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1998 e 2006: a seleção brasileira derrotada e “vendida”

Fabio Perina 22 de setembro de 2022

Nessa breve crônica irei articular um pouco de memórias pessoais e reflexões acadêmicas para mostrar que as coincidências no período vão além de derrotas dentro de campo para a França de Zidane mas fora de campo intensas mudanças no futebol brasileiro como um todo e a seleção acabou sendo seu reflexo. Uma breve menção comparativa fica com o grande filme “Boleiros” com suas duas versões que também vão muito além na coincidência de datas (ACKER e ROSSINI, 2012). Na primeira, “Era uma vez o futebol” (1998) se retrata um ambiente nostálgico como pano de fundo a estórias mais nostálgicas ainda para tratar de um tema que padece de ser um eterno retorno na psiquê de todo boleiro (famoso ou anônimo): o apagar das luzes e a sensação de perda junto do perecimento corporal. Mais importante aqui do que falar dessa marcha do tempo é a marcha do progresso através da segunda versão como essa transição. “Vencedores e vencidos” (2006) mostra um futebol que se modernizou tanto em poucos anos que sequer o bar preferido dos contadores de estórias resistiu a reformas. Passando a atrair um público mais jovem porém alheio ao futebol sem envolvimento profundo. Tanto é que o “acontecimento” que marca sua reinauguração é a visita de um fictício craque do Penta, servindo como pretexto para retratar toda a espetacularização da vida pessoal dos principais jogadores na época na vida real. Além de deixar a sensação que o futebol brasileiro finalmente chegou em uma espécie de linha de chegada que o colocasse em outro patamar insuperável, porém permanece algum gostinho estranho difícil de descrever que deve ser comparável à perda já citada. Como pontapé inicial, esse breve fragmento do brilhante livro de Wisnik (2008) trata da dimensão do fora de campo encontrar seus interesses no dentro de campo com Ronaldo:

“O fato de que o esporte se enquadre então numa poderosa estrutura mundial de entretenimento, tendo jogadores como estrelas, permite que estes, vindos da periferia ou da favela, além de ligados a contratos milionários com os grandes clubes da Europa e participantes da efervescente e altamente rentável venda de camisas com seu nome, tornem-se também astros publicitários e celebridades globais que dividem treinamentos e jogos com aparições mundanas, gestos de filantropia simbólica, amores espetaculosos postos em cena como novela pública, grandes decisões financeiras, tudo gerido por empresários, assessores de imprensa e de imagem, fisioterapeutas e advogados.”

França 1998
Foto: Reprodução Twitter

1998

Como breve menção fora de campo entre o tetra de 94 e a tentativa do penta em 98, a CBF negociou contratos milionários para a seleção brasileira com a Coca-Cola e principalmente com a Nike. Sendo esse segundo vigente até hoje e que permite que a multinacional estadunidense influencie a agenda da seleção brasileira e até suas convocações. Vide a evidência mais clara diante da submissão do treinador Zagallo e do médico Lídio Toledo ao terem obrigado o atacante Ronaldo a jogar a final com a França mesmo com o risco de morrer em campo logo após a pouco esclarecida convulsão nervosa. (Obs: Nós que vivemos a recente pandemia sabemos o que é a frieza do “o show tem que continuar” ou “a economia ou a vida”…) Em um sentido mais subjetivo e mais amplo aos demais personagens, sobre aquele episódio é possível também levantar hipóteses que iam desde a mais conspiratória de venda da final em troca de ser sede futura (dando origem ao inesquecível meme “se vocês soubessem o que aconteceu ficariam enojados…”, sendo que Wisnik explora diversas narrativas de possíveis culpados do vexame pelas quais a opinião pública buscou encontrar alguma compensação coletiva) até outra mais plausível que a derrota de 98 inaugurou uma tendência dos principais jogadores estarem preocupados em uma imagem de “bons moços” e que então se tornaram “desinteressados” ou “estrangeiros” a esquecer suas origens. Daí surge uma hipótese mais elaborada, embora menos alardeada, que logo eles procuraram mobilizar em circulação seus patrimônios para sustentar projetos de assistência social como se isso pudesse “compensar” seu rápido enriquecimento. Como se fosse uma auto-flagelação de culpa cristã na qual enriquecer tão rápido em um país rodeado de miseráveis seria “errado”!

