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A seleção brasileira e a gestão Doriana

Uma curiosa euforia se sobrepôs a melancolia do paulistano na recente partida da seleção brasileira contra o Paraguai pelas eliminatórias da Copa de 2018. A classificação antecipada e o belo futebol do time comandado por Tite também empolgaram outras cidades brasileiras. Particularmente, em São Paulo, a vitória incontestável contra o Paraguai poderia representar, por consequência, a recuperação do otimismo com a própria cidade.

Este momento da vida do paulistano pode ser sintetizada, inclusive, por um slogan: CIDADE LINDA. Esta campanha publicitária, por sua vez, disfarçada de política pública, tem recebido foco total do prefeito João Doria que promoveu a marca da sua gestão nos espaços publicitários dos últimos jogos da seleção brasileira – contra o Uruguai, no Estádio Centenário, e contra o Paraguai, na Arena Corinthians[i].

A medida adotada por Doria estabelece com clareza a conexão entre futebol e política, embora o atual prefeito negue veementemente que não é e não faz política. De fato, aqui é preciso concordar com ele: sua especialidade é o marketing pessoal, mas sejamos honestos, suas ações sempre têm desdobramentos e usos políticos. Aliás, ele não se cansa em dizer que é gestor e empresário. Nessa lógica neoliberal, Doria é empresário de si e quer uma cidade que se empreenda a partir das ações de cada um. Transformou o Estado em um mediador de singularidades e interesses particulares, fugindo da sua responsabilidade – instituída constitucionalmente – de ser um agente fornecimento e proteção de direitos básicos. Não há projeto de transformação da cidade para além das aparências.

Apresentada como uma política pública, o programa “Cidade Linda” tem criado “virais” corriqueiramente, tomando conta dos canais de comunicação dos paulistanos. Inegavelmente, o impacto e o alcance da campanha se assemelha ao conteúdo – não à forma – de clássicas propagandas de TV, em especial, da margarina Doriana.

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Propaganda do programa Cidade Linda. Foto: TV Globo/Reprodução.

Se você tem idade para tanto, se lembrará que nessas propagandas frequentemente apareciam um casal heterossexual, com um ou dois filhos, todos brancos, sorridentes e felizes, enfim, a ideia de família ideal da classe média e/ou classe alta. Todos sabemos que aquela ideia da família Doriana não passava de uma fantasia, drasticamente distante da realidade social brasileira.

Mas o que a família Doriana tem a ver com a gestão do Doria? Tudo! Explico. O programa “Cidade Linda” não contempla a cidade em sua totalidade, pelo contrário, foca em regiões que possuem já destaque. A “Cidade Linda” não é uma política pública para cidade de São Paulo, suas ações estão baseadas em doações. Portanto, não vão além da superficialidade visual. Não atinge a estrutura da cidade, embora para os menos atentos, pareça que foi transformada. “Olha a melhoria que ele promoveu”, alguns vão dizer. Mexeu no visual mas não no estrutural.

Sua principais ações aconteceram em locais em que as empresas doadoras tinham interesse em publicizar suas marcas: limpeza e nova iluminação da Ponte Estaiada (vale lembrar que a Rede Globo usa essa paisagem como fundo de um de seus jornais), reforma do monumento em homenagem à imigração japonesa na avenida 23 de maio (umas das principais vias da cidade), reforma de 150 veículos da CET, doação de carros e motos para o programa criado em sua gestão “Marginal Segura” (outra via principal da cidade), reforma dos banheiros do Parque Ibirapuera (um dos principais da cidade), revitalização do Parque Raposo Tavares, reforma de praças, contratação de moradores de ruas para trabalhar no McDonalds etc.[ii]

Mas alguém vai dizer: ele conseguiu doações e reformas de albergues para os Espaços Vida[iii]. “Veja só como ele também pensa em quem necessita”. “Esse prefeito faz!”. São frases que já podemos ouvir em conversas no almoço de domingo, mas essa ação também recebeu críticas[iv]. Seu programa deixará de ser marqueteiro quando chegar em locais em que precisa chegar. Precisa transformar a vida das pessoas para, por consequência, transformar a cidade. Quando as notícias forem dos bairros mais violentos da cidade, tais como Campo Limpo, Capão Redondo e Parelheiros[v], só para citar três, sua gestão não será mais Doriana, superficial e que não dialoga com a grande massa que vive na cidade de São Paulo.

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Propaganda do programa Cidade Linda também veiculado em inglês. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Mas e a relação disso tudo com o futebol, conforme anunciei no título do texto?

