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Jovens jogadores, vicissitudes e movimentos

Em um processo seletivo para ingresso na pós-graduação, há alguns anos, avaliávamos o currículo de um candidato ao qual me referi, lá pelas tantas, como um garoto. De bate-pronto, ouvi de uma veterana colega que no seu tempo alguém naquela idade, 22 anos, já era homem feito. Em que pese tudo ter mudado tanto, com a juventude se estendendo até sei lá quantos anos, dei-lhe razão. Certamente tratava-se de um jovem, mas a experiente professora alertava, mesmo talvez sem intenção, para um movimento muito deletério que vivemos na Universidade, que é o da infantilização dos alunos que a frequentam. Para dizer a verdade, muitos de nós, professores, tampouco escapamos dessa regressão.

No futebol, com vinte e poucos anos, ou se é jogador ou nada mais pode ser feito. Nessa idade, já se soma muito tempo na labuta, que começa de forma cada vez mais precoce e exigente nas categorias de base. Aliás, a maioria que passou pela formação em clubes, que é para poucos, sequer chega a atuar profissionalmente, uma vez que os processos de seleção vão sendo cada vez mais duros e excludentes. Observar a trajetória de alguns ajuda a entender os destinos do ofício de futebolista e também um pouco do que acontece no Brasil para além das quatro linhas do campo. Três deles, aos 22 anos, estiveram em diferentes posições nesta semana: o goleiro Matheus Donelli, do Corinthians, e os atacantes Gabriel Veron e John Kennedy, respectivamente de Cruzeiro e Fluminense.

Donelli, formado no Parque São Jorge, e Veron, que compôs a vitoriosa base do Palmeiras, foram os dois principais destaques da conquista brasileira da Copa do Mundo sub-17, disputada em Brasília em 2019. O goleiro ganhou o troféu Luva de Ouro, enquanto o atacante alcançou a Bola de Ouro. O primeiro, com apenas 10 partidas como profissional do Timão, foi recentemente alçado à condição de titular da meta do Corinthians que, por um conjunto inusitado de circunstâncias, viu-se repentinamente sem suas duas primeiras opções, Cássio e Carlos Miguel. A imprensa o trata como garoto, apesar de o clube ter contado ao longo de sua história com atletas da posição até mais novos, entre eles um de seus maiores, Ronaldo Giovanelli, titular a partir de 1988, aos 20 anos. Veron, por sua vez, foi promovido aos profissionais ainda naquele 2019, participando de uma série de títulos que o Verdão conquistou até 2022, quando foi cedido ao Futebol Clube do Porto. Sem sucesso nos Dragões, muito por causa de uma sucessão de lesões, está desde dezembro passado emprestado ao Cruzeiro e no domingo passado marcou um belo gol, que recebeu destaque também na imprensa portuguesa, feito repetido na quarta-feira.

Gabriel Veron. Fonte: Flickr/Cruzeiro
Gabriel Veron. Fonte: Flickr/Cruzeiro

Não deixa de ser curioso que ambos, Donelli e Veron, tenham trajetórias desde sempre ligadas ao futebol. O ex-palmeirense desconversa, mas seu nome é uma homenagem a Juan Sebastián Verón, la Brujita, ídolo e presidente do Estudiantes de La Plata, Argentina, jogador com grande carreira no meio-campo de seu clube formador, mas também no Manchester United, Parma e Internazionale, além de na seleção argentina. O goleiro, por sua vez, formou-se corintiano, antes que jogador, ao frequentar as arquibancadas do Pacaembu acompanhando o histórico torcedor Sylvino Donelli Neto. Coube ao pequeno Matheus, aos 10 anos, entrar no estádio com uma faixa em homenagem ao avô, que falecera havia poucos dias, na segunda partida das semifinais da Libertadores de 2012, contra o Santos.

Donelli e Veron são muito bons e podem chegar a ser excelentes, mas mais espetacular que ambos é John Kennedy, do Fluminense, aquele que deu certo, mas tinha tudo para dar errado, como lembra Milly Lacombe. Sim, com pouco mais de duas décadas de vida, ele já alcançou muito êxito, sendo o maior deles o gol que sacramentou o título da Copa Libertadores para o Fluminense no ano passado. Sim, ele já foi afastado do elenco algumas vezes, tendo sido inclusive emprestado à Ferroviária de Araraquara, pela qual fez ótimo Campeonato Paulista em 2023. Recentemente, festas no hotel de concentração com colegas o levaram à nova punição, já superada. Para completar o quadro do mal momento do clube, em último lugar na série A do Brasileiro, foi ameaçado antes do Fla x Flu de domingo por vândalos irracionais que se vestem de torcedores do Tricolor das Laranjeiras.

O jogador do Fluminense tem nome de grande celebridade, algo comum nas camadas populares que às vezes batizam seus filhos com a desesperada esperança de que o registro civil possa determinar o destino. O fato de os herdeiros das camadas médias e superiores receberem, com frequência, denominações tradicionais (uma personagem de Giovana Madalosso diz que os ricos economizam letras e colocam nomes curtos em seus rebentos), é a contraparte distintiva desse movimento. John Kennedy, ademais, é pai desde os 18 anos e ao seu primogênito se juntou uma bebê no ano passado. Sem quitar-lhe a imputabilidade, lembro que o atacante do Flu é expressão de nossa responsabilidade com os jovens neste país que é especialista em desperdiçar talentos. Em muitos aspectos ele lembra o falecido Denner, morto aos 23 anos em um acidente automobilístico em 1994 que deixou três crianças sem pai. O futebol mudou nesses 30 anos, e o atacante de ontem tinha mais espaço em campo para mostrar habilidade, enquanto o de hoje joga com menos metros livres e mais responsabilidades táticas. Mas há muitas semelhanças entre ambos, uma delas, além do engenho incrível, é que são negros em um país racista.

É de singularidades que vive a juventude, essa categoria com carga histórica e social que faz com que um rapaz e uma moça da periferia de São Paulo não se subjetivem um da mesma maneira que o outro, menos ainda que se assemelhem a seus coetâneos dos quartiers insalubres parisienses, por exemplo. Mas isso também tem seu outro lado, já que há algo de universal, ao menos no ocidente, na experiência de ter alguns anos de vida. Dito isso, seria ótimo se John Kennedy, assim como seus coetâneos Matheus Donelli e Gabriel Veron, atentassem para outros jovens, do outro lado do Atlântico. Para horror de alguns, o craque Kylian Mbappé seguiu o pioneiro pronunciamento de seu companheiro Marcus Thuram, que há poucos dias exortou a juventude francesa a votar contra a extrema-direita nas próximas eleições legislativas. Palmas para eles e oxalá nossos futebolistas também se engajassem nessa luta.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Jovens jogadores, vicissitudes e movimentos. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 29, 2024.
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