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Cássio, Ronaldo, Dida e outros goleiros (ou, como é difícil defender a meta corintiana)

“O Carlos ir jogar na Turquia?! Esse mundo tá virado!” Foi assim que Ronaldo Giovanelli, aos 20 anos de idade, se manifestou a respeito da transferência do goleiro que ele substituía como titular do Corinthians, em 1988. Há mais de três décadas, a circulação no futebol não era intensa como hoje, muito menos para mercados que não fossem Itália, Espanha, Portugal e Holanda. Com menos frequência ainda, os arqueiros saíam daqui para atuar no exterior. Para o garoto irrequieto que dominaria a meta do Timão por dez anos, o ótimo goleiro de três copas do mundo seguir a carreira jogando na fronteira entre Europa e Ásia soava muito inusitado. Ele, como nós todos, não sabia da força do futebol por aquelas paragens, da tremenda devoção que os turcos dedicam a seus times e ídolos.

Se o guarda-metas ocupa uma posição à parte nos times de futebol – a começar pelo fato de ele poder, na área em que deve ser soberano, tocar a bola com as mãos –, defender o Corinthians é ainda mais peculiar. Sendo o clube brasileiro com maior torcida em seu próprio estado, e com as características que ela tem (um amigo certa vez me advertiu, como chiste, que dizer “corintiano apaixonado” era um pleonasmo), não é fácil trabalhar por lá. Pensava nisso há poucos dias, quando a saída de Cássio dominava o noticiário esportivo. Seus tantos anos na meta do Timão só podem ser comparados aos de Ronaldo, já que são os dois únicos a superarem uma década na posição. Como resistiram?

Quando comecei a acompanhar o futebol com mais afinco, a meta alvinegra era defendida por Tobias, o herói da semifinal contra o Fluminense, em 1976 (defendeu as cobranças de pênalti de Rodrigues Neto e do craque Carlos Alberto Torres), pelo Campeonato Nacional, e da conquista do Paulista do ano seguinte. Neste último, deixou no banco um goleiro que tinha seleção brasileira no currículo, Jairo, ele que viria a ser o titular no título de 1979. Naqueles anos o clube contava com os que vinham da base, como Solito, o número 1 no primeiro título da Democracia Corinthiana, em 1982. Para o desgosto do adolescente que eu era, no ano seguinte foi contratado Emerson Leão, ficando o antigo titular e seu irmão, Solitinho, como suplentes. Não que eu não admirasse o novo atleta do elenco, ao contrário, mas ele era muito identificado com o Palmeiras, celeiro de excelentes arqueiros e nosso grande adversário. A verdade é que o antigo alviverde, que anos depois voltaria ao clube como treinador, foi fundamental para o bicampeonato paulista, vencido em duas partidas contra o fortíssimo São Paulo de Oscar, Darío Pereyra, Careca e Zé Sérgio, em dezembro de 1983.

De lá para cá vi alguns atuarem muito bem sob as traves, como Fábio Costa, campeão brasileiro em 2005, e Felipe, que, no entanto, foi titular no ano do rebaixamento para a segunda divisão do Brasileiro (2007). Mas, também outros que nunca gozaram da unanimidade entre os torcedores, como Nei (campeão brasileiro em 1998) e Júlio César (vencedor do mesmo torneio, em 2011), e ainda aqueles que, jovens, foram rapidamente queimados por se mostrarem inseguros e por cometerem falhas que a Fiel não perdoou. Entre eles estão Rubinho, irmão do ídolo Zé Elias, campeão mundial sub-17 em 1999 (com direito à defesa do pênalti final na decisão contra os australianos, vencida por 8 x 7), e Renan, promessa vinda do Avaí, que havia sido convocado por Mano Menezes para a seleção (o primeiro catarinense a alcançar tal feito). O irmão do Zé-da-Fiel até que fez uma carreira internacional relevante, ainda que quase sempre como suplente, enquanto o último atuou em apenas três oportunidades, em 2011, rodando depois por diversos times e deixando o futebol em 2016, aos 25 anos. Tentando entender o que lhe acontecera no Parque São Jorge, vaticinou: “Sempre respeitei todos os treinadores e acatei a ordem deles. Contra o Cruzeiro, Tite me pediu para jogar um pouco adiantado e joguei, não foi falha, foi mais mérito do Wallyson, mas perdemos o jogo e no Corinthians tudo é mais. Contra o América-MG tive uma saída errada em que trombei com Leandro Castán, e contra o Avaí não vejo falha em nenhum dos gols. Mas a expectativa era muito grande no Renan, esperava-se melhor desempenho. Acho que eu podia ter tido uma sequência maior.” Não é fácil.

