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“A Taça do Mundo É Nossa!” Discurso oficial, campo político e campo esportivo: década de 1950 (2ª parte)

Denaldo Alchorne de Souza 27 de junho de 2024

(Continuação da “1ª parte”)

Durante todo o Primeiro Governo Vargas (1930-1945) ocorreu uma contínua e organizada intervenção do Estado no campo esportivo.1 Ainda em 1936, Luiz Aranha se tornou presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). O novo presidente era respaldado dentro do campo político pelo seu irmão, o ministro Oswaldo Aranha, e pelo diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Lourival Fontes. Em 1941, o processo de oficialização dos esportes se consolidou com a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND). O CND foi o órgão responsável pela regulamentação de todos os esportes e era dirigido por uma comissão de cinco membros escolhidos diretamente pelo presidente Getúlio Vargas. A presidência ficou com Luiz Aranha, que já acumulava a direção da CBD. Em 1942, em virtude do envolvimento do irmão Oswaldo nos esforços de guerra, Luiz Aranha largou o CND em favor de João Lyra Filho. E no ano seguinte, deixou a CBD em favor de Rivadávia Corrêa Meyer. Ambos, João Lyra Filho e Rivadavia Corrêa Meyer, pertenciam ao seu grupo dentro do campo esportivo. Nos quadros diretivos da CBD e do CND ainda existiam outros nomes pertencentes ao grupo, como o romancista José Lins do Rêgo, o poeta Manoel do Nascimento Vargas Netto, José Maria do Castelo Branco e os tricolores Mário Pollo e Luís Galotti.

Durante o Estado Novo, o grupo foi agraciado com os principais cargos diretivos e soube se adaptar ao processo de democratização efetuado após 1945. Durante as Copas do Mundo do Brasil (1950) e da Suíça (1954), os mesmos nomes ainda se mantinham no quadro principal do campo esportivo do país. Porém, as derrotas ocorridas nestas competições e os desgastes advindos do campo político apontavam para mudanças que estavam por vir.

Juscelino JK Getúlio
Posse de Juscelino Kubitschek como Presidente da República e de João Goulart como Vice, 1956. Fonte: Arquivo Nacional / Esta imagem é parte do Fundo Agência Nacional Série FOT Subsérie PRP

Tempos modernos: a Era JK

O ano de 1954 foi extremamente significativo na história brasileira. Em agosto, Getúlio Vargas suicidou-se com um tiro. Sofrera, até ali, uma intensa campanha difamatória movida pelas oposições, em especial a União Democrática Nacional (UDN), que não aceitava a sua política econômica nacionalista. Os opositores também se assustaram com a aproximação de Vargas dos trabalhadores. Perdendo lentamente o apoio das elites econômicas e da classe média, tentou expandir sua base entre aqueles. Entretanto, o apoio popular foi insuficiente para manter uma base política consistente. O suicídio evitou que o golpe arquitetado pelos opositores chegasse a seu final, levando os trabalhadores à rua numa onda de protestos.

Morto Vargas, assumiu o governo seu vice-presidente, João Fernandes Café Filho, que rompera com o titular nos últimos momentos de sua administração. As manifestações populares limitaram o governo do novo presidente. Café Filho se comprometeu a respeitar os prazos eleitorais, que determinavam uma nova eleição presidencial em 1955. O candidato da UDN, Juarez Távora, foi batido pelo pessedista Juscelino Kubitschek, ex-governador de Minas Gerais, com apoio do PTB. Para vice-presidente ganhou o petebista João Goulart, também conhecido como Jango, figura política extremamente próxima de Vargas. A UDN, derrotada, passou a advogar o impedimento da posse do presidente e do vice-presidente eleitos, alegando que os candidatos não conseguiram a maioria dos votos. A situação tornou-se mais tensa no início de novembro de 1955, quando Café Filho foi internado às pressas com problemas cardíacos. Foi substituído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, que era francamente favorável ao impedimento de Juscelino e Jango. Em 11 de novembro, o ministro do Exército, Henrique Teixeira Lott, promoveu um “golpe preventivo”, com o intuito de controlar a transição política até a posse dos eleitos no ano seguinte. Por sua vez, Juscelino e Jango se esforçavam para tranquilizar a elite nacional, descartando qualquer relacionamento com o Partido Comunista.