Já no cenário interno houve toda uma conjuntura de mercantilização e êxodo da mão-de-obra futebolística no contexto da Lei Pelé com sua tentativa de encarar os clubes como empresas. O que fortalece um diagnóstico bem convincente e duradouro até nossos dias atuais que o jogador tende a ser disciplinado demais dentro de campo e até fora de campo para ser melhor “vendável” e, assim, reprimiria até mesmo a sua própria arte com os pés. Acrescento também que no longo prazo isso significou desde então na cabeça de muito torcedor que quem é convocado para a seleção tem mais a ver com valorização e facilitação de transferências do que com mérito diante do interesse de outras grandes empresas de entretenimento (além da “soberana” Nike), inclusive visto como negativo por ser desfalque ao próprio time em partidas mais importantes. Ora, se na cabeça de muito torcedor “médio” já havia uma forte percepção de verdade que “futebol é negócio” para o dia-a-dia dos clubes por conta dos cartolas (apesar desse reducionismo), infelizmente essa desilusão contagia também a seleção brasileira (na qual supostamente nenhum jogador recebe “salário” ao defende-la, porém todos encontraram maneiras extra-oficiais de lucrarem mais através desse patrimônio outrora imaterial e popular).

Ouriques (1999) tratou de todo o processo de deliberação e aplicação da Lei Pelé como um momento que as disputas do ambiente específico do futebol entre seus diversos sujeitos emergiu a outro patamar na cena pública. Diante do recente impacto da Lei Bosman (1995) que irradia da União Europeia para o futebol mundial, estava posto o pretexto de superar a era dos cartolas para realizar uma profunda inserção internacional dos jogadores brasileiros e se possível até dos clubes brasileiros. Como nota de conjuntura, vale acrescentar que o pesquisador foi um importante crítico da tônica entre futebol e política ao longo dos anos 90 (sobretudo com o governo FHC, o que também não é mera coincidência possuía uma imagem pública muito mais de “gestor” do que de “torcedor”) que era do projeto de fazer o primeiro entrar na mesma lógica entreguista neoliberal ao interesse externo do que o segundo já entrara. Ouriques não se ilude com os discursos vagos de “modernização” (que oculta esses enfrentamentos) e alerta para o loteamento de interesses empresariais (com amplo apoio midiático) dentro do Estado brasileiro a despeito da cidadania renegada à maioria. E nesse sentido emergiu a necessidade de uma cooptação ao ídolo popular Pelé, enquanto Ministro do Esporte, para tentar pegar emprestada sua legitimidade no campo esportivo e transferi-la ao campo político.

Zidane
Zidane na Copa do Mundo de 2006. Foto: Wikipédia

2006

Como breve menção da dimensão interna do futebol brasileiro, em continuidade às reflexões anteriores, Alvito (2006) explora muito bem a metáfora de “latifúndio” para tratar do entreguismo externo e do conjunto de jogadores como “pés-de-obra” para dar uma ideia de alienação e coisificação. Em outros termos, produzimos o artista para deleite do espetáculo externo. Acrescento: em um contexto de aumento das transferências de jogadores e até mesmo vagas propostas no debate público de se regulamentar a categoria como “commoditie”, justamente quando no governo Lula as exportações agro-minerais era um importante pilar do crescimento econômico. O mérito do pesquisador é alargar ainda mais o contexto, pois os discursos de “modernização” no futebol brasileiro não podem começar e terminar entre os sujeitos dominantes sem levar em conta as condições drásticas no “chão de fábrica” para a ampla massa de jogadores e sobretudo de torcedores. Ou seja, mesmo que ainda não houvessem arenas em número relevante no Brasil, já era relevante a desilusão com uma grande promessa de conforto e segurança dentro dos estádios. Porém um abismo com a realidade do policiamento ostensivo tratar todo torcedor como potencial suspeito perigoso (o que o autor chamou do dilema: “civilizando ou domesticando?”). Não há uma análise direta do Estatuto de Defesa do Torcedor, porém ele aparece como pano de fundo junto da Lei Pelé ao compartilharem a mesma pretensão de “modernização”. Ele também acrescenta que a rotinização dos discursos e estatísticas econômicas na mídia esportiva tende à naturalização dessa condição entreguista.

