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“Beau” Yustrich “Geste”: futebol, literatura e cinema na crônica de Nelson Rodrigues

Uma partida de futebol inevitavelmente não se resume ao campo de jogo durante o tempo de disputa da partida. Nesta proposta de análise o futebol se apresenta como fértil campo simbólico, possibilitando inúmeros objetos de estudo para as ciências humanas. Inserido nessa linha de raciocínio trago aqui da crônica de Nelson Rodrigues, Beau Yustrich Geste, publicada em 21 de dezembro de 1968[1], e republicada na coletânea de crônicas À sombra das chuteiras imortais[2]. Conhecido como jornalista, dramaturgo, cronista, dentre outras atividades, Nelson Rodrigues se notabilizou pelos seus textos sobre futebol que imortalizaram jogadores, técnicos, times e criaram personagens e fatos que povoam até hoje o imaginário futebolístico no Brasil. As crônicas de futebol de Nelson Rodrigues servem de fonte para diversos estudos sobre futebol no Brasil, sociedade e imaginário nacional. Talvez uma das características fundantes no texto de Rodrigues reside na intenção do mesmo em criar estes elementos híbridos no futebol, entre o real e o ficcional. Em uma conhecida frase, Nelson Rodrigues exprime seu sentimento em torno da narrativa do futebol; “em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. Assim, sobre a crônica, particularmente a sobre futebol em jornais, cabe a aqui a análise do professor Marcelino Rodrigues da Silva:

“A crônica, ao contrário, é, por excelência, o espaço onde a interpretação do futebol se vê livre para vôos mais altos. Se nos outros espaços do jornal o tratamento dos acontecimentos esportivos é objetivo e factual, na crônica a relação entre o texto e o acontecimento esportivo (que, aliás, costuma dividir com ela o espaço de uma mesma página do jornal) é de um outro tipo. O gênero de textos de jornal conhecido como crônica, ao tomar como tema o futebol, trouxe consigo todo um conjunto de características que já faziam dele um ser de certa forma estranho à linguagem de seu veículo. E são essas características que lhe conferem um papel diferenciado na interpretação do futebol.” (SILVA, p.30)[3]

Nesta crônica de Nelson Rodrigues intitulada, Beau Ysutrich Geste, onde o título mistura o filme Beau Geste com o personagem central do texto, o treinador Yustrich[4]. Podemos ver que Rodrigues incorpora elementos externos ao jogo de futebol para enriquecer a crônica e criar uma narrativa hiperbólica na busca em eternizar a partida de futebol e seus personagens. Começamos pelo título Beau Geste, que remete a história do filme norte-americano de 1966[5]. Vale lembrar que este filme é baseado em uma novela de mesmo, escrita pelo inglês P.C. Wren, (Percival Christopher Wren, 1875 – 1941).

Poster do filme, Beau Geste.
Pôster do filme Beau Geste (reprodução).
Capa do livro Beau Geste.
Capa do livro Beau Geste (reprodução).

Em suma, tanto livro e filme narram a história dos irmãos Digby e Beau Geste, que ao assumirem o roubo a joia de um lorde inglês, fogem e se alistam na lendária Legião Estrangeira. Em busca de um novo sentido para suas vidas e de aventuras os irmãos passam por diversos percalços desde o treinamento até as batalhas no deserto. O ápice desta história concentra na sangrenta batalha de Beau Geste no deserto contra os guerreiros árabes, quando Geste tem sua tropa abatida, conseguiu reverter à derrota eminente em uma vitória espetacular. É com uso desta metáfora bélica que Nelson Rodrigues criou a crônica do jogo amistoso entre as seleções de Brasil e Iugoslávia disputado em 19 de dezembro de 1968 no Estádio Mineirão. Inclusive este jogo, também é citado como uma das 50 maiores partidas da história do Mineirão, no recém-lançado livro; 50 anos Mineirão: 50 jogos, 50 craques[6], de autoria dos jornalistas Alexandre Simões e João Vitor Xavier. Vale lembrar que neste jogo o Atlético Mineiro representou a Seleção Brasileira a convite da CBD (atual CBF).