Essa foi uma época de intensa movimentação política. Parecia que se consolidavam algumas tradições democráticas na sociedade brasileira. Apesar da crise de agosto de 1954, apesar do golpe preventivo liderado pelo general Lott em 1955 e apesar da incontestável tradição autoritária construída historicamente no Brasil, para a historiadora Lucília de Almeida Delgado, os partidos existentes animaram a prática da cidadania política, através de articulações, embates eleitorais, manifestação dos dissensos, relacionamentos com organizações da sociedade civil, articulação de alianças mais permanentes na esfera legislativa e formação de coligações conjunturais.2 Foi somente nesta época que surgiram partidos políticos nacionais e que o eleitorado se expandiu de forma significativa. Segundo Ângela de Castro Gomes, foi a partir desse momento que os atores coletivos, como os empresários e os trabalhadores, passaram a experimentar formas de ação e organização política que priorizaram os partidos, e não apenas as associações de tipo sindical.3 Para Jorge Ferreira, quando ocorriam crises políticas, a sociedade reagia, o povo ia para as ruas, trabalhadores organizavam greves, capitalistas faziam protestos em suas associações de classe e estudantes e intelectuais ficavam mobilizados pela manutenção das normas constitucionais.4 Assim, as noções de democracia, de Estado de direito e de justiça ganhavam força.

Quanto ao campo esportivo, este também estava passando por mudanças substanciais. O grupo de Luiz Aranha, Rivadávia Corrêa Meyer e João Lyra Filho, que alçara a dominância do campo esportivo nas décadas de 1930 e 1940, começava a ser contestado com mais veemência. Antigas lideranças, que se afastaram dos principais cargos da política esportiva do país, e novos dirigentes, que buscavam galgar posições, estavam se organizando com o objetivo de desafiar o poder vigente.

A situação do grupo de Rivadávia era prejudicada não somente pelas mudanças no campo político; mas também pela ausência de títulos consideráveis para o esporte brasileiro, com destaque para o futebol. Segundo Pierre Bourdieu, a história do esporte é relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em resumo, seu ritmo específico.5 Assim, apesar das campanhas vitoriosas do selecionado de futebol no campeonato sul-americano de 1949 e no pan-americano de 1952; mais significativas foram as derrotas nos sul-americanos de 1945, 1946 e 1953, nos campeonatos mundiais de 1938 e 1954 e, principalmente, na Copa do Mundo de 1950.

Em 1955, após o fracasso da Copa da Suíça, os opositores ao grupo de Rivadávia lançaram para a presidência da CBD a candidatura de Sylvio Pacheco, dirigente do América do Rio de Janeiro, e para vice, a de João Corrêa da Costa, do Vasco da Gama. Entre seus membros, muitos dirigentes ligados ao Fluminense, como Fábio Carneiro de Mendonça e Luís Murgel.6 Luís Murgel se destacou como o principal articulador do grupo, conseguindo os votos do Norte e Nordeste e das federações de esportes amadores. Ex-tenista do Fluminense se tornou dirigente na gestão de Fábio Carneiro de Mendonça. Em 1955, já era uma das principais lideranças do campo esportivo brasileiro.

Já o grupo de Rivadávia e de Luiz Aranha vivia uma situação de crise interna. O presidente Rivadávia rejeitou a sua candidatura e também não conseguiu providenciar um nome que aglutinasse um maior número de votos. Para muitos, este nome seria o do vice-presidente Mário Pollo, que não aceitou se candidatar. Em dezembro de 1954, lançaram a chapa de Geraldo Starling, da federação mineira, para presidente e de Ivan de Freitas, da federação baiana, para vice.7 O principal articulador da chapa e da campanha foi Luiz Aranha, o grande patrono do grupo. Contava ainda com o apoio de importantes órgãos da imprensa como o Jornal dos Sports e, um pouco menos incisivo, A Gazeta Esportiva. A estratégia era conseguir angariar o maior número de votos nas federações consideradas historicamente desprestigiadas do norte-nordeste do país, já que segundo os articuladores, os votos do centro-sul estavam garantidos. Resolveram também marcar as eleições para o dia 14 de janeiro de 1955.