O primeiro questionamento surge na compra do espaço publicitário para os jogos da seleção brasileira nas Eliminatórias para a Copa da Rússia 2018. Essa compra não foi feita pela prefeitura, foi um presente de um amigo empresário, Sidney Oliveira, que é dono da Ultrafarma que atua no ramo farmacêutico. A empresa também é uma das patrocinadoras da CBF e tem Neymar como garoto propaganda. Ou seja, mais uma doação para sua gestão.

Outro dia, em uma banca de doutorado sobre futebol, um dos professores especulou sobre quais seriam os impactos caso Neymar se posicionasse contra a Reforma da Previdência, contra o Projeto de Lei que prevê a terceirização de todas as atividades do setor público e privado, aumento do trabalho temporário de três para nove meses, etc etc etc… Infelizmente nunca saberemos quais seriam os impactos, afinal, Neymar não está lá para alertar a maioria da população sobre o que vem pela frente. Talvez nem saiba o que acontece por aqui. Conforme gostam de ressaltar os jogadores atuais: estão lá para jogar futebol, nada além disso.

Voltando ao ponto de conexão entre Sidney Oliveira e Doria. A relação de amizade dos dois tornou-se pública quando, em fevereiro de 2017, Oliveira doou 600 mil reais para a prefeitura de São Paulo comprar medicamentos para a rede municipal de saúde. A assessoria de imprensa do prefeito disse que tudo foi feito “dentro do que determina a legislação e não envolve contrapartidas aos doadores”[vi]. Mas é aí que começam os conflitos de interesses. Afinal, como uma empresa privada não vai ter alguma contrapartida?[vii] A contrapartida foi dada pelo próprio prefeito que fez uma propaganda de um minuto em sua página pessoal do facebook para divulgar suplementos vitamínicos da Ultrafarma. Detalhe: o vídeo conta com mais de 1 milhão de visualizações.

https://www.facebook.com/jdoriajr/videos/1342290275827780/

Ao se apropriar do futebol, Doria mostra que é um profissional do marketing. Por “coincidência”, as propagandas apareceram no melhor momento da seleção dos últimos tempos. Tite acumula uma sequência espetacular de vitórias (8 vitórias consecutivas com média de 3 gols por jogo). A empresa que doou tem interesses na visibilidade da seleção e da cidade governada por Doria. Assim fica fácil jogar junto. Todos ganham, ninguém perde.

O ponto disso tudo é que tanto a gestão da CBF quando a de Doria caminham na superfície. Com a classificação, a CBF continuará a fechar excelentes contratos de patrocínio, a explorar a sua marca melhor do que ninguém. Doria, por sua vez, faz do programa “Cidade Linda” seu case de sucesso. Passará por outros pontos conhecidos da cidade e, quem sabe, se for o candidato para a presidência em 2018, se lembrará dos bairros que mais precisavam não só das doações, mas da ação efetiva de uma política pública.

O que a CBF e Doria têm em comum é a ideia da família Doriana, cada dia mais feliz e perfeita, mas que não consegue enxergar o abismo em que se encontram grande parte dos clubes e do próprio futebol brasileiro e do abismo social que atinge a maioria da população paulistana.

 

[i] Segundo o próprio prefeito de São Paulo, João Doria Jr., “é um trabalho amplo de manutenção da cidade. Queremos fazer da cidade de São Paulo um local mais agradável para se viver e para se frequentar”. Ver http://capital.sp.gov.br/noticia/prefeito-participa-da-primeira-acao-do-programa-sao-paulo-cidade-linda-1

[ii] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/advogados-defendem-chamamentos-publicos-para-parcerias-de-doria-com-empresas.ghtml

http://correio.rac.com.br/_conteudo/2017/03/nacional_mundo/472913-mcdonald-s-vai-contratar-moradores-de-rua-em-sp.html

[iii] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/programa-espaco-vida-e-apresentado-a-empresarios-do-setor-da-construcao/

[iv] http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/01/doria-planeja-parceira-com-rede-hoteleira-em-abrigos-para-moradores-de-rua

[v] https://exame.com/brasil/os-10-bairros-mais-violentos-de-sao-paulo/

[vi] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/02/15/doria-promove-marca-de-vitaminas-de-empresario-que-doou-a-prefeitura.htm

[vii] http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/27/politica/1485535431_463009.html

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. A seleção brasileira e a gestão Doriana. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 3, 2017.
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