíram às ruas para acompanhar a trigésima quarta edição da competição a fim de perscrutarmos a questão em tela.

São Silvestre
Fonte: Wikipedia

Em contraste com os desempenhos do basquete e do futebol, o do atletismo provocava desapontamento no público e na crônica. O artigo de José Silveira em A Gazeta Esportiva captava e exprimia a expectativa inicial criada em torno da prova: “viemos de vitória em vitória o ano todo, e não seria nos últimos minutos, no apagar das luzes do velho ano, que um estrangeiro, em nossa casa, iria nos derrubar”.[7] Mas foi precisamente o que ocorreu naquela noite quando o argentino Osvaldo Suarez cruzou a linha de chegada em primeiro lugar. O brasileiro José Calixto, por sua vez, apareceu somente em nono lugar. A ordem de chagada levava o jornal a soar o alarme: “Alguma coisa precisa ser feita”.[8]

Com efeito, desde 1945, quando os forasteiros começaram a participar da corrida, os nacionais foram caindo ano após ano na classificação geral, cedendo os primeiros postos aos convidados internacionais. Foi assim, por exemplo, na passagem do ano de 1953 quando o corredor da então Checoslováquia, Emil Zatopek, recordista mundial e campeão olímpico, alcunhado de a “locomotiva humana”, obteve o primeiro lugar na prova, cabendo ao brasileiro Luiz Gonzaga Rodrigues um “honroso” terceiro lugar.[9] Todavia, nas duas últimas edições a queda dos atletas nacionais tinha se revelado “vertiginosa”.[10] O “drama brasileiro” na São Silvestre demandava explicação.[11] José Silveira se apressava em fornecê-la aos leitores, descartando de antemão a versão que circulava pela sociedade paulistana. Atentemos para a crítica feita pelo articulista a propósito do “reinado dos estrangeiros”:

Errada e até maliciosa a ideia de que eles são melhores que os nossos, têm mais raça, mais eugenia, mais isto e mais aquilo.[12]

Ou seja: na “fabulosa corrida da meia noite”, como em um sortilégio, a nação brasileira via-se mais uma vez metamorfoseava em “raça” inferior, deixando-se assombrar por crenças que nem mesmo a conquista da Copa da Suécia parecia capaz de dissipar. Isto, contudo, não significa dizer que nada havia mudado desde então. Ao contrário. Como salientado mais acima, o futebol passara a servir de parâmetro para o desempenho nas demais modalidades esportivas: “Se tivéssemos desanimado com os nossos malogros na Taça do Mundo de 38, 50 e 54”, ponderava A Gazeta Esportiva, “jamais teríamos chegado à vitória máxima e inigualável de 58”.[13] Os textos publicados na esteira da São Silvestre convergiam no esforço conjunto de exorcizar os espectros que teimavam em rondar a nacionalidade. Todos, sem exceção, argumentavam que a razão do insucesso residia na ausência de uma preparação física adequada, na falta de planejamento estratégico, na inexistência de apoio suficiente aos atletas brasileiros, os quais, desse modo, acabavam eximidos de responsabilidade pelo rendimento insatisfatório na corrida. De acordo com José Silveira, era-lhes impossível vencê-la com base “exclusivamente na raça ou na mística”.[14]

A palavra “raça”, como se vê, surgia investida do dom da ubiquidade, sendo empregada a torto e a direito nos artigos e reportagens que versavam sobre os milagres e os malogros do futebol, do basquete e agora também do atletismo. Porém, como nos mostra de forma emblemática os dois textos supracitados do jornalista de A Gazeta Esportiva, ela comparecia neles com significados distintos e valores opostos: no primeiro caso, para ecoar negativamente os comentários e as discussões de cunho racista em curso na metrópole; no segundo caso, para denotar positivamente as noções de fibra, ardor e intrepidez, de uso corrente no esporte. Mas não devemos nos deixar enganar por esta acepção aparentemente anódina da expressão. Convém observar que ela não emergia no vazio, e, sim, em contraposição à categoria simétrica, mas inversa, do “complexo de inferioridade”, utilizada amiúde nos anos cinquenta para retratar a suposta instabilidade emocional, fragilidade psíquica ou ausência de coragem de determinados atletas brasileiros, leia-se, os de ascendência africana.