Cássio
Foto: Rodrigo Coca/Corinthians/Fotos Públicas

Cássio é muito bom goleiro, assim como Ronaldo foi e, antes deles, Carlos e Ado. Este, embora tenha sido o primeiro suplente de Félix na campanha do tricampeonato mundial conquistado no México, em 1970, não alcançou sequer um título com a camiseta alvinegra. Os dois primeiros foram os maiores que o Corinthians já teve, com destaque, claro, para aquele que até poucas semanas era o titular da meta e que acaba de deixar o clube, depois de 12 anos de bons serviços prestados à nação corintiana. Lembro bem de sua discreta chegada ao Parque São Jorge, inicialmente para ser a terceira opção, atrás de Júlio César e Danilo Fernandes, no início de 2012. Era um atleta com sete anos de carreira, passagens por seleções de base e de cima, mas com pouco mais de 30 jogos como profissional. Depois de surgir no Grêmio, migrou para o PSV Eindhoven, a fim de ser preparado para assumir futuramente o lugar do também brasileiro Gomes, mas não foi isso que aconteceu. Entre empréstimos e o banco de reservas, o contrato com o time da multinacional Philips, onde jogaram Romário, Ronaldo e Vampeta, terminou. No Corinthians, rapidamente ganhou a posição e o resto é história: campeão da Libertadores, com desempenho excepcional, e do Mundial Interclubes, em que foi considerado o melhor jogador do torneiro, tudo no ano de estreia. A sequência fez com que juntasse mais um punhado de títulos e o respeito e a idolatria da Fiel. Entre seus admiradores, estou eu, sem esquecer o amargo sabor do “abraço coletivo” destinado a Cuca e por ele liderado, tampouco seu afastamento do time feminino depois que as Brabas protestaram contra a contratação do treinador que fora condenado por estupro em 1987, condição que posteriormente seria juridicamente anulada na Suíça. Aliás, em matéria de comportamento reprovável, ele se junta a outro goleiro, Gylmar dos Santos Neves, apoiador da ditadura civil-militar, para a qual serviu como uma espécie de despachante .

Ronaldo, o goleiro do primeiro título brasileiro do Corinthians, em 1990, e da primeira Copa do Brasil, em 1995, e o gigante Cássio, são os maiores da história. Mas houve outro, melhor que ambos, Dida. Titular em 1999 e 2000 (campeão nacional e mundial), e novamente em 2002 (com os triunfos da Copa do Brasil e do Rio-São Paulo), era frio, muito técnico e decisivo. Ninguém foi melhor que ele sob a meta corintiana, ademais vencedor de tudo o que é possível para um atleta profissional, incluindo Libertadores (pelo Cruzeiro), Champions League (defendendo o Milan) e Copa do Mundo. É certo que foram poucos anos no Timão e que sua aversão a entrevistas e demais badalações talvez iniba a memória desse grande jogador, mas nunca vou esquecer a semifinal do Brasileirão de 1999, contra o São Paulo, na tarde-noite de 28 de novembro. Foram dois pênaltis cobrados por Raí, um em cada canto, foram duas as difíceis defesas, definindo a vitória por 3×2.

Nesse momento de ressaca pela saída de Cássio, que abre as chances para a consolidação de Carlos Miguel na meta corintiana – ele que, pela apurada técnica e rápidos reflexos, pela força e carisma, pode chegar a ser tão grande quanto a estatura de 2,05 metros que ostenta – saúdo todos os goleiros que já passaram pelo time. Há os já mencionados e muitos outros que vi, entre eles os estrangeiros Carlos Buttice (Argentina), Johnny Herrera (Chile), Algo Bobadilla (Paraguai), assim como os campeões suplentes Wilson, Marcelo e Yamada. Esqueço-me de alguns, não são todos os que admiro. Respeito os que defenