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Um grande Passo, mas ainda, um pequeno passo

Felipe Torres Benevides 19 de abril de 2023

I – Introdução

O futebol moderno foi dado de presente à humanidade ainda no século XIX, e, segundo a FIFA, o ano exato é 1863. Naquela época, não havia jogadores profissionais desfilando músculos trabalhados, não havia o luxo da atmosfera produzida pelo grande produto que vemos hoje. Não havia sequer espaço para integração de classes sociais. Não havia a profissão jogador de futebol, não havia operários praticando o esporte, não havia negros no mundo futebolístico.

A Europa só pôde se encantar com o talento e a exuberância dos movimentos de um jogador negro nas Olimpíadas de 1924; o nome deste pioneiro, que está para sempre gravado na história do esporte mais praticado no mundo, é José Leandro Andrade, diretamente do Uruguai. Segundo conta Eduardo Galeano em sua preciosa obra “O Futebol ao Sol e à Sombra”, a imprensa francesa ficou deslumbrada e o público aclamava aquele que ficou conhecido como “A Maravilha Negra”.

Trazer a memória desta evolução histórica do futebol é fundamental, sobretudo no nosso tempo, que basicamente não possui fronteiras, em que posso assistir a uma partida da Champions League na minha TV ou no meu celular, e admirar um jogador francês negro anotar o gol da vitória sobre um time francês cujos maiores ídolos são negros, sediado em um país cuja seleção nacional está abarrotada de negros.

Posso, durante o final de semana, ver um jogo do Real Madrid, o maior e mais vitorioso time do mundo, sendo liderado por dois jovens brasileiros negros, e me deleitar com suas jogadas plásticas, com a velocidade de seus movimentos e inclusive notar que, em pouco mais de um ano, eles ganharão a companhia de mais um jovem de origem humilde e negro vindo do Brasil. Posso assistir apenas ao campeonato brasileiro e ver a enorme quantidade de jogadores negros atuando por cada agremiação.

No entanto, repito, é fundamental trazer a memória da evolução histórica do esporte. O futebol ainda é desigual, excludente, opressor e tais fatos muitas vezes escapam ante os rumores de transferência do meu ou do seu time, ante as demissões de técnicos a cada resultado ruim ou a cada nova linda jogada que surge por aí.

Em um momento grave da história de nosso século, no qual o flerte com ideias e práticas que nunca deveriam ter acontecido ressurgem, em que os casos de racismo dentro e fora do esporte só aumentam, somados, ainda, à vinculação de grupos extremistas à torcidas de equipes tomando conta dos estádios na Europa _– e em que competições inteiras são marcadas pela discriminação do torcedor rival pela cor de sua pele ou por sua origem (ou então orientação sexual e gênero) –, o futebol brasileiro deu um pequeno grande passo no enfrentamento destas questões.

No dia 14 de fevereiro de 2023 foi aprovado e divulgado o novo Regulamento Geral de Competições (RGC) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Embora ainda haja muito a ser feito, pela primeira vez em todo o mundo, o documento propõe a punição dos clubes com perda de pontos, multas e proibição de registro de novos jogadores.

Tal fato é simbólico por ser pioneiro em todo o planeta, mas também por ter sido aprovado de maneira impositiva pela CBF – sem abrir margem para votação e discussão dos clubes que poderiam relaxar essas sanções –, e por ser resultado da atuação do primeiro presidente negro da confederação brasileira em mais de 100 anos de existência, o Sr. Ednaldo Rodrigues. As respectivas punições e as devidas análises do regulamento que passou a vigorar a partir do dia 22 de fevereiro de 2023 serão realizadas nos próximos parágrafos.

II – O RGC

O RGC contém as diretrizes e normas para a realização de todas as competições organizadas e dirigidas pela CBF, além de conferir atribuições de papéis e responsabilidades a todos atores envolvidos nessas competições. Sua adesão é obrigatória para qualquer clube que almeje participar em tais campeonatos.

O documento é taxativo e claro já a partir do primeiro parágrafo do artigo primeiro: “As competições do futebol brasileiro exigem de todos os intervenientes colaborar de forma a prevenir comportamentos antidesportivos, bem como violência, dopagem, corrupção, manifestações político-religiosas e político-partidárias, racismo, xenofobia, sexismo, LGBTfobia ou qualquer outra forma de discriminação”. Dessa forma, o clube aderente deve nortear a conduta de seus colaboradores, atletas e adeptos segundo essas diretrizes.

O RGC prossegue tratando de outros aspectos normativos e só retoma essa temática na penúltima página, por meio do Art. 134, disponível na íntegra a seguir:

  • Art. 134 – A inobservância ou descumprimento deste RGC, assim como dos RECs, sem prejuízo de outras penalidades estabelecidas no presente Regulamento, sujeitará o infrator às seguintes penalidades administrativas que poderão ser aplicadas pela CBF, de forma cumulativa ou não, não necessariamente nesta ordem:
  • I – advertência;
  • II – multa pecuniária administrativa, no valor de até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), a ser revertida em prol de causas sociais, inclusive através da dedução de cotas a receber;
  • III – vedação de registro ou de transferência de atletas; e
  • IV – Perda de pontos, em relação a clubes por infração ao disposto no §1º e observado o §4º.
    • § 1° – Considera-se de extrema gravidade a infração de cunho discriminatório praticada por dirigentes, representantes e profissionais dos Clubes, atletas, técnicos, membros de Comissão Técnica, torcedores e equipes de arbitragem em competições coordenadas pela CBF, especialmente injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia, procedência nacional ou social, sexo, gênero, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, fortuna, nascimento ou qualquer outra forma de discriminação que afronte a dignidade humana.
    • § 2º – Na hipótese de reincidência das infrações elencadas no parágrafo primeiro, independentemente das sanções que venham a ser aplicadas pela Justiça Desportiva e de eventual apuração e responsabilização por crime, a multa pecuniária administrativa máxima poderá ser aplicada em dobro, que será integralmente revertida para entidade representativa de proteção de direitos, conforme o caso.
    • § 3º – Em conformidade com o sistema associativo do futebol e os termos do Estatuto da CBF, as penalidades previstas no caput têm natureza administrativa e serão aplicadas pela CBF independentemente das sanções de natureza disciplinar que venham a ser cominadas pela Justiça Desportiva com base no CBJD.
    • § 4º – A penalidade disposta no art. 134, IV poderá ser imposta administrativamente pela CBF, encaminhado-se o caso ao STJD para apreciação, ficando sua cominação definitiva condicionada ao julgamento do STJD sobre a aplicação da perda de pontos ao clube infrator.
    • § 5º – Para além das sanções administrativas e disciplinares impostas, a CBF, em linha com legislação vigente e, em especial, a Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023, encaminhará ofício às autoridades competentes (dentre as quais, o Ministério Público) para apuração e eventual responsabilização dos infratores, inclusive instauração de inquéritos, eventual tipificação de crime e responsabilização criminal, e poderá determinar aos infratores a promoção de campanhas, palestras e outras medidas de cunho educacional, bem como a apresentação de plano de prevenção e combate dessas infrações de extrema gravidade.

III – Análise Crítica

Antes de iniciar a análise crítica dos impactos de tais medidas, gostaria de destacar que o artigo acima transcrito só obteve maior chance de êxito a partir da sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei n.º 14.532/2023, que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo, configurando um avanço importante para o combate com mais seriedade e sucesso a essa violação dos direitos dos sujeitos.

Se tal lei tivesse sido sancionada antes, por exemplo, os torcedores argentinos que foram indiciados por injúria racial no jogo contra o Corinthians pela Copa Libertadores de 2022 ainda estariam presos. Não que isso fosse evitar novos episódios ou promover uma mudança de consciência, mas serviria de alerta educativo sobre condutas criminosas no ambiente esportivo.

