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A Copa do Mundo de 1938

Paulo Nascimento 11 de setembro de 2009

Que a seleção de futebol é o grande elemento de identificação do povo brasileiro para com sua nação, não há muito que contestar. Entretanto, esse fascínio, essa paixão, passou por vários momentos, vários contextos históricos, vários impasses para que chegássemos ao ponto que chegamos, onde todo e qualquer brasileiro identifica as pedaladas do Robinho no Maraca como um típico elemento de brasilidade – e, claro, sente-se contemplado por elas. E eu me arrisco a dizer que o evento que marcou essa “virada de página” na identificação do brasileiro com sua seleção foi a Copa do Mundo disputada em 1938, na França. Antes de esmiuçarmos a relevância deste evento, tratemos de alguns antecedentes que, mesmo já tendo sido bastante analisados, servem para situar esta abordagem.

O futebol começa a ser praticado no Brasil no final do século XIX, em um período de transição da forma de governo no país: da monarquia para a república. Naquele período, era comum que a elite mandasse seus filhos para estudarem no exterior, afim de que tivessem contato com “a vanguarda” do pensamento europeu, para adquirirem um conhecimento que supostamente não seria possível de se conseguir no Brasil. Quando retornavam ao país, estes jovens traziam consigo, além do conhecimento intelectual, alguns hábitos importados do velho continente. O futebol foi um deles.

Praticado por estes garotos, o esporte teve, no início, um caráter elitista, servindo como uma espécie de traço distintivo desta juventude endinheirada, que transformou o futebol num elemento de status e se esforçava para que essa condição do esporte fosse mantida. O jogo era disputado em clubes de bairros luxuosos das grandes cidades – Rio de Janeiro e São Paulo foram as pioneiras (PEREIRA, 2000, pp. 22-23).

Entre os anos de 1910 e 1920, um intenso processo de industrialização alterou a realidade das grandes cidades brasileiras. A arquitetura destas cidades foi bastante transformada, bem como seu cotidiano, de modo a abrigar uma nova realidade: maior número de indústrias e, conseqüentemente, de trabalhadores. Bairros inteiros são construídos com uma única perspectiva fabril: a criação de um espaço, apartado dos bairros nobres, onde o operário possa trabalhar e morar de uma forma razoavelmente digna (RAGO, 1985). São justamente nestes bairros em que o futebol começou a se popularizar. Assim, o esporte passou a ser disputado em áreas “de várzea”; clubes foram criados, bem como ligas independentes, para que o futebol fosse praticado por essa população, que era alijada da prática “oficial” da cidade – visto que suas respectivas ligas não permitiam que tais clubes, oriundos de áreas pouco “nobres” das cidades, disputassem os mesmos torneios que os clubes da elite. De qualquer modo, ao contrário do final do século XIX, pode se dizer que o futebol já possui nos anos 10 e 20 do século XX um grau de popularidade bastante acentuado.

No plano geopolítico mundial, a Primeira Guerra Mundial trouxe uma sensação de crise do racionalismo, sendo este insuficiente para dar conta de todos os anseios humanos. Além disso, a cultura européia, sempre reverenciada por aqui, passou a ser relativizada, e esforços foram feitos para valorizar características culturais genuinamente brasileiras. Foi neste momento que surgiram marcos na esfera cultural brasileira, como o livro “Macunaíma” – o herói sem nenhum caráter -, e a Semana de Arte Moderna de 1922, um dos momentos de vanguarda mais criativos e revolucionários da cultura brasileira. Os modernistas foram grandes entusiastas da criação, valorização e consolidação de uma cultura genuinamente brasileira; e, diante da perspectiva “antropofágica”, de deglutir o que viesse “de fora” para que este fosse regurgitado com traços nacionais, eram simpáticos à prática do futebol. Mas essa simpatia não foi consensual entre os intelectuais do período – Graciliano Ramos, por exemplo, mostrando pouco apreço pelo esporte vindo da Inglaterra, chegou a afirmar categoricamente: “O ‘football´ não pega, tenham certeza” (ANTUNES, 2000, p.24).

