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Por uma sociologia do cotidiano em tempos de Copa do Mundo

Wagner Xavier de Camargo 24 de junho de 2018

Em tempos de Copa do Mundo de futebol masculino parece que a conversação sobre futebol sempre aumenta. As pessoas querem saber se você vai ou não torcer pela seleção brasileira (há uma expectativa que sim, obviamente) e não só explicitam o que sondaram sobre países e equipes estrangeiras, como perguntam também sua opinião a respeito dessas informações. As indagações são tão variadas e múltiplas que, muitas vezes, você nem sequer as havia imaginado, muito menos tem respostas para elas. Semana passada, ainda no esquenta-clima da Copa da Rússia, um senhor de uns setenta anos me interpelou, na antessala da barbearia, para me perguntar o que eu vejo (e, por extensão, entendi o que sinto, penso, desejo) quando assisto a partidas de futebol, especialmente dos jogos da Copa do Mundo.

Respondi que vejo muito privilégio ali instituído, principalmente quando se trata de jogadores homens, que sempre tiveram amplos acessos a esta modalidade e liberdade para jogá-la desde suas origens. Isso não foi o caso, por exemplo, das mulheres, que demoraram a se inserir no futebol e mesmo foram impedidas (no Brasil legalmente até 1979) de praticá-lo. Vejo, portanto, um privilégio de gênero instituído e oficializado na modalidade.

Respondi também que, ao assistir a esse futebol dos dias de hoje, identifico muita violência no entorno da partida. Dentro do campo, jogadores se engalfinham, se derrubam, se puxam e se pisam. A violência parece ter se transformado na forma legítima de posse de bola. E, mais do que isso, parece ter institucionalizado um modo de jogar que ofusca aquele que vi quando era criança, o de um futebol-arte, com voleios, bicicletas, chapéus, chutes de calcanhar, que me fascinavam. Fora de campo, nas arquibancadas, a violência física impera entre torcedores: grupos se agridem, pessoas são esmurradas, esbofeteadas, esfaqueadas; sangue e morte por todos os lados.

Ainda no que diz respeito às arquibancadas, respondi ao curioso senhor que vejo desrespeito generalizado oriundo destes lugares. Gritos ofensivos de “filho da puta”, “bicha”, “maricas”, “juiz ladrão”, “queima-rosca”, “macaco”, proferidos a quatro ventos, não apenas deflagram atos racistas, homofóbicos, sexistas, como me ofendem profundamente enquanto ser humano e ser social, membro da sociedade na qual estou inserido. Portanto, há desrespeito ao outro, à alteridade num nível grosseiramente rudimentar.

Mas nem tudo da arquibancada é desagradável ou desprezível. Respondi que quando lá estou e assisto a uma partida de futebol masculino também vejo, mais atualmente, relações afetivas que se desenvolvem entre amigos/as, familiares, pessoas de várias gerações (avós e netos/as) e, inclusive, identifico a presença de casais homoafetivos, de dois homens ou duas mulheres juntos/as, que apreciam e torcem pelo futebol. Nesse último caso, identifico também (e infelizmente) a amargura e a tristeza da invisibilidade, de quem não pode se beijar ou acariciar em público por medo de represálias!

Torcedores acompanham o jogo entre Brasil e Costa Rica no Pontão do Lago Paranoá.Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil
As pessoas querem saber se você vai ou não torcer pela seleção brasileira .Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Respondi, igualmente, haver injustiça no majestoso futebol. Muitos dos atletas que vejo jogando, particularmente em times de segunda e terceira divisões no Brasil, dão seu sangue por um lugar de destaque, que talvez nunca vá chegar. Milhares desses jogadores ganham até um salário mínimo, muitas vezes sustentam já uma pequena família e vivem às sombras de Neymares, Messis e Cristianos Ronaldos. A desigualdade social de fora dos gramados impera mesmo dentro deles.

E reflito: de quem é a culpa por essa situação? De uma parte, do chamado “mercado da bola”, que dita as regras de passe/jogador, que supervaloriza uns e não outros, que legitima uma lógica capitalista para corpos e habilidades. De outra, da política esportiva inadequada ou inexistente (ao menos no Brasil), que serviria para encaminhar muitos desses atletas a outras modalidades, sub-representadas e não valorizadas. Assim, estamos diante de uma monocultura esportiva injusta e desigual.

Quanto a torcer pela seleção brasileira masculina na Copa da Rússia, bem, respondi que considero isso patriotismo excessivo, algo perniciosamente ufanista. Como não trato o esporte desvinculado da política, penso que não dá para se colocar absorto no momento em que vive o país e, simplesmente, parar tudo a fim de “torcer pelo Brasil”. Urgem temas mais candentes do que a Copa. Tenho percebido que supermercados, órgãos públicos, universidades, escolas, adequam seus expedientes aos horários dos jogos. Se isso é parte do que temos que levar em conta sobre o “ser brasileiro”, é igualmente algo que deve ser colocado em perspectiva crítica.

Para quem me conhece, e como não podia deixar de falar sobre isso, respondi ao simpático e curioso torcedor, o qual queria minha opinião sobre futebol naquele salão de barbeiros, que também vejo, quando assisto às partidas, corpos musculosos, suados, definidos e atraentes de homens que correm, se amontoam, se pegam, se abraçam a todo instante e isso é bastante erótico para mim, em que pese imaginar que (talvez) não o seja para a maioria dos torcedores homens. O futebol me inspira, me provoca, me habilita sexualmente. Vejo erotismo por todos os lados, do vestiário aos gramados, e fico feliz pelo esporte conter uma dimensão sexual, a qual aprecio.

Nesse momento da conversa, meu interlocutor da barbearia abaixa os óculos no limite inferior das narinas, suspira longamente, coloca seu indicador esquerdo transversalmente entre os lábios da boca e me olha. Entre o som de uma tesoura em ação e o murmuro baixo da televisão ligada, a voz rouca do barbeiro me chama para a cadeira. O senhor permanece lá, sentado, talvez estarrecido e indignado, mas certamente pensativo com a explicitação da opinião não muito comum de um torcedor (singular) de futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Por uma sociologia do cotidiano em tempos de Copa do Mundo. Ludopédio, São Paulo, v. 108, n. 29, 2018.
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