Voltando ao RGC, a inovação está na responsabilização dos clubes pelos comportamentos de seus torcedores, sujeitando-os a perda de pontos e inviabilização de registros de novos atletas. A ideia é que isso obrigue os times a adotarem medidas mais sérias e que o torcedor, percebendo que seu comportamento prejudica diretamente o clube, se sinta inibido de cometer atos discriminatórios de qualquer natureza. Faz sentido, e estabelece medidas que não são apenas punitivas, mas apontam para uma tomada de consciência compartilhada.

Do ponto de vista do jogo, há aqui uma chance real de influência no resultado das competições. Sobretudo no Campeonato Brasileiro, disputado por pontos corridos – lembrando que, quanto mais pontos, melhor a colocação, quanto melhor a colocação, maior o prêmio que o clube recebe da CBF. Isso impacta diretamente na contratação de atletas para a temporada seguinte, na negociação de contratos de patrocínio e cotas de TV.

Um clube que está flertando com o rebaixamento, naturalmente, já sofre grandes prejuízos financeiros. A perda dos pontos pode implicar a concretização desse flerte e transformar radicalmente a estrutura financeira de um clube, que, na maioria das vezes, já não é boa. Portanto, das punições cabíveis, essa é a que deve preocupar mais o conjunto equipe e torcedores.

Por outro lado, a variação da multa, que pode constituir um fator de justiça considerando o tamanho dos clubes e sua capacidade financeira, pode ser um obstáculo importante para a aplicação dessas penalidades. Isso porque, no mundo do futebol, o teto de quinhentos mil reais pode ser muito ou pode ser ínfimo, sendo uma sanção mais perigosa aos pequenos times do que aos grandes.

A título de exemplo, em 2022 e considerando apenas bilheteria, o Flamengo arrecadou setenta e dois milhões de reais. Logo após temos Corinthians, com sessenta milhões de reais, e Palmeiras, com quarenta e nove milhões de reais. Esses são times que normalmente arrecadam dois milhões de reais por jogo, em um cálculo estimado e simplificado. Os demais que compõem a elite do futebol brasileiro, embora distantes do pódio, ainda arrecadam muito, tornando a multa apenas uma formiga no meio do caminho.

No entanto, destaco que o texto do RGC é muito superior ao apresentado pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que aplica suspensão de cinco a dez partidas em caso de atletas ou funcionários do clube e de 120 a 360 dias se praticadas por qualquer outra pessoa natural submetida ao código, além de uma multa que varia entre R$ 100 e R$100.000.

Para os casos em que a infração é praticada por um número considerável de pessoas vinculadas à agremiação, o clube será punido com a perda de pontos equivalente a uma vitória (no caso do futebol, 3 pontos) – o dobro no caso de reincidência. Somente em casos que não há atribuição de pontos, há a exclusão da equipe. Tudo isso segundo o CBJD.

Feitas essas considerações, gostaria de elencar alguns obstáculos e desafios para a implementação do processo, além de apresentar algumas observações gerais.

A meu ver, o grande obstáculo à implementação das penalidades previstas no RGC é a dicotomia entre o papel e a realidade. Explico melhor: o meio futebolístico, em geral, tende ao corporativismo, sobretudo nos casos em que os grandes clubes estão envolvidos. Dessa forma, é possível que punições mais brandas, como a multa e a advertência, sejam adotadas na maioria dos casos. Há precedentes para pensar dessa forma e não devemos ignorá-los.

Uma resolução da FIFA, aprovada em 2013, estabelece que o clube envolvido em casos de qualquer natureza prevista no artigo 134 do RGC pode ser excluído da competição ou rebaixado de divisão. No entanto, não param de surgir casos em que clubes e seus torcedores estão envolvidos em casos de racismo, como, por exemplo, o que aconteceu com os torcedores brasileiros que sofreram ataques discriminatórios em diversas partidas da Copa Libertadores da América em 2022, os ataques que o atleta Vinicius Jr. vem sofrendo na Espanha dentro e fora de campo e as imitações de sons de câmaras de gás em torcidas durante partidas de futebol. Em nenhum desses casos a punição foi aplicada.

