No primeiro semestre de 2006 eu viajava com amigos, no final da tarde de um domingo, de Buenos Aires para La Plata, Argentina. Escutávamos no rádio do carro um programa ao final de uma rodada do Torneio Clausura, hoje extinto. Maradona dava uma entrevista e logo de início veio a provação: “Então, Diego, quer dizer que vestistes a camiseta do Brasil”? A pergunta se referia a uma propaganda para um refrigerante brasileiro que o craque argentino protagonizava. Depois de ingerir uma quantidade imensa do refresco, ele sonhava – ou tinha um pesadelo – em que vestia a verde-amarela. El Diez não se fez de rogado e, tirando o peso da questão, respondeu: “A primeira vez em que vesti a camiseta do Brasil foi em 1990, a de meu amigo Antônio Careca”.

Sim, terminada a vitoriosa partida da Copa de 1990, em que Maradona teve seu lance de craque e o sistema defensivo da seleção brasileira seu momento de pânico, resultando no gol de Claudio Caniggia, os amigos que brilhavam no Napoli trocaram camisetas. Uma vez perguntado sobre o que teria faltado no jogo para que o Brasil naquela vez vencesse a Argentina, Careca afirmou que nada, a não ser que a bola entrasse no gol. De fato, em minha memória a partida é a única em que o selecionado nacional jogou bem, com três finalizações na trave e amplo domínio do jogo.

Careca era o craque da seleção de 1990, mas já se destacara muito em 1986, ao marcar cinco gols no Mundial disputado no México. Não fosse a infeliz disputa de pênaltis perdida contra a França (com direito à bola na trave de Júlio César, falha de Sócrates e gol dos gauleses depois que a bola bateu nas costas do goleiro Carlos) talvez o atacante tivesse chegado à artilharia do Mundial. E ao título.

A geração de Sócrates, Zico, Falcão, Cerezzo e Junior ficou sem um título mundial de seleções, como se sabe. Em 1982 houve a derrota frente à Itália e nela Careca nada pôde fazer porque, titular até então, foi cortado por conta de uma contusão já nos treinamentos na Espanha. O titular foi Serginho Chulapa e o novo atacante Roberto Dinamite, do Vasco. Nenhum dos dois chegava perto do talento do melhor centroavante brasileiro depois de Reinaldo e antes de Romário.

Mas, eu vi Careca, que nada tinha de calvo, anos antes, em 1978, quando surgiu no Guarani para ser campeão brasileiro. Liderava o alviverde campineiro Zenon, catarinense de Tubarão, que chegara depois de vencer o estadual pelo Avaí, três anos antes. Treinado por Carlos Alberto Silva, cujo jeito caipira ajudou a esconder a capacidade que o levaria a grandes trabalhos na seleção brasileira e no Porto, entre outros, o Bugre tinha como ponto de equilíbrio o veterano Zé Carlos, meio-campo do Cruzeiro campeão da Libertadores de 1976. Do meio para frente, despontava também o meia-direita Renato, destaque do São Paulo nos anos seguintes. O maestro, no entanto, era Zenon, o camisa 10 de bem cultivado bigode. Atacando pelo centro, Careca, com apenas dezessete anos.

Careca comemora gol. Créditos: Acervo e Memória da CBF.

Na campanha do brasileiro, o Inter foi derrotado pelo Guarani, em Porto Alegre, com um golpe de mestre de Zenon, um lançamento para si mesmo, enganando a bem treinada defesa colorada, escolada em fazer a linha de impedimento; o Vasco ficou em segundo plano do Rio e o Palmeiras foi derrotado em São Paulo, em dois jogos finais. No primeiro deles, o experiente goleiro Leão caiu na provocação de Careca e o agrediu dentro da área. Falha imperdoável para o melhor goleiro da época, capitão do selecionado no Mundial que fora disputado na Argentina.  Expulsão e pênalti. Gol de Zenon.

Do Guarani Careca foi para o São Paulo, campeão brasileiro em 1986, vencendo o time que o revelara, nos pênaltis, logo após um gol seu no último minuto da prorrogação. Com Müller fez uma dupla de ataque como poucas. Logo emigrou para o Napoli e encontrou parceiro ainda melhor em seu amigo Diego. Juntos, levaram o pequeno clube a títulos inéditos em sua história, incluindo um scudetto e uma Copa da Uefa. De quebra, mais duas Copas da Itália. Lembro-me das transmissões televisivas em narração de Sílvio Luiz, que a ele se referia como Carecone. Nos comentários, outro Sílvio, o Lancellotti, especialista em futebol, mas também em gastronomia, como que a antecipar a macarronada de domingo servida logo depois do jogo do Campeonato Italiano. Com a Band daquela época, acompanhávamos os brasileiros, mas desfrutávamos, sobremaneira, do grande Milan dos holandeses Ruud Gullit, Marco van Basten e Frank Rijkaard, moderno, vibrante, campeoníssimo.

Do Napoli, o já veterano centroavante foi jogar no Japão, então um destino relativamente novo, mais voltado a futebolistas em final de carreira, apesar de gente jovem e talentosa, como Djalminha, ter andado por lá ainda com poucos anos como profissional. Convocado para a seleção por Carlos Alberto Parreira em 1993, Careca não teve o mesmo desempenho de outros anos e, ao que me parece, um certo desânimo caiu sobre ele. Não voltou para a Copa no ano seguinte, abrindo espaço para Viola, em grande fase, e para Ronaldo, então Ronaldinho, depois O Fenômeno.

Parceiro de Maradona, é certo, mas atacante com brilho mais que próprio. Este foi Careca, um Rei na grande área cuja sorte em Copas não foi das melhores.  Não importa.

São Bernardo do Campo, janeiro de 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. (Antônio) Careca. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 20, 2018.
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