Neste dia, ocorreu a maior surpresa eleitoral da história da instituição. A chapa de oposição de Sylvio Pacheco conseguiu ganhar dos situacionistas com 109 votos a 103. Uma diferença de 6 votos. Mário Filho, Albert Laurence, Mário Júlio Rodrigues e outros cronistas do Jornal dos Sports, assim como Thomaz Mazzoni em A Gazeta Esportiva, não sabiam explicar o ocorrido, contra todas as previsões feitas.8

Como era de se esperar, após a vitória, o presidente eleito Sylvio Pacheco fez um discurso de conciliação afirmando que a sua eleição não significava o desprezo ao passado. Lembrou de Rivadávia Corrêa Meyer, de Luiz Aranha e de Mário Pollo. E disse: “São nomes respeitáveis. São desportistas que estão esgotados pelo seu trabalho de longos anos dedicados ao desporto nacional”.9

O recado estava dado: o reconhecimento ao grupo anterior que comandou os esportes no país seria sempre lembrado, mas “estava esgotado”, fazia parte do passado. Uma nova época estava por começar. Uma época comandada inicialmente por Sylvio Pacheco, na presidência da instituição, e Luís Murgel, como presidente da Comissão de Assuntos Internacionais da CBD.10

A Federação Paulista de Futebol votara na chapa situacionista. Como forma de se aproximar da importante entidade, Sylvio Pacheco convidou Paulo Machado de Carvalho para o cargo de supervisor permanente da seleção brasileira de futebol. Este aceitou prontamente. Dirigente esportivo do São Paulo FC, empresário bem-sucedido na capital bandeirante, dono de emissoras de rádio e televisão, homem benquisto nos meios esportivos de todo o país, Machado de Carvalho conseguia atrair uma parte significativa do campo esportivo paulista. A Gazeta Esportiva aplaudiu enfaticamente a escolha do novo dirigente cebedense.

Em 1956, o novo grupo da CBD possuía uma tarefa árdua pela frente: a organização da representação brasileira que iria para as Olimpíadas de Melbourne. Como chefe da delegação foi escolhido João Havelange. Ex-nadador e competidor de polo aquático pelo Fluminense, atleta olímpico em 1936 e 1952, dirigente da Federação Paulista de Natação entre 1949 e 1951, membro do Comitê Olímpico Brasileiro desde 1955. Ele pertencia ao grupo de Luís Murgel e foi um dos principais articuladores da campanha de Sylvio Pacheco, no ano anterior. Nas Olimpíadas, os brasileiros tiveram um resultado modesto, se destacando o título de bicampeão no salto triplo de Ademar Ferreira da Silva. O desempenho de João Havelange foi muito elogiado. No mesmo ano, era convidado para o posto de vice-presidente da CBD. O nome de Havelange era perfeito para consolidar os votos das federações esportivas ditas amadoras. Assim, o presidente Sylvio Pacheco, juntamente com Luiz Murgel, Paulo Machado de Carvalho e João Havelange formaram o núcleo central da nova CBD.

Em relação ao futebol, propôs-se um plano trienal de atividades com a participação da seleção em diversos torneios e jogos amistosos. A justificativa para tal programação era dos atletas ganharem experiência internacional, principalmente na Europa. Na verdade, era uma resposta à antiga direção da CBD que, na Copa de 1954, não agendara jogos preparatórios suficientes no continente europeu.

O planejamento se justificava dentro de uma estratégia política de consolidar sua supremacia dentro do campo esportivo. No período de um ano, entre setembro de 1955 e agosto de 1956, agendaram vinte e oito jogos. Foram disputadas duas Taças Oswaldo Cruz contra os paraguaios (1955 e 1956), uma Taça Bernardo O’Higgins (1955) contra o Chile, uma Taça do Atlântico (1956) contra uruguaios e argentinos, um campeonato sul-americano (1956) e um campeonato pan-americano (1956). Foi ainda organizada uma excursão à Europa com jogos amistosos em Portugal, Suíça, Áustria, Tchecoslováquia, Itália, Turquia, Inglaterra e também contra a seleção pernambucana. Também foram agendados dois jogos amistosos dentro do Brasil contra as equipes da Tchecoslováquia e da Itália. O resultado esportivo foi relativamente positivo: ganhou dezesseis partidas, empatou oito e perdeu quatro.

