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O futebol Nordestino existe (e agoniza) fora dos holofotes de Ceará, Pernambuco e Bahia

Ana Flávia Nóbrega Araújo 1 de dezembro de 2020

Partícipe de uma indústria, a televisão, assim como qualquer outra, está sujeita às leis de economia de mercado. Bem por isso, desde o início da história da imprensa no Brasil, os meios de comunicação e os seus porta-vozes se concentravam nos eixos de maior desenvolvimento econômico, político e social, determinando o que era ou não notícia, ditando o que precisava ou não ser consumido pela população.

Fosse nas páginas dos jornais, ondas do rádio e imagens da televisão, o futebol jogado no Sudeste do país era tido como modelo a ser seguido. A extensão da área de recepção do discurso midiático, através da expansão da linha de sinal das emissoras, são resultantes da percepção do futebol como um negócio lucrativo. Como explica, Galeano (2012):

“Agora milhões de pessoas podem ver as partidas, e não apenas as milhares que cabem nos estádios. Os torcedores se multiplicaram e se transformaram em possíveis consumidores de qualquer coisa que os manipuladores de imagens queiram vender”.

Esforços regionais e isolados com publicações específicas sobre futebol puderam ser notadas através da regionalização midiática. Santana (1995, p.49) explica que a tomada de atenção para a região surgiu na segunda metade do século XIX quando “significativas transformações ocorridas no sistema capitalista mundial desencadearam o processo de reestruturação da “região” enquanto espaço de produção de capital”.

Ainda assim, a hegemonia seguiu sendo dominante, principalmente se comparado com a região Nordeste. As transmissões esportivas acabam por massificar o discurso em torno das mesmas entidades clubistas. Pesquisa Datafolha de 2019, mostra que a maior torcida da região é do Flamengo com 27%. Nenhum nordestino figura no “top 5”, formado por clubes do Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2020, o IBOPE Repucom apontou que dos 27,8 milhões de torcedores do NE, 13,2 (48%) afirmaram torcer para mais de um clube. O cenário é percebido a partir da incapacidade da transmissão das capitais adentrar em todos os municípios dos estados, bem como a inexistência de uma atenção a estados menos expressivos no cenário esportivo.

Até os dias atuais os nordestinos são vistos como os azarões, a zebra que em algum momento chegará, o cavalo em cima de um telhado que, em algum momento, vai cair. Além da mídia que monopoliza as atenções aos times do eixo, o discurso é repercutido por torcedores que teimam em olhar pejorativamente.

A margem da marginalização

Precisamos, para além da história e de esforços que tentam compreender a questão, refletir sobre as relações hegemônicas que acabam atropelando os clubes de menor expressão e que não figuram os holofotes midiáticos com frequência dentro do próprio Nordeste. Longe de viver a face vitimista das imagens instauradas, o nordestino, desde a chegada do futebol na região lutou pelo seu desenvolvimento e popularização. O esporte ganhou voz na televisão no Nordeste em 1970 com a inserção do sistema de afiliadas, o produto ainda era o produzido no Sudeste. Assistir a partidas dos times do eixo são, até 2020, uma realidade.  

A força da transmissão televisiva se apresenta como decisiva para fortalecer o desenvolvimento. Ceará, Bahia e Pernambuco possuem, há anos, a transmissão esportiva televisionada por emissoras de Rede afiliadas, principalmente, à Rede Globo. Além de figurar nas pesquisas, os maiores clubes dos estados também estão mais bem colocados em campeonatos nacionais. A força de Ceará, Fortaleza, Bahia, Vitória, Sport, Náutico e Santa Cruz são, muitas vezes, espremidas como a totalidade do Nordeste.

Treze e Campinense no Clássico dos Maiorais. Foto: Wikipédia

A relação, no entanto, precisa ser observada mais de perto. Ora, a partir da força dos mencionados se esquece de que o Nordeste não é homogêneo e, apesar de avanços no futebol, os grandes acabam atropelando os menores. Em proporção distinta, mais ainda existente, forma-se uma hegemonia dentro da hegemonia.

Na Paraíba, lugar de fala da autora, iniciativas tímidas de transmissão televisiva não surtiram efeito. E, em pleno 2020, o torcedor consome seu futebol em rádio, portais, streaming e um único jornal impresso.