A partir dos anos 30, o que acontece é uma estruturação cada vez mais intensa do futebol (processo que podia ser notado através de ligas, campeonatos interestaduais e os próprios clubes, cada vez mais imbuídos pelo desejo de exercitarem o futebol, cada vez mais oriundos de extratos heterogêneos da sociedade). Diante deste movimento, a prática do futebol chama cada vez mais a atenção por parte do Estado brasileiro. Com o governo de Getúlio Vargas, o Estado adotou a postura de intervir na cultura para disseminar uma imagem moderna do país. Surge aqui também a idéia de “cultura de massa” (OLIVEIRA, 2003, p. 325). O Brasil do samba, da mulata, do carnaval, do malandro e outros tantos arquétipos ainda hoje em voga em nossa sociedade surgiram ou foram consolidados nesta época. A idéia foi captar estes elementos de forte apelo cultural vigentes no país desde o início do século e aliá-los à idéia de “país moderno”. Foi assim que o ideário modernista foi convertido em política de governo, e o Estado passou a intervir na cultura como nunca o fizera. O estado transformou grande parte da cultura brasileira numa vasta área detentora de uma imensa potencialidade de atuação política. Esta perspectiva política, que teve sua origem no governo Vargas, pode ser detectada até hoje (MICELI, 1979). O intuito governamental à época era encontrar determinados traços da cultura do país que pudessem ser aceitos, pelo maior número de patriotas, como aquilo que existisse de mais brasileiro em seu país, no intuito de promover uma identificação nacional dos cidadãos com sua nação (VIANNA, 1995).

O rádio foi um importante aliado para a popularização do futebol, visto que, uma vez o número de interessados no esporte ser bem superior ao que comporta um estádio, seu apelo diante do grande público deveria ser feito também por outros meios – e, à época, o rádio era dos principais meios a se fazê-lo. Na década de 30, o rádio ganhou importância no espaço privado do brasileiro, tendo um impacto fundamental na transformação deste em relação a sua visão de mundo. Pode-se perceber aqui também interferências de Vargas: a sansão de uma medida que liberava a publicidade nos intervalos dos programas de rádio fez com que toda a programação fosse repensada, de modo a atrair a atenção de consumidores em potencial. As agências de publicidade acabaram sendo as grandes responsáveis pela elaboração da programação das rádios, e a partir desta nova lógica, programas de forte apelo popular, como novelas, programas de auditório e musicais com as famosas cantoras de marchinhas de carnaval, por exemplo, passam a ganhar destaque na programação (SEVCENKO, 1998). Dado seu forte apelo popular, o futebol também se insere na programação das rádios. Assim, para que o esporte fosse acompanhado pelo maior número possível de pessoas, a transmissão das partidas era sempre pensada para ser feita numa linguagem abrangente, capaz de ser de fácil percepção ao público em geral (VIANNA, 1995, p. 109).

O futebol foi pensado durante o governo de Vargas como mais um dos elementos capazes de atrair a atenção do povo brasileiro e criar a identificação deste com sua “nação”. Tantos os jogos disputados no país quanto as atuações da seleção brasileira no exterior atraiam grande atenção do público. É neste período em que o futebol sai definitivamente do amadorismo restritivo dos clubes de elite e passa a ser institucionalizado.

Além disso, o pensamento nacionalista vigente no Brasil à época procurava destacar as especificidades do brasileiro, valorizando-as. A polêmica acerca da pertinência do “esporte bretão” em terras brasileiras fora encerrada, dada a popularização que o esporte alcançou nos anos 30; não restavam dúvidas sobre a capacidade do brasileiro em incorporar algo “de fora” e configurá-lo para sua cultura, a ponto deste elemento exógeno ser tido como um dos grandes valores de sua “nacionalidade”, criando assim uma forma própria de lidar com este elemento – forma esta, no caso do futebol, que os brasileiros julgavam ser superior a de seus “criadores” europeus.

Algumas polêmicas marcaram as duas primeiras participações do Brasil em Copas do Mundo. A Copa de 1938 foi a primeira em que muitas controvérsias foram superadas. Rio de Janeiro e São Paulo chegaram a um consenso, e com isso atletas dos clubes de ambas as cidades (que reuniam à época os principais jogadores do país) tornaram-se “selecionáveis”. Com isso, tanto jogadores cariocas quanto paulistas estavam presentes na equipe, depois de vários conflitos entre as federações das respectivas cidades sobre a pertinência ou não da profissionalização do esporte, seguidos de boicotes ao time nacional – ora de uma parte, ora de outra. Fato importante em 38 também foi a mudança de mentalidade que propiciou que atletas negros também pudessem atuar no time. Desta forma, a equipe era considerada uma verdadeira seleção, pois era enfim composta por grande parte dos elementos étnicos e regionais que representavam o povo brasileiro.

O esporte há muito já tinha perdido seu cunho elitista de outrora; clubes da periferia já participavam das ligas oficiais, e o futebol, além de ter se profissionalizado (não somente sócios dos clubes disputavam partidas por suas respectivas associações; pelo contrário, a maioria dos atletas era devidamente remunerada pra tal “ofício”), via, por conseqüência, com bons olhos a participação de atletas negros no esporte, inclusive na seleção. Esperava-se que nesta Copa, além do coroamento do estilo de jogo brasileiro, também ocorresse a valorização da raça brasileira, terminologia razoavelmente difusa à época, que seria a síntese de várias culturas e diversas nacionalidades, e da democracia racial, debatida por intelectuais justamente ao longo da década de 30. Um dos maiores símbolos desta discussão sobre o que vinha a ser o brasileiro foi representado no livro “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freire. Publicado pela primeira vez em 1933, o sociólogo faz nesta obra uma defesa da miscigenação de raças promovida na história do Brasil, e que seria esta “mistura” a grande vantagem dos brasileiros diante dos outros povos. O futebol era para Freire mais uma das áreas na qual o brasileiro se sobressairia diante os demais, graças principalmente a esta mistura, que aglutinou o que de melhor havia em brancos, negros e indígenas e trouxe como conseqüência a forma de ser do brasileiro.