Por fim, deve-se atentar para o fato de que as medidas impostas pela CBF no RCG contemplam apenas a dimensão punitiva, deixando lacunas para a prevenção, que pode ser feita por meio de ações coletivas entre clubes, federações, municípios, estados e União, além de entidades da sociedade civil organizada.

IV – Considerações Finais

Em resumo, o presente ensaio objetivou apresentar a inovação no enfrentamento de ataques discriminatórios apresentada pela CBF em seu Regulamento Geral de Competições para 2023, e, de maneira ainda menos densa, buscou-se explorar as implicações de tais medidas, seus possíveis impactos e determinar pontos sensíveis.

Destaca-se a importância da medida tomada pela CBF em um esporte ainda desigual, incluso em uma sociedade também desigual. O futebol, como reflexo das dinâmicas sociais que vemos fora de campo, tem muito a evoluir, e tal medida representa ainda um pequeno grande passo, embora seja um pequeno passo elaborado por uma confederação entre muitas outras que integram o ecossistema futebolístico.

Entende-se que as medidas são fundamentais, porém insuficientes, para prevenir os casos de racismo, xenofobia, antissemitismo, entre outros. Observa-se a necessidade de ações coordenadas entre os atores que compõem a sociedade brasileira, bem como da comunidade global, para o enfrentamento de um problema complexo com amplas raízes históricas e conectado com diversos aspectos culturais, políticos, religiosos, enfim, com variáveis que se fazem presentes no ambiente do futebol, mas que permanecem invisíveis até que um novo caso aconteça e torne a desaparecer em meio às amarguras e belezas do esporte.

Para finalizar, destaco que não se trata apenas de vigiar e punir, mas de prevenir, corrigir no presente para não acontecer no futuro, por todos os meios possíveis e válidos para que a pergunta “até quando?” não permaneça em nossas mentes e em nossos corações.

Referências

BRASIL. Sancionada lei que tipifica como crime de racismo a injúria racial. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/01/12/sancionada-lei-que-tipifica-como-crime-de-racismo-a-injuria-racial>. Acesso em: 15 fev. 2023.

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. RGC: Regulamento Geral das Competições-2023. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202302/20230214221219_73.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2023.

DOUGLAS PORTO. Torcedor do Boca Juniors é flagrado fazendo gestos racistas à torcida do Corinthians. 2022.

EDUARDO GALEANO. O Futebol ao Sol e à Sombra. [s.l.]: L&PM Pocket, 2004.

LUCAS VETORAZZO. O faturamento dos clubes brasileiros com torcedores nos estádios em 2022. 2022. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-faturamento-dos-clubes-brasileiros-com-torcedores-nos-estadios-em-2022/>. Acesso em: 15 fev. 2023.

OBSERVATÓRIO RACIAL DO FUTEBOL. CBF define que racismo será punido em todas as competições nacionais. Disponível em: <https://observatorioracialfutebol.com.br/cbf-define-que-racismo-sera-punido-em-todas-as-competicoes-nacionais/>. Acesso em: 15 fev. 2023.

OBSERVATÓRIO RACIAL DO FUTEBOL. O que diz a FIFA. Disponível em: <https://observatorioracialfutebol.com.br/legislacao/o-que-diz-a-fifa/>. Acesso em: 15 fev. 2023.

OBSERVATÓRIO RACIAL DO FUTEBOL. O que diz o CBJD. Disponível em: <https://observatorioracialfutebol.com.br/legislacao/cbf/>. Acesso em: 15 fev. 2023.

O texto foi publicado originalmente em 13/03/2023 no Portal Offlattes do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (LABÔ) da PUC-SP. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Torres Benevides

Bacharel em Administração pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). Pesquisador do Projeto Estudos da Diáspora: racismo e antissemitismo (LABÔ e Instituto Brasil-Israel - IBI), onde desenvolve pesquisa sobre racismo no futebol espanhol.

Como citar

BENEVIDES, Felipe Torres. Um grande Passo, mas ainda, um pequeno passo. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 19, 2023.
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