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Bastidores paralímpicos: os Jogos de Sydney 2000

Wagner Xavier de Camargo 18 de outubro de 2020

Há exatos vinte anos se iniciava a XI edição dos Jogos Paralímpicos, em Sydney, Austrália. Pela primeira vez no hemisfério Sul, o evento estava cercado de muita expectativa, principalmente pela exoticidade que o país representa para estrangeiros. Esses Jogos inauguraram o formato de “modelo único”, que unificava ambos os comitês organizadores, tanto para os Jogos Olímpicos de Verão, quanto para os Paralímpicos. Na então recente história das Paralimpíadas (desde Roma, 1960) foi a primeira vez que isso ocorreu e assim permanece até às edições atuais.

Eu, recém terminado o mestrado, tinha conseguido umas aulas como professor de Geografia em um cursinho pré-vestibular, que pagava algo simbólico. No tocante ao esporte, era voluntário na Associação Brasileira de Desportos para Cegos – ABDC (hoje extinta) e um de seus coordenadores nacionais de modalidades esportivas. Como a área de esportes para atletas com deficiência ainda engatinhava na profissionalização, ganhos financeiros desta atividade eram escassos. Portanto, viagens acompanhando cegos dirigentes acabavam sendo uma espécie de retribuição pelo trabalho e o tempo dedicados de algumas pessoas.

Foi assim que, acompanhando David Farias, presidente da ABDC à época, fui convocado pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) para viajar a Sydney. Como éramos guests (convidados) da delegação brasileira paralímpica – a segunda da história depois da criação do CPB, em 1995 – ganhamos um crachá tendo o símbolo do infinito (∞).

Crachá de acesso aos Jogos Paralímpicos de Verão Sydney 2000 (arquivo pessoal).

 

Ao contrário do que imaginava, o símbolo infinito não era uma marca qualquer. Descobri, já nos primeiros dias dos Jogos, que ele dava acesso a todas as instalações paralímpicas, de qualquer modalidade esportiva, que quiséssemos assistir. O mais interessante é que, como convidados circulam muito pelos bastidores, isso foi uma estratégia inteligente para conferir ao David um conhecimento internacional da área de esporte para cegos, pois lá estavam representantes de várias federações esportivas internacionais. E a mim serviu para que pudesse ter uma visão do todo sobre esportes adaptados e criados por/para pessoas com deficiência e, além disso, ofereceu uma oportunidade para analisar como o goalball se comportava no alto rendimento, uma referência importantíssima para quem estava na função de coordenar e desenvolver tal modalidade no Brasil.

Naquele momento, eu executava as funções de coordenador nacional desse esporte e estava em processo de implantar um formato regionalizado de competições (que então se iniciava no Sul, no Sudeste e no Nordeste), de formar um quadro de arbitragem internacional, de qualificar técnicos/as brasileiros/as e de consolidar a arbitragem em inglês em eventos brasileiros. Com nivelamento internacional, não tínhamos nada: nem equipe de arbitragem, muito menos selecionados nacionais. A ideia de me enviar como uma espécie de “olheiro” – e aí o crachá do infinito funcionou muito bem – era coletar informações para que a modalidade se qualificasse a fim de enfrentar, nos anos seguintes, a inconteste hegemonia europeia no goalball.

Não tenho melindres para afirmar que um dos artífices (talvez o mais importante) de tal estratégia foi Vital Severino Neto, um dos grandes líderes que este país já teve na área dos esportes de competição para cegos e pessoas com visão subnormal. Vital era advogado de formação, mas uma pessoa sensível para a administração esportiva. Participou da criação da ABDC, do CPB, sendo presidente de ambos por vários anos. Tudo o que aprendi em termos de gerência de esportes, planejamento, avaliação, antecipação de problemas e mesmo perspectiva de futuro deu-se a partir de meu contato próximo a ele, nos anos em que trabalhamos juntos. A Vital devo parte da pessoa e do profissional que me tornei.