No entanto, a grande vitória da gestão foi política. Novamente, houve a preocupação de apresentar selecionados com um grande número de atletas que atendessem às expectativas de dirigentes e torcedores cariocas e paulistas, além dos gaúchos. Embora se pudesse criticar a adoção desta estratégia, a direção da CBD se mostrou satisfeita com os resultados alcançados. Porém, muitos jornalistas achavam que tais métodos descaracterizavam o escrete, dificultando a identificação do torcedor com a equipe.

Em 1957, a CBD priorizou a disputa das eliminatórias para a próxima Copa a ser disputada na Suécia no ano seguinte. Era com um jogo de ida e outro de volta contra o selecionado do Peru. Qualquer resultado adverso poderia levar a equipe do Brasil a ficar de fora da competição. Para um país tão carente de títulos esportivos, com apenas um trunfo que o destacava em relação às outras nações – de ser o único presente em todos os mundiais –, ser eliminado seria considerado um desastre equiparável à derrota de 1950. A primeira partida teve como resultado um empate em 1 gol. O encontro decisivo ocorreria em pleno estádio do Maracanã, o palco da tragédia de 1950. Um público estimado em 120 mil pessoas acorreu ao estádio para o embate decisivo. Foi tenso, com poucos lances de perigo e um único gol, de falta, feito por Didi.11 A satisfação por se classificar e a angústia por não ter apresentado um bom futebol andaram juntas nas crônicas esportivas.12

Como resposta às críticas pela falta de organização no futebol, a CBD lançou ainda em 1957 o Plano Paulo Machado de Carvalho. Era um relatório minucioso organizado pelo empresário paulista dividido em 96 itens e que serviu de referência para os preparativos da próxima Copa do Mundo.13 O Plano surgia como uma solução para os problemas anteriormente observados em outras delegações brasileiras. Mas agora, era acrescido de um ideal modernizador, onde a competência, o planejamento, a organização, as metodologias científicas baseadas em dados, em diagnósticos psicológicos e em entrevistas serviriam de base de apoio para a resolução de problemas.

Da mesma forma, o planejamento era um elemento presente na cultura política da década de 1950, sendo esta uma tendência mundial após a Segunda Guerra Mundial. O capitalismo do pós-guerra procurou manter um alto nível de emprego com uma taxa considerável de crescimento econômico. Era necessário manter uma política econômica intervencionista com participação do Estado para auxiliar na recessão decorrente do período pós-guerra. Foi essencialmente uma espécie de junção entre liberalismo econômico e democracia social, inspirada na URSS, que fora pioneira na ideia do planejamento econômico.14 Assim, planejamento, diagnóstico, organização, estatística, meta e eficácia passaram a ser palavras correntes do novo vocabulário político dos países capitalistas.

No Brasil, tal tendência estava representada pela política econômica do governo de Juscelino Kubitschek. Para colocá-la em prática, foi estabelecido o Plano Nacional de Desenvolvimento, também conhecido como Plano de Metas. O programa era essencialmente econômico. Dividia-se em 30 metas, distribuídas entre os setores de energia, transporte, alimentação, indústria de base e educação. Depois também foi incorporada a construção de Brasília, que passou a ser considerada a “meta síntese”.

No todo, o Plano de Metas de JK visava, por um lado, estimular os “pontos de germinação”, que eram os vários setores que deveriam ser implementados para ajudar o país a vencer o subdesenvolvimento. Incentivava os investimentos privados de capital nacional e estrangeiro, procurando ampliar o parque industrial. Por outro, procurava eliminar os “pontos de estrangulamento”, que consistia na suplantação dos problemas estruturais que impediam o desenvolvimento industrial.15

Portanto, os dirigentes da CBD, ao formularem o Plano Paulo Machado de Carvalho, estavam em consonância com a cultura política do período JK, onde planejamento e organização eram tidos como essenciais para que o futebol pudesse ter o desenvolvimento desejado.