As vitórias da seleção nacional sobre equipes de outros países passam a servir de justificativa para vinculações diretas destas conquistas ao que de mais peculiar teria o brasileiro – como se na esfera do futebol, não existisse para o brasileiro concorrente à altura; seria este o campo ideal para que os brasileiros desenvolvessem todas as potencialidades de sua genialidade, se inspirando assim para extrapolá-las para outros planos. A expectativa criada em torno da atuação da seleção brasileira na Copa de 1938, portanto, foi grande, visto que aquela seria a primeira vez em que um selecionado brasileiro disputaria uma Copa “com sua força máxima”.

A campanha do Brasil na Copa empolgou a torcida pelo país afora. Depois de uma vitória por 6 a 5 sobre a Polônia, seguida por um empate e uma vitória sobre a Tchecoslováquia, a confiança pelo título foi grande. Até que o time sucumbiu diante da Itália por 2 a 1, com um gol de pênalti altamente contestado pela equipe brasileira selando a vitória dos italianos, que viriam a conquistar o título. A derrota brasileira nas semifinais do torneio adquiriu caráter de catástrofe no país. A forma como a notícia repercutiu no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, então capital federal, foi registrada por Getúlio Vargas, que em meio às suas obrigações anotou em seu diário: “O jogo de ‘football´ monopolizou as atenções. A perda do ‘team´ brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se se tratasse de uma desgraça nacional” (VARGAS, 1995, v.2, p.140).

A reação imediata da população no Brasil foi de indignação diante do resultado, que mais tarde deu lugar a uma espécie de refutação do mesmo. Integrantes da delegação brasileira cogitaram a possibilidade de reivindicar a revogação do jogo. Entretanto o resultado se manteve, e coube ao Brasil contentar-se com o terceiro lugar. A repercussão que esta Copa teve no país, nos mais diversos âmbitos sociais, foi enorme. As partidas eram transmitidas ao vivo pelo rádio. Editoriais em jornais de grande circulação foram dedicados a comentar a atuação brasileira no certame – em especial a derrota nas semifinais e o impacto que isso causara no país. Assim que chegaram ao Brasil, os atletas que estavam na França disputando a Copa foram ovacionados, receberam várias condecorações oficiais, desfilaram em carreata por ruas de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Leônidas da Silva, maior artilheiro da competição, de tão popular, serviu como garoto-propaganda de um novo doce criado à época – seu apelido, “Diamante Negro”, serviu para dar nome a um chocolate ainda hoje popular no Brasil.

Esses são exemplos do quão significativa foi a Copa do Mundo de 1938 na relação da seleção com sua torcida, com seu povo. O futebol passara a ser assunto de grande importância para o brasileiro; sua popularidade era incontestável. Era como se a partir de então, o brasileiro passasse a se enxergar enquanto indivíduo pertencente a uma nação atreves de um grande elemento identificador: o futebol. Como se a consciência do brasileiro sobre sua condição, sobre sua brasilidade, viesse por intermédio do futebol. A forma como o futebol passou a ser tratado no Brasil não foi obra do acaso: o governo Vargas, percebendo o potencial mobilizador que o futebol tinha, foi bastante hábil em acampá-lo, patrocinando seu crescimento (via incentivo aos clubes, aos campeonatos disputados no Brasil e à participação da seleção nacional em torneios internacionais) para que, uma vez popular em um âmbito nacional, o futebol adquirisse este caráter de elemento propagador do nacionalismo brasileiro – característica que, ao longo dos anos, foi intensificando-se cada vez mais.

Bibliografia
ANDRADE, Mário. Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. 31ª ed. São Paulo: Vila Rica, 2000.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal. 10ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Bertrand Brasil, 1979.
OLIVEIRA, Lúcia, Lippi: “Sinais da modernidade na Era Vargas: vida literária, cinema e rádio”. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil republicano – o tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: NOVAIS, F. (coord.) e SEVCENKO, N. (org.). História da vida privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – a utopia da cidade disciplinar. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
VARGAS, Getúlio. Diário / apresentação de Celina Vargas do Amaral Peixoto; edição de Leda Soares. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, v. 2.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ UFRJ, 1995.
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Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. A Copa do Mundo de 1938. Ludopédio, São Paulo, v. 03, n. 4, 2009.
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