Poster da Seleção Brasileira no amistoso contra a Seleção da Iugoslávia. 19/12/1968
Pôster da Seleção Brasileira no amistoso contra a Seleção da Iugoslávia. 19/12/1968

Projetado no viés analítico Nelson Rodrigues cria um mundo paralelo para o jogo de futebol, trazendo para o mesmo as tensões bélicas da Guerra Fria vivida na época e ainda projeta a figura do polêmico Yustrich como análoga ao capitão de Beau Geste. Por este trecho da crônica de Rodrigues podemos entender a dimensão da narrativa proposta pelo autor:

“Começaram perdendo por 2 x 0. Quando se temia uma goleada, eis que o Atlético passou a uma reação maravilhosa. Sua equipe parecia morta e enterrada para o triunfo. E súbito, com os brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali, seus homens despertaram da falsa morte. Foi um espetáculo empolgante de paixão. Mas eu pergunto: — quem foi, acima de todos e de tudo, o autor do milagre? Eis o seu nome: — Yustrich. Temos a mania de dizer que técnico não ganha jogo. Bem sei que ele não dá uma única e escassa botinada. E nem enfia os gols da vitória. Mas, sem aparecer, ele pode estar por trás de cada botinada, dispondo. E o nosso Yustrich é do tipo guerreiro do capitão de Beau Geste. (RODRIGUES, p.157)[7]

Resumindo, a partida em questão terminou 3×2, para a Seleção Brasileira, conforme também consta da ficha do jogo produzida pela administração do Mineirão, e hoje disponível para consulta pública em formato digital no Museu Brasileiro do Futebol sediado no Mineirão. Os detalhes da partida ajudaram a fomentar a narrativa épica de Nelson Rodrigues, onde os iugoslavos abriram 2×0, em menos 10 minutos de jogo, e a seleção brasileira empatou aos 45 minutos do primeiro tempo. O gol causou euforia nos mais de 37 mil espectadores presentes no Mineirão naquela noite, em especial no treinador Yustrich que invadiu o campo de jogo para abraçar Amauri Horta, o autor do gol de empate. O treinador brasileiro foi expulso de campo pelo árbitro uruguaio Ramón Barreto, inconformado com a expulsão Yustrich deu uma “peitada” no árbitro. No segundo tempo, mais um lance pitoresco, Yustrich acessou o campo de jogo disfarçado de repórter, mas foi descoberto e expulso novamente. Mesmo assim, Ronaldo sacramentou a virada brasileira com o terceiro gol aos 8 minutos do segundo tempo, para a satisfação de Yustrich, Nelson Rodrigues e torcedores brasileiros.

Ficha do jogo, presente no acervo do Museu Brasileiro do Futebol. Disponível para consulta.
Ficha do jogo, presente no acervo do Museu Brasileiro do Futebol. Disponível para consulta.

Este mero amistoso entre a Seleção Brasileira, representada pelo Atlético Mineiro contra a Seleção da Iugoslávia ativou elementos bélicos e ideológicos para além do âmbito esportivo. Elementos da Guerra Fria foram transportados para o jogo do Mineirão em 1968, de um lado havia seleção brasileira, representando o ocidente, e o capitalismo regido por uma ditadura militar, do outro lado havia a Iugoslávia, membro do bloco socialista, também regida por um governo totalitário. O campo simbólico estava posto, portanto, recorrer ao Beau Geste, que remete a batalha da Legião Estrangeira contra os árabes não era de todo apenas hipérboles de Rodrigues, continha ali uma mensagem ideológica. Na prática simbólica, era o ocidente capitalista contra os socialistas da cortina de ferro, somando que em ambos os lados houvessem à época ditaduras e estados de exceção, e o jogo fosse apenas um amistoso, a metáfora “vencer ou morrer”, estava presente. Particularmente pelo fato de os brasileiros atuarem em seu próprio campo, diante de sua torcida contra um adversário temido pelos seus êxitos e cercado de mistérios, ampliando a carga simbólica da partida.

Também não podemos limitar a leitura apenas pelo viés simbólico, no âmbito esportivo, a Seleção Iugoslava era respeitada, com bons resultados, sua seleção de jogadores “amadores”. Os iugoslavos conquistaram a medalha de ouro em 1960, mais um 4º lugar na Copa do Mundo de 1962, e o vice-campeonato da Eurocopa de 1968. Era uma seleção com histórico imponente, além disso, dois dias antes do amistoso em Belo Horizonte, a seleção iugoslava havia empatado em 3×3 com a seleção brasileira no Maracanã. O selecionado brasileiro no Rio de Janeiro contou com presença de jogadores como Pelé, Rivelino, Tostão, Gerson e outros, treinados então por Aymoré Moreira. A seleção da Iugoslávia compunha aos triunfos do futebol do bloco socialista, exemplificando a política estatal em torno do esporte, somando a mística que cercavam estes jogadores e treinadores com seu “futebol científico”.

Após esta breve análise e contextualização da crônica de Nelson Rodrigues, podemos projetar o potencial da crônica para se construir narrativas do futebol. A riqueza do texto de Rodrigues sobre futebol é tão relevantes que o seu texto possibilita leituras pela crítica literária quanto pela análise historiográfica. Abrimos até o precedente para o debate sobre o que é escrito sobre futebol na grande mídia que na atualidade, os veículos de comunicação tratam o futebol em textos que prezam pela “verdade” e informação geral composta por dados e estatísticas, e também com informações de bastidores como a vida privada de atletas, técnicos e dirigentes. A crônica caracteriza-se como um gênero literário híbrido que transita entre o factual e ficcional e dependendo do seu conteúdo de informação pode ser lida em seu tempo presente e servir de fonte de pesquisa em tempos futuros.

Talvez o jornalismo esportivo atualmente careça de mais crônicas propriamente ditas como as escritas por Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, Roberto Drummond, dentre outros para enriquecer o universo místico do futebol, que anda pobre de bons personagens, mas talvez também de boas crônicas. Pois como é bem dito, o futebol é ótimo para se pensar.

[1] Crônica publicada no jornal O Globo, 21/12/1968, na coluna, Meu personagem da semana.

[2] RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. seleção e notas Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

[3] SILVA, Marcelino Rodrigues da. O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues. 1997. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1997.

[4] Dorival Knippel, conhecido por Yustrich, nasceu em 28 de setembro de 1917, em Corumbá (MS), e faleceu Belo Horizonte (MG) no dia 15 de fevereiro de 1990. O apelido Yustrich se deve a semelhança física com o goleiro argentino, Juan Elias Yustrich. Do alto dos seus quase um 1,90m de altura e de temperamento explosivo Yustrich ficou marcado por polêmicas enquanto jogador e treinador, tendo como apelidos “Homão” e “O Homem Mau”. Atuou como goleiro de Flamengo e Vasco, mas foi como treinador que se consagrou no futebol entre as décadas de 1950 a 1970. Treinou Flamengo, Vasco, Bangu, em Minas Gerais foi campeão estadual por Siderúrgica (1964) e Atlético (1952 e 1953), também treinou Villa Nova e Cruzeiro. Em Portugal tirou o Porto de um jejum de 16 anos sem títulos vencendo a Taça de Portugal (1956 e 1958) e o Campeonato Nacional em 1956.

[5] Rodrigues se referia à versão hollywoodiana do filme de 1966, estrelada pelo astro da época, Gary Cooper, como o protagonista Beau Geste. O livro Beau Geste havia sido filmado em 1926 e 1939, anteriormente ao filme citado na crônica.

[6] SIMÕES, Alexandre; XAVIER, João Vitor. 50 anos Mineirão: 50 jogos, 50 craques. São Paulo: BB Editora, 2015.

[7] RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. seleção e notas Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Thiago Carlos Costa

Professor e Pesquisador. Doutorando em Estudos do Lazer (EEFFTO-UFMG), Mestre em Estudos Literários (UFMG), Graduado em História (PUC-MG).  Membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG e também participa do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.

Como citar

COSTA, Thiago Carlos. “Beau” Yustrich “Geste”: futebol, literatura e cinema na crônica de Nelson Rodrigues. Ludopédio, São Paulo, v. 79, n. 11, 2016.
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