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“Apertou muito forte o quadrado”: aprendizagem multidimensional

Enrico Spaggiari 11 de setembro de 2017

Confesso que as transmissões de torneios e campeonatos de futebol digital e virtual (ou futebol de videogame) que têm ganhado cada vez mais visibilidade nos canais televisivos, principalmente os da TV a cabo, ainda me deixam aturdido. O envolvimento intenso de praticantes e espectadores com tais modalidades, bem como a receptividade midiática, geram inquietações das mais diversas. Afinal, o que realmente há de futebol ou mesmo esportivo nesse formato moderno e tecnológico de “jogo de bola”? Qual a ideia de corporalidade presente ali? Bola, campo (terra, gramado), jogadores, vento, chuva: como pensar o futebol sem sua materialidade? Por certo, hoje, mais do que nunca, existem múltiplas formas de se pensar o futebol, principalmente quando relacionado às demandas do universo espetacularizado. O que me faz recordar de observações antigas, mas que revelam questões ainda muito atuais.

Durante a minha pesquisa de mestrado, centrada em uma longa etnografia sobre o processo de ensino e aprendizagem de futebol em bairros da zona leste de São Paulo, percebi que era fundamental compreender a transmissão do saber futebolístico em outros espaços para além das escolinhas de futebol – tomadas até então como locus privilegiados de análise.

Entre os diversos espaços que espaços rivalizavam, cada um a seu modo, com o campo de futebol da escolinha que eu acompanhava em Itaquera – uma quadra poliesportiva, uma pequena área de um bar e as ruas do bairro –, realizei algumas observações em duas casas de jogo em rede e internet – conhecidas como lanhouses – no bairro da escolinha de futebol, principal recorte de estudo até então. Por quê? Ao longo do trabalho de campo, notei que certas atitudes e ações adotadas pelas crianças e jovens nos treinamentos faziam referência ao futebol jogado no videogame.

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Lance do jogo FIFA fabricado pela EA Sports.

As lanhouses abrigavam formas de sociabilidade realizadas por meio das novas tecnologias de comunicação, em redes mediadas por computador, tanto com interações no ciberespaço – que envolviam emails, games, os extintos MSN e Orkut –, quanto nos espaços físicos das lanhouses. Dentro da lanhouse, os olhares estavam voltados para as telas do computador e delas não se desviavam. Ecoavam gritos e xingamentos que se misturavam com risadas dos jovens, presentes em qualquer horário, com fones nos ouvidos e imersos no jogo: “O doido é jogar com muita gente. Sozinho perde a graça”, apontava Guilherme. A maioria dos jovens ali presentes no momento da observação residia próxima à lanhouse, sendo que muitos deles já se conheciam da escola ou da rua, visto que eram moradores das proximidades. Fazem das lanhouses pontos de encontro e de sociabilidade. Portanto, em vez de ficarem jogando sozinhos em casa, situação característica dos donos de videogame, os jogadores compartilhavam um espaço de convivência.

Junto com os computadores, as duas lanhouses ofereciam consoles de videogame, principalmente o Playstation da Sony. Os videogames eram utilizados quase que exclusivamente para jogar futebol: “Eu mesmo, deve fazer uns dois anos que não jogo bola. Só no videogame mesmo… a diferença é que nele sou bom” comentou o jovem Wagner. “Acho que até melhorei no campo com a experiência no videogame”, completou. Questão levantada pela observação dos treinos e jogos que acompanhava concomitantemente na escolinha de futebol.

Ao observar as crianças jogando futebol no videogame dentro da lanhouse, pude perceber a reprodução, concomitante ao jogo, de movimentos corporais semelhantes aos realizados no campo do CDM. Utilizavam-se do corpo para mostrar como os jogadores virtuais deveriam ter cabeceado a bola; como deveriam ter chutado; qual era o drible certo a realizar naquele momento; argumentar as razões para não levar cartão amarelo; demonstrar que fez um movimento em direção à bola. Aprendia-se observando os amigos jogando, seus gestos, as posições corporais que adotam durante as partidas e, principalmente, quais as combinações de botões acionadas em determinados lances do jogo. Olhos, pernas, pés, tronco eram estimulados e respondiam de acordo com o que ocorria na partida virtual.

Era comum, ainda, observar discussões sobre esquemas táticos a serem utilizados, espaços a serem preenchidos, tipos de marcação e de contra-ataque, quando fazer marcação individual ou por zona, etc. Percebia, também, que era um espaço de aprendizado e internalização das regras, principalmente para os garotos menores: “por que ele apitou?”, “ah, não merecia cartão vermelho”, “isso ai é para cartão amarelo”, “não estava impedido”, eram diálogos comuns durante a disputa do jogo. Os jovens aproveitavam, ainda, o espaço da lanhouse para dividir os segredos e dicas dos jogos, que obtiveram por meio de revistas especializadas ou na internet. Tais dicas permitiam a aplicação de dribles, chutes e passes diferentes, outras formas de acirrar a marcação e roubar as bolas etc.

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Esquema tático do FIFA 2017.

No campo de terra, utilizado para as atividades da escolinha de futebol próxima, por outro lado, as crianças repetiam gestos e movimentos de jogadores virtuais dos games de futebol, conversavam sobre aspectos técnicos e táticos por meio de exemplos virtuais (“eles jogam que nem a Holanda, [com] dois pontas abertos, mas que fecham no meio se perdem a bola”) e utilizavam expressões que faziam referência ao jogo de videogame (“apertou muito forte o quadrado”, para falar que o companheiro de time chutou a bola muito por cima do gol; “deu o triângulo na hora errada”, para criticar o lançamento errado do colega).

Cabe destacar, portanto, a importância dos jogos eletrônicos de futebol para a formação futebolística das crianças e jovens engajados na modalidade e voltados a uma difícil profissionalização. As opções de jogo no videogame podem ajudar no campo, inclusive compensar a falta de habilidade. Torna-se, assim, uma forma de aprendizado, bem como um atributo futebolístico.

O videogame (e os jogos eletrônicos, de forma geral) fazem parte, portanto, de um processo de aprendizagem vinculado a uma diversidade de usos do futebol e de experiências no espaço urbano, que dotam estas dimensões de novos significados, e de um modo que o futebol atravessa a vida dos jovens nos mais diversos sentidos: festa, trabalho, consumo, lazer. Isso é possível devido ao processo de realimentação mútua entre as diferentes práticas e modalidades. Os jogos mais espontâneos influenciam e interferem na dinâmica do futebol association, ao mesmo tempo em que o futebol espetacularizado, por seu lado, é a principal inspiração e o esporte mais popular entre os praticantes destas outras modalidades futebolísticas.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. “Apertou muito forte o quadrado”: aprendizagem multidimensional. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 11, 2017.
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