***

Uma nova eleição geral na CBD estava marcada para janeiro de 1958. Nesses três anos de mandato, pouco havia para comemorar em termos esportivos. Os torneios onde foram vitoriosos – duas Taças Oswaldo Cruz, uma Taça Bernardo O’Higgins, uma Copa do Atlântico – eram considerados de menor importância no cenário internacional. No principal título conquistado, o do campeonato pan-americano em 1956, a CBD pouco participara, sendo muito mais o resultado do empenho da federação gaúcha de futebol. As campanhas nos torneios sul-americanos de 1956 e de 1957 foram abaixo da média. A classificação da equipe do Brasil para a Copa do Mundo foi angustiante, deixando mais em evidência as falhas do que as virtudes do escrete. Por outro lado, a dominância no campo esportivo já estava consolidada. Através de uma política de troca de favores e de muitas promessas para as federações de esportes amadores, para as federações de futebol do norte/nordeste e do sul do país e, principalmente, para a federação paulista, com todos os problemas existentes, a atual gestão possibilitava um espaço político bem maior que a anterior.

Entretanto, Sylvio Pacheco desistiu da disputa. O grupo resolveu então inovar na relação de nomes que iria encabeçar a chapa. Lançou como candidato à presidente, João Havelange, e, como vice, Paulo Machado de Carvalho. Para os demais estados e para as federações amadoras, a candidatura Havelange/Machado de Carvalho representava um passo adiante no processo de descentralizar do poder do campo esportivo que estava, até 1955, enraizado na cidade do Rio de Janeiro e na prática futebolística. Os opositores lançaram apressadamente a candidatura de Carlito Rocha, dirigente e ex-esportista do Botafogo.

Como era previsto, a vitória da chapa situacionista foi absoluta com o resultado de 185 votos favoráveis e 19 contrários. Se os cronistas de A Gazeta Esportiva passaram a adotar um tom mais conciliatório entre o passado e o presente do campo esportivo brasileiro, os do Jornal dos Sports se mantiveram na oposição. Para Mário Filho: “A CBD entregou-se a São Paulo”.16

Com a vitória de Havelange, os dirigentes envolvidos davam prosseguimento ao planejamento iniciado na gestão de Sylvio Pacheco. É lugar-comum nos periódicos esportivos e nas obras jornalísticas e acadêmicas sobre a temática do futebol enfatizar a vitória de Havelange na presidência na CBD como um marco, como o início de uma nova era nos esportes nacionais. Acredito que tal assertiva é um pouco injusta com todo o processo anterior que forjou a sua candidatura.17 A gestão Havelange foi a continuação de um processo de reformulação do campo esportivo que teve início em 1955 com a vitória de Sylvio Pacheco. Os nomes de destaque da gestão de Havelange já estavam presentes na anterior. Até mesmo o famoso projeto para a conquista da Copa do Mundo, formulado por Paulo Machado de Carvalho, já estava sendo construído e discutido desde, no mínimo, a época das eliminatórias.

Outro ponto interessante abordado por esses escritores é a negação das experiências dos dirigentes anteriores. Tudo o que ocorreu antes de Havelange é considerado amador, desorganizado, inexperiente, incompetente. A organização da Copa do Mundo de 1950 é considerada corrupta, com a influência de políticos que queriam utilizar os feitos dos atletas brasileiros em suas campanhas políticas. A preparação para o campeonato mundial de 1954 foi considerada incompetente e os dirigentes eram pouco preparados para o ofício.18 Acho difícil qualquer pessoa que se proponha a conhecer a biografia de muitos dirigentes esportivos anteriores a 1955, como Luiz Aranha, João Lyra Filho e Rivadávia Corrêa Meyer, e outros ainda mais antigos, como Arnaldo Guinle e Antônio Prado Jr., considerá-los incompetentes ou despreparados. Eles possuíam outras referências teóricas e práticas para avaliar o que era “competência” e o que era “preparo”. Eles foram derrotados naquilo que era considerado o principal objetivo esportivo entre os brasileiros: ganhar uma Copa do Mundo. Mas não é por eles terem fracassado que podemos avaliar suas experiências de vida como inúteis ou incompetentes.

A geração de dirigentes que vivenciou a adoção do profissionalismo, a divisão do campo esportivo em dois grandes grupos, a pacificação, a criação do CND, a construção do estádio do Maracanã, a organização da Copa do Mundo no Brasil, o Maracanazo e a “Batalha de Berna” saía de cena para dar lugar a um novo grupo de gestores, com objetivos nitidamente distintos.

