173.4

Apostas, enganações e sofrimentos (futebol)

Em noites de domingo, há décadas atrás, assistíamos na TV os resultados da loteria esportiva. Era época de pouca rapidez na circulação de informações, já que dependíamos das estações de rádio e dos poucos canais de televisão para saber das partidas de futebol no dia em que eram realizadas. A loteca, como era informalmente chamada, compunha-se de 13 jogos, a maioria deles na tarde dominical, com marcas em uma cartela preenchida a caneta (azul ou preta!) ou por perfurações no resultado esperado. A tentativa mínima dava direito a apenas um jogo duplo, ou seja, em uma das contendas se podia arriscar em dois resultados possíveis.

Quem fizesse os 13 pontos ganhava a bolada da semana; não havendo apostadores que os completassem, o que era muito raro, dividiam o prêmio os que houvessem chegado aos 12. No Fantástico, revista eletrônica semanal da Rede Globo em que a rodada era apresentada, aparecia na tela um cartão de loteria com uma voz em off narrando se tivéramos coluna 1, coluna do meio (empate) ou coluna 2. Aparecia, ademais, a animação de uma zebra sorridente cada vez que a vitória ou mesmo o empate eram resultadosinesperados. Deu zebra, se dizia. A coisa era tão popular que extrapolava a loteria. Na rua se mencionava o equino listrado quando algo inesperadamente dava errado, assim como se aplicava pejorativamente a expressão coluna do meio para designar homossexuais. Um dos esportes preferidos dos brasileiros é, antes do futebol, o preconceito.

Já não existe a loteria esportiva, mas as apostas seguem firmes e fortes. Em meio à discussão sobre sua regulamentação no Brasil – e afora as práticas clandestinas – é possível acessar casas do exterior, tudo facilitado pela internet. Não é um processo novo. Há duas décadas o filho de um amigo frequentava o Estádio Orlando Scarpelli, do Figueirense, para acompanhar partidas da Série A e orientar, via telefone celular, apostadores estrangeiros sobre os rumos da partida. Neste momento, o mundo virtual do jogo patrocina equipes e programas esportivos brasileiros, recrutando astros do futebol para serem seus garotos-propaganda.

Volante loteca
Volante de apostas da Loteca. Foto: Reprodução.

II

No começo de 2012 o Corinthians conquistou a Copa São Paulo de Futebol Júnior, com uma vitória por dois a um sobre o Fluminense, na final. Os gols foram marcados pelo zagueiro e capitão da equipe Antônio Carlos, cuja carreira vem se desenvolvendo no Orlando City, dos Estados Unidos, depois de atuar por Avaí, Palmeiras e Flamengo, entre outras equipes. O grande destaque do time era, no entanto, seu companheiro de zaga, Marquinhos. Já incorporados ao elenco profissional, os jovens beques“desceram” para reforçar o Timão na Copinha. Joia da base, muito técnico na marcação e com habilidade na saída de bola – chegava às vezes a atuar como volante – Marquinhos era muito elogiado também pelo tempo de bola no jogo aéreo.

No mesmo 2012, o Corinthians disputaria a Libertadores com o atacante Adriano vestindo a camisa 10, ele que fora suplente no ano anterior, quando o Timão venceu o Brasileirão. Sem jamais conseguir chegar à condição ideal, e tendo recusado a obrigatória balança que denunciaria as dificuldades com o peso, o Imperador foi demitido pelo técnico Tite. O atual comandante do Flamengo já afirmou, aliás, que não ter recuperado o centroavante é para ele uma grande frustração (há algo professoral e até mesmo salvacionista nesse discurso, postura que reitera a fantasia segundo a qual o esporte teria a capacidade de corrigir as pessoas). Pois bem, quem herdou a vaga de Adriano foi Marquinhos, incluído entre os 25 inscritos já na primeira fase.

Sem ter entrado em campo, Marquinhos foi campeão da Libertadores, zagueiro que vestiu a 10 para receber a medalha. Logo depois da competição, transferiu-se para a Roma, insatisfeito com as poucas chances que tinha de atuar entre os titulares do Timão. Era difícil. Como o próprio Tite disse certa vez, como substituir alguém numa defesa (formada por Leandro Castán e Paulo André, depois Chicão) que tomou apenas quatro gols em toda competição sul-americana?! Da Itália para a França não demorou, e logo ele se tornaria ídolo do Paris Saint-Germain, equipe da qual hoje é capitão e interlocutor dos Ultras, os torcedores fanatizados e violentos do clube. Também se tornou titular da seleção brasileira e, antes disso, campeão olímpico no Rio de Janeiro, em 2016. Ainda sem uma Liga dos Campeões para chamar de sua, tampouco uma Copa para coroar a trajetória, não se pode negar que o zagueiro traça uma bela carreira que, ao que parece, ainda vai longe.

Eis que nos últimos tempos podemos assistir no intervalo das partidas de futebol uma outra face de Marquinhos, a de protagonista da publicidade de uma casa de apostas. Ele aparece correndo e disputando bolas em um simulacro de partida de futebol em que estão também personagens de animação. O defensor da seleção brasileira surge emulando seus companheiros, pronunciando clichês motivacionais e fazendo caretas que fingem determinação e esforço competitivo. A peça publicitária é tosca e se destina a convencer telespectadores a arriscar dinheiro, via um site, em partidas de futebol.

III

O vínculo entre o empenho do jogador formado no Corinthians e as apostas parece sugerir uma dignificação das últimas. O objetivo talvez seja amainar a associação entre jogar a sorte e viciar-se, o que desencadeou ao longo do século 20 campanhas por uma prática esportiva limpa e desinteressada. É tudo um tanto constrangedor. O esporte é profissional e as apostas desde sempre fazem parte dele. A incerteza do jogo convida ao risco, assim como ele leva à fantasia narcísica da sorte grande com a qual se será contemplado, à ilusão de que pode dominar o futuro, à dependência do pequeno gozo. Em um país em que se aposta em brigas de galo e lutas clandestinas entre seres humanos, além de permitir todo tipo de especulação na ciranda financeira, por que não admitir que se arrisquedinheiro na hipótese de que o primeiro lance de umapartida será a bola saindo pela lateral?

Pessoalmente, preferia que não houvesse jogo a dinheiro, algo que serve, sobretudo, para enriquecer a banca e adoecer as pessoas. Não sendo possível acabar com ele, então que se os oficialize e se coloque muitos limites ao processo, diminuindo as possibilidades de vício. O mesmo deveria valer para a nicotina e o álcool, cujo consumo é grave problema de saúde pública, destruindo organismos e trazendo sofrimento psíquico. Enfim, podemos ter uma vida melhor se diminuirmos os danos a que estamos sujeitos. No mais, é ter consciência da própria insuficiência e tentar desfrutar do futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Apostas, enganações e sofrimentos (futebol). Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 4, 2023.
Leia também:
  • 181.2

    Futebol e infância: a importância da inserção das crianças nos estudos sobre torcidas

    Maria Silva
  • 181.1

    O que significou ser mulher e gostar de futebol? Reflexões sobre experiência, memória e feminismo

    Luiza Sarraff
  • 180.29

    Jovens jogadores, vicissitudes e movimentos

    Alexandre Fernandez Vaz