O trabalho ao qual fui designado, no entanto, começou antes, coordenando a terça parte de todo o grupo que viajou à Austrália. Nosso voo faria o trajeto mais longo, a favor do fuso horário, parando em Johanesburgo (África do Sul), durante 2 dias, depois Perth (Austrália) e, finalmente, Sydney. Somando os tempos de viagem, ficamos mais de 30 horas no ar. Essa terça parte da delegação (as outras partes viajaram via Buenos Aires e Los Angeles) compunha-se de músicos e artistas brasileiros com deficiência, além de um grupo de jornalistas da mídia convencional, levados pelo CPB para cobrirem o evento.

Se a viagem transcorresse conforme planejado, ela já seria bastante problemática, particularmente com os trajetos aeroporto-hotel-aeroporto das pessoas com deficiência em Johanesburgo. Na saída da África do Sul, no entanto, tivemos desvio dos equipamentos de som e malas pessoais por parte de uma empresa que se passou pela equipe contratada. Exceto pela correria de acionar a polícia e ir atrás do material furtado, causando um pequeno atraso na decolagem, o resto seguiu o protocolo. Sem internet desvencilhada do computador, whatsapp ou qualquer desses recursos de comunicação instantânea contemporâneos, tomei o fato como realmente desafiador – talvez um dos mais difíceis que resolvi em minha trajetória no esporte paralímpico de alto nível.

Os trabalhos em Sydney foram intensos e de bastidores. Eu e David ficamos num hotel, numa região da cidade muito próxima a Opera House, distante da Vila Olímpica/Paralímpica. A hospedagem foi estratégica para atender às reuniões presenciais com coordenadores internacionais de modalidades ou mesmo com os membros da Federação Internacional de Esportes para Cegos (IBSA), com os quais David tinha alguns encontros. Entre uma atividade e outra, assistíamos modalidades desconhecidas, filmávamos jogos no goalball, procurávamos por restaurantes brasileiros (porque ele sentia falta da comida de casa) ou prestigiávamos coletivas de imprensa dos/das atletas brasileiros/as. Lembro-me da sala cheia de jornalistas brasileiros, quando por ocasião da medalha de ouro de Antônio Tenório da Silva, no judô, categoria até 90 kg.

Coletiva de imprensa sobre medalha de ouro, do judoca Tenório, cego total (arquivo pessoal).

 

A campanha brasileira conquistou 22 medalhas, nada muito excepcional se comparado aos Jogos de Atlanta-96 (21 medalhas), porém o saldo de conhecimento (know how) adquirido sobre o universo paralímpico fui extremamente positivo. Voltamos de Sydney com muitas ideias na cabeça e materiais debaixo do braço. No goalball, foi a primeira vez que presenciei uma competição de alto nível e, portanto, observei detalhes importantes: bolas sobressalentes à disposição, árbitros/as e juízes de linha uniformizados, mesa com cronômetros manuais back up de emergência, placar marcador acessível para manipulação de mesários, coordenadores da modalidade e da IBSA no suporte, e pessoas de apoio para resolver incidentes.

Jogo masculino de goalball entre Austrália e Estados Unidos (arquivo pessoal).

 

Ainda trouxe muitas cenas gravadas em fita VHS de jogos de goalball, masculinos e femininos, os quais mostravam performances de atletas e equipes, que eram referência no ranking internacional à época. Foi a partir dessas gravações que os primeiros trabalhos de escrutínio de táticas e técnicas esportivas da modalidade foram feitos pelo time especialista que se formou no ano seguinte, para participação no Campeonato Pan-Americano de Goalball em Spartanburg, Estados Unidos. Esse evento seria a primeira tentativa, ainda dentro do continente Americano, de conquistar uma vaga para os Jogos de Atenas, uma história que contarei no futuro.

A visão dos bastidores pode não dar luz evidente em dado momento e nem nos colocar sob os holofotes da mídia ou da fama, algo que nunca pode chegar. No entanto, ela nos permite enxergar acontecimentos e pessoas por outras óticas, mais oblíquas, não tão usuais ou evidentes. Bastidores também são lugares privilegiados, que lançam olhares sobre o mundo, desencadeiam percepções outras, que não podem ser desprezadas ou subjugadas, porque no cômputo geral, farão a diferença. Só esperar.

Casa-Brasil, Vila Olímpica/Paralímpica de Sydney, com jacaré, mascote da candidatura dos Jogos do Rio-2004 (arquivo pessoal).

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Bastidores paralímpicos: os Jogos de Sydney 2000. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 41, 2020.
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