Juscelino JK
Foto oficial como presidente, em 1956. Fonte: Wikipedia

A Copa do Mundo da Suécia e o Governo JK

Juscelino Kubitschek já estava no poder havia dois anos. Na esfera cultural, novas tendências estavam surgindo, como a bossa nova e o cinema novo.19 As atividades de lazer foram ampliadas devido principalmente ao vertiginoso processo de industrialização e ao crescimento da migração para os centros urbanos. Diferentemente da Era Vargas, houve a crescente participação dos grupos particulares que exploravam o lazer com o uso da tecnologia. Por outro lado, o lazer popular mantinha a tradição da diversão de rua, do circo e das festas típicas católicas. Se, na época de Vargas, o Estado mantinha uma estrutura de festas e encontros com os trabalhadores, com órgãos governamentais que tinham a função de coordenar as atividades de lazer; nos anos de JK, diferentemente, houve certo afastamento.20 Longe das atividades de lazer, o Estado estava distante de uma importante forma de contato e de legitimação política. Era necessário recuperar este canal de comunicação. A Copa do Mundo de Futebol, a ser realizada na Suécia, poderia ser a oportunidade esperada.

(Continua…)

Notas

1 O atual texto está dividido em três partes e é baseado no terceiro capítulo do livro do mesmo autor, intitulado Pra frente Brasil! Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pra frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, a dialética da ordem e da desordem (1950-1983). São Paulo: Intermeios, 2018, p. 87-110.

2 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 151.

3 GOMES, Ângela de Castro. Venturas e desventuras de uma república de cidadãos. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de História. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 162.

4 FERREIRA, Jorge. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 338.

5 BOURDIEU, Pierre. Como é possível ser desportivo? In: BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, op. cit., p. 137.

6 Em 1955, a composição da nova direção ficou com Sylvio Corrêa Pacheco, na presidência; João Corrêa da Costa na vice-presidente, Emanuel Viveiros de Castro como secretário-geral, João Maria Medrado Dias para a primeira secretaria, Abílio Ferreira d’Almeida para a segunda, Carlos Osório Almeida para a direção de desportes aquáticos, e Claudionor de Souza Lemos para a direção de esportes terrestres.

7 Jornal dos Sports, 10 dez. 1954, p. 10.

8 Exceção a Vargas Netto que, em suas crônicas, colocou-se claramente ao lado da chapa oposicionista. Ver: VARGAS NETTO, Manuel do Nascimento. Vitória. Jornal dos Sports, 16 jan. 1955. 2º Caderno, p. 1

9 Jornal dos Sports, 16 jan. 1955, p. 9.

10 Para José Lins do Rêgo, a vitória de Sylvio Pacheco foi tramada no interior do Fluminense para infiltrar seus interesses na CBD. Ver: RÊGO, José Lins do. Vascaínos e tricolores. Jornal dos Sports, 24 mar. 1957, p. 13; RÊGO, José Lins do. Persona non-grata. Jornal dos Sports, 2 abr. 1957, p. 5.

11 As partidas foram realizadas em 1957 no dia 13 de abril, em Lima, e no dia 21 de abril, no Rio de Janeiro.

12 Ver: A Gazeta Esportiva, 23 abr. 1957, p. 2.

13 CARVALHO, Paulo Machado et al. O Plano Paulo Machado de Carvalho. In: BUARQUE, Paulo Planet. Uma vida no plural. São Paulo: Nacional, 2003, p. 317-318.

14 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 265.

15 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os Anos JK: industrialização e modelo oligárquico de desenvolvimento rural. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 155-194. Ver também: ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 64-65.

16 RODRIGUES FILHO, Mário. Nunca se fez menos pelo foot-ball brasileiro. Jornal dos Sports, 10 jan. 1958, p. 5.

17 Ver: FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 132-134.

18 Ver: ASSAF, Roberto. Banho de bola. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 162-163.

19 MONTENEGRO, Rosilene. Juscelino Kubitschek. Mito e mitologias políticas do Brasil moderno. Tese de Doutorado em História. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 375.

20 ALMEIDA, Marco Antônio Bettine de. Análise do desenvolvimento das práticas urbanas de lazer relacionadas a produção cultural no período nacional-desenvolvimentista à globalização através da “teoria da ação comunicativa”. Tese de Doutorado em Educação Física. Campinas: UNICAMP, 2008, p. 76-81.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. “A Taça do Mundo É Nossa!” Discurso oficial, campo político e campo esportivo: década de 1950 (2ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 27, 2024.
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