Distante do holofote nordestino, o futebol paraibano agoniza. Botafogo-PB, clube mais estruturado financeiramente no estado, luta para não cair para a Série D depois de uma campanha fraca no Brasileirão e das sequências pífias no estadual e Copa do Nordeste. O Treze, também na Série C, briga, com ajuda de aparelhos, com o rival da capital para escapar do rebaixamento. O caos em campo reflete os bastidores do Galo. Meses de salários atrasados são uma rotina no Alvinegro que recorre aos famigerados abnegados que dão sobrevida ao clube. 

Na Série D, o Campinense deixa os tempos gloriosos de campeão e vice-campeão do Nordestão, em 2013 e 2016, cada vez mais para trás. A realidade de hoje é uma dívida que, de acordo com o presidente do clube, Paulo Gervany, em entrevista ao portal Voz da Torcida no início da pandemia do novo coronavírus, avança para além dos R$ 20 milhões.

Na temporada de 2020, o Rubro-Negro foi finalista do estadual. O que, na realidade paraibana, não quer dizer muito. E ainda, eliminado com antecedência da Série D, ainda na fase de grupos. Para se chegar ao resultado, foram 81 jogadores contratados e 7 treinadores anunciados, sendo apenas 5 com atuação efetiva.

A Raposa padece nos braços da 4ª divisão por 8 temporadas, desde 2011 o time tenta voltar para a Série C. A promessa do retorno foi, literalmente, vendida esse ano pela empresa FDA Sports que geriu o departamento de futebol do clube, assumindo gastos e contratações. Longe de entregar o prometido, a empresa tenta a renúncia do presidente do clube para gerir, sozinha, o Campinense em 2021. As lições a respeito de terceirização do futebol, com o exemplo da campanha catastrófica do Imperatriz-MA na Série C, não são o bastante para tentar evitar o pior. Se é que ainda existe algo pior.

Atlético Cajazeirense de Desportos. Imagem: Reprodução Twitter

O Atlético de Cajazeiras, no Sertão do estado, tem uma torcida apaixonada, fez uma boa campanha no estadual, mas não conseguiu êxito na Série D e foi eliminada. Um empate classificaria o Trovão Azul, mas a inexperiência e a troca de treinadores, inclusive, na última rodada da fase de grupos, foram um divisor de águas.

A tragédia no futebol paraibano não é de hoje, não foi fruto da covid-19. É anunciada há anos. Mas desconhecida para grande parte do Nordeste e do Brasil. Seja na grande mídia ou mídias alternativas que ganham espaço de maior destaque na região, a concentração em abordagem e do critério de noticiabilidade privilegiando os grandes são rotineiros. Essa concentração generaliza o Nordeste, incorpora discursos de resistência a hegemonia Sudestina e dissemina, com frases clichês, de quem fala da região para o Nordestino. Mas de que região estamos falando?

Com tamanha necessidade de consumir materiais, principalmente no mundo globalizado, é imprescindível a produção dos meios de comunicação aumente, sejam eles tradicionais e consolidados ou alternativos e com nicho específico reduzido. Modificar o cenário hegemônico de submissão aos clubes do eixo ou ao CEPEBA (Ceará, Pernambuco e Bahia), dentro do próprio território, não é tarefa fácil, mas se mostram como necessárias para utilizar o futebol como meio de desenvolvimento regional.

A presença digital do torcedor trouxe cenários de reivindicação pela regionalização cada vez mais específica para que não se viva o eterno retorno da dependência dos grandes e a desvalorização do local que culmina no enfraquecimento dos clubes e até seu fim.

Referências

GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&M, 2012.

RAYCHTOCK, Andrey. A mídia e as torcidas mistas no futebol do Nordeste. 2015. 56 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação – Habilitação em Jornalismo) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

SANTANA, Martha M. Falcão de C e Morais. “Crise e Identidade Regional”. In: Debates Regionais. História e Identidade(s) Regionai(s). João Pessoa: Editora Universitária/NDIHR, 1995.


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Ana Flávia Nóbrega

Paraibana e jornalista. Atua como repórter no Jornal A União e portal Voz da Torcida. Comentarista esportiva na Rádio Tabajara. Já foi editora do programa Globo Esporte Campina Grande, na TV Paraíba e repórter do GloboEsporte.com/pb. É pesquisadora de futebol nordestino com ênfase nas relações entre regionalização das transmissões esportivas e os modos de torcer. Atualmente está com a pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. Integra o Coletivo ReNEme.

Como citar

ARAúJO, Ana Flávia Nóbrega. O futebol Nordestino existe (e agoniza) fora dos holofotes de Ceará, Pernambuco e Bahia. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 2, 2020.
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