Voltando à dimensão de dentro de campo, Wisnik (2008) trata de uma imensa expectativa prévia que a seleção de 2006 finalmente poderia ser mais empolgante que os títulos de 94 e 2002 ao unir a arte com o resultado. “Com uma fúria monotemática sem precedentes e uma euforização artificial intensiva, a propaganda carregava na imagem dos vencedores por antecipação, desprezava os adversários e elevava os destaques brasileiros à condição de extraterrestres”. Porém além de outro vexame, também para a França de Zidane tal qual em 98, se abriu outra etapa crucial sobre essa suposta traição (mais até do que um afastamento) da seleção a seu povo foi a “farra de Weggis” com a seleção de Parreira. Ou seja, quando o espetáculo esteve muito à frente do esporte e sacudiu a pequena cidade suíça na “preparação” para a Copa de 2006 na Alemanha. Era como se fosse um “camarote dos ronaldos” no qual retornavam os fantasmas de 98 de jogadores ‘mercenários’ e até ‘sem alma’. Algumas críticas mais moderadas como de Tostão isentavam os jogadores que supostamente não estariam desmotivados, mas, pelo contrário, disciplinados demais pelo esquema tático de um treinador pouco atraído pela criatividade e com isso perderam a capacidade de ousar em campo. Por responsabilidade mutua de uma comissão técnica omissa àquilo tudo e com os “medalhões” do Penta enquanto “jiboias saciadas” que durante toda a Copa muito pouco se esforçaram. Exceto Rivaldo, aos veteranos do Penta Ronaldo, Ronaldinho, Cafu e Roberto Carlos se somaram Adriano e Kaká (além do reserva Robinho) em franca ascensão. Vide que o famoso “ataque dos 200 quilos” com Ronaldo e Adriano precisava de um guincho pra se mover! E pior ainda foi deixarem o veterano Zidane desfilar em campo sem ninguém para dar nem um ‘chega pra lá’ nele para lhe impor alguma dificuldade mínima, deixando o veterano francês livre como um menino. E o pior veio após a partida, ao ser abraçado e parabenizado pelos “medalhões”, como se não tivessem sentido a eliminação.

Afinal como sintomático desse profundo distanciamento que para a boleiragem fica sempre o conforto que ao perderam não precisam voltar ao Brasil para “botar a cara” em ambientes populares. Esse show de farsas dentro de campo foi completo fora dele através do “mundo de faz de conta” da crônica esportiva (indistinguível da publicidade apelativa) ao colocar a seleção como mais favorita do que nunca, como se “a Copa do Mundo fosse obrigação”. (Obs: Assim como em 98 também retornava uma conspiração folclórica, a de que a Casas Bahia supostamente já sabia que o Hexa não viria em 2006 e por isso aproveitou o mercado interno de consumo aquecido para vender muita televisão por apenas 1 real antes da Copa com a promessa de que se o título viesse bastaria mais 1 real para levar para casa uma segunda mercadoria! Aliás a popularização da televisão tela plana no lugar do tubo pode ser entendida como um grande símbolo da expansão do consumo na época).

O “legado” desse caso é que muitos memes e páginas de humor depois do 7 a 1 da geração de 2014 tenderam a isentar a geração de 2006 como se aquela fosse “raiz” por conta de sua farra permanente. Uma breve menção à seleção de Dunga de 2010 que a sua suposta “militarização” (ao menos evidente no trato hostil com a imprensa, totalmente oposta à bajulação anterior) foi uma tentativa imediata de dar uma resposta reversa à “farra de Weggis” com seu descomprometimento anterior (inclusive com uma troca na publicidade da Brahma muito simbólica: em 2006 era “em busca da sexta estrela” e em 2010 era “time de guerreiros”). Em suma, novas roupagens para uma mesma realidade da intensa mercantilização do futebol brasileira que prossegue sem abalos.

Leituras de Apoio

ACKER, Ana Maria; ROSSINI, Miriam. O Futebol Brasileiro nos Filmes Boleiros 1 e 2, de Ugo Giorgetti. Sessões do Imaginário, v. 17, n. 27, 2012.

ALVITO, Marcos. “A parte que te cabe neste latifúndio”: o futebol brasileiro e a globalização. Análise Social, n. 179, p. 451-474, 2006.

OURIQUES, Nildo. O gol contra do rei: a lei Pelé e suas consequências. Motrivivência, n. 12, p. 37-64, 1999.

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. 1998 e 2006: a seleção brasileira derrotada e “vendida”. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 24, 2022.
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