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80 anos de Homo Ludens

Enrico Spaggiari 8 de fevereiro de 2018

Ainda na primeira metade do século passado, autores de diversas áreas do conhecimento humanístico debruçaram-se sobre a questão do surgimento e desenvolvimento dos esportes modernos, tomando-os como desdobramentos dos jogos e passatempos – tanto os tidos como nobres como aqueles considerados populares – anteriores ao século XIX.

Dentre estes autores, Johan Huizinga emerge como um dos teóricos que se voltou para os aspectos lúdicos, principalmente em sua obra Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, de 1938, que completa 80 anos neste ano, cuja análise contribuiu ao debate envolvendo os usos dos conceitos de esporte e jogo – ou lúdico e agonístico, divertimento e seriedade –, que mobilizou e ainda mobiliza as investigações e preocupações de diversos autores. Este debate passa, primeiramente, pela questão da historicidade das noções de esporte e jogo e por uma postulada continuidade histórica entre os jogos populares (anteriores ao século XIX) e os esportes modernos, como se estes fossem reconfigurações dos primeiros. Obras como as de Huizinga e Roger Caillois, realizadas num intervalo de vinte anos, inspiraram, mesmo que de formas distintas, um corpo amplo de estudos que se voltou à pesquisa dos significados dos esportes nas sociedades modernas.

Tal autor propõe em sua obra Homo Ludens (2005), uma análise do jogo não apenas enquanto uma manifestação cultural, mas, principalmente, como um conceito que, ao mesmo tempo, gera e integra a noção de cultura.

“O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana’” (Huizinga, 2005, p. 33).

Assim, a cultura, para o autor, surge e se desenvolve sob a forma de jogo – no jogo e pelo jogo-, ou seja, o jogo é mais antigo que a cultura e pode ocorrer fora dela. Ressalta, entretanto, que a cultura não nasce do jogo do mesmo modo como o recém-nascido se separa da mãe, mas que ela surge no jogo e carrega seu caráter lúdico (Huizinga, 2005, 193). Porém, o autor levanta – numa abordagem evolucionista com a qual não concordo – uma questão que exigiu sua atenção nos capítulos finais do livro: “Será que efetivamente a cultura nunca se separa do domínio do jogo?” (p.193). Ou, “em que medida a cultura atual continua se manifestando através de formas lúdicas?” (p. 217).

Para Huizinga (2005), a atividade lúdica é um intervalo na vida cotidiana, elemento extra-ordinário, portanto, diferente dela. Para o autor, uma das características do jogo é o fato de ele representar um um espaço-tempo próprio que, dependendo da seriedade e do entusiasmo com que se jogue, suspende momentaneamente (até o jogo acabar) a vida e as relações cotidianas. Porém, pode ocorrer de o jogo cultivar sua magia mesmo após o término da atividade lúdica, adentrando também na vida cotidiana (2005, 15). Huizinga postula que, embora seja um intervalo, o jogo e sua magia podem (a depender da imersão e intensidade da atividade) transcender seu espaço-tempo característico e, assim, transbordar para a vida cotidiana.

futebol1935
Futebol, 1935 – Cândido Portinari.

Huizinga analisa inúmeras esferas sociais – poesia, música, dança, filosofia, guerra e direito – à procura de elementos lúdicos em todas elas, evidenciando, assim, que as “grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo” (2005, p. 7). Porém, o elemento lúdico, decadente desde o século XVIII, não estaria presente nas épocas atuais, com a mesma intensidade verificada nas sociedades antigas. Segundo o autor, isso já podia ser apurado no século XIX, época na qual se perdeu parte relevante dos elementos lúdicos de períodos anteriores. Como teria ocorrido esse processo?

À medida que uma civilização vai se tornando mais complexa, vai se ampliando e revestindo-se de formas mais variadas, e que as técnicas de produção e a própria vida social vão se organizando de maneira mais perfeita, o velho solo cultural vai sendo gradualmente coberto por uma nova camada de idéias, sistemas de pensamento e conhecimento; doutrinas, regras e regulamento; normas morais e convenções que perderam já toda e qualquer relação direta com o jogo (Huizinga, 2005, p. 85).

Deste modo, ocorreria um ocultamento do homem lúdico no cotidiano de nossas vidas, revestido por novas camadas e, assim, restando num segundo plano, encoberto por fenômenos culturais. Neste cenário levantado por Huizinga, o fenômeno esportivo – uma forma de competição sujeita a um sistema de regras, ou seja, um jogo – também estaria, no final do século XIX, se afastando dos elementos do jogo, apesar de ainda carregar uma forte influência da esfera lúdica. Este afastamento se daria a partir da sistematização e regulamentação do esporte (o jogo vira negócio), com regras mais rigorosas e complexas, visando a espetacularização e o lucro; o que implicaria perda de características lúdicas puras. Portanto, para o autor, o esporte afastou-se da esfera lúdica e transformou-se “numa coisa sui generis: nem é jogo nem é seriedade […] o esporte se tornou profano, foi ‘dessacralizado’” (Huizinga, 2005, p. 220).

Para Huizinga, vem ocorrendo o desaparecimento do espírito lúdico, antes encontrado com maior intensidade nas sociedades antigas. Essa dissipação lúdica seria, em certos momentos, imperceptível, pois existiria, principalmente na esfera da política, o falso jogo, uma ilusão lúdica que ocultaria interesses políticos ou econômicos: “O autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde parece ainda estar presente trata-se de um falso jogo, de modo tal que se torna cada vez mais difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não jogo” (2005, p. 229). Esse processo se daria principalmente no esporte profissional, onde estariam ausentes a espontaneidade e despreocupação, porém influenciaria também o esporte amador, como no caso das grandes empresas que organizam suas próprias associações esportivas e contratam funcionários em função da habilidade para o futebol, invertendo a lógica para o negócio vira jogo (2005, p. 222-223).

Portanto, o problema em uma valorização de períodos predecessores das atividades corporais e de críticas à dessacralização das práticas contemporâneas consiste não só na ideia de que o quadro de práticas pode variar conforme o contexto ou recorte estudado, mas também em ter essas relações – brincadeira e seriedade, jogo e esporte, lúdico e competição –, como referências a priori.

Contudo, apesar de não concordar com o enfoque evolucionista proposto por Huizinga – ou um processo de involução lúdica -, suas proposições apresentam uma leitura multifacetada dos jogos, que enfatiza a complexidade do lúdico. Tal multivocalidade de interpretações permite problematizar não só as releituras da obra de Huizinga realizadas por pesquisadores voltados à temática esportiva, bem como os próprios aspectos contraditórios presentes na versão totalizadora concedida pelo autor holandês à noção de jogo.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. 80 anos de Homo Ludens. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 8, 2018.
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