O jogo textual em torno do termo “raça”, portanto, comportava inúmeras interpretações e abrigava diversos processos, nem todos convergentes, pois, de um lado, temos a expressão rasurada, colocada entre aspas, acionada no registro metafórico que a despojava das significações mais negativas associadas ao racismo pseudocientífico; e, de outro lado, vemo-la revestir-se de um novo prestígio no campo esportivo, graças justamente à polarização estabelecida com a noção contrastiva do “complexo de inferioridade”. É no interior desta trama semântica que devemos interpretar o texto no qual José Silveira esgrimia todas as armas teóricas para combater a hipótese racista do “drama brasileiro” na São Silvestre.

A despeito das boas intenções do articulista, contudo, a mensagem por ele veiculada soava dúbia e traiçoeira à medida que se achava ilustrada por uma charge que retratava de forma caricata a figura de um competidor negro, por certo, referência a José Calixto, o nono colocado na prova. A ilustração parecia contradizer o artigo. Ou, ao menos, induzia o leitor a vincular o problema racial ao atleta negro. Tal vínculo revestia-se de inúmeras formas, adquiria feições peculiares em cada esporte, irrompia de tempos em tempos, colocando em questão os mitos fundadores da nacionalidade.


Notas

[1] Cf. “Maria Esther campeão em Wimbledon: o mundo curva-se mais uma vez ante a força do esporte brasileiro”, Folha da Manhã, 5 de julho de 1959.

[2] Cf. “Ratificada a incoerência soviética”, A Gazeta Esportiva, 27 de janeiro de 1959. Dessa maneira, o Brasil não teve que passar pelo confronto com a URSS para chegar à final. Ao lado dos EUA, a URSS era considerada forte concorrente à conquista do torneio.

[3] Cf. “Wlamir – o Diabo Loiro de sempre”, A Gazeta Esportiva, 27 de janeiro de 1959. Cf. “Semeando nasce o futuro…” A Gazeta Esportiva, 4 de março de 1959.

[4] Cf. “Rosa Branca já uma figura muito popular”, A Gazeta Esportiva, 18 de janeiro de 1959.

[5] Cf. “Vitória de classe e de raça dos nossos cestebolistas”, A Gazeta Esportiva, 24 de janeiro de 1959.

[6] Cf. “Espetacular a XXXIV São Silvestre”, A Gazeta Esportiva, 2 de janeiro de 1959. A corrida, criada em 1925, foi “idealizada” Casper Líbero.

[7] Cf. “O drama brasileiro na São Silvestre”, A Gazeta Esportiva, 4 de janeiro de 1959.

[8] Cf. “Tem um sentido grave a posição dos brasileiros nas últimas São Silvestre”, A Gazeta Esportiva, 9 de janeiro de 1959.

[9] Cf. “Emil Zatopek, recordista mundial e campeão olímpico, vencedor da São Silvestre de 1953”, A Gazeta Esportiva, 2 de janeiro de 1954.

[10] A última vitória de um competidor brasileiro remontava ao ano de 1946. A Gazeta Esportiva assumira a organização do evento em 1945 e ato contínuo passara a enviar convites aos corredores estrangeiros como estratégia para projetar o evento.

[11] Cf. “O drama brasileiro na São Silvestre”, A Gazeta Esportiva, 4 de janeiro de 1959.

[12] Cf. “A receita”, A Gazeta Esportiva, 7 de janeiro de 1959.

[13] Cf. “O drama brasileiro da São Silvestre, Calixto, Fatia e A. A. Matarazzo”, A Gazeta Esportiva, 9 de janeiro de 1959.

[14] Cf. “O drama brasileiro na São Silvestre”, A Gazeta Esportiva, 4 de janeiro de 1959.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Sortilégio a meia-noite. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 31, 2024.
Leia também:
  • 180.26

    A “elegância moral” versus o “parasitismo de cofre”

    Rodrigo Carrapatoso de Lima
  • 180.25

    Protagonismo do Corinthians Feminino: expressão máxima do que é ser Corinthians na atualidade

    Julia Menossi
  • 180.24

    Estádio, memória e direito à cidade: anotações em torno de um projeto de pesquisa

    Lívia Gonçalves Magalhães, Rosana da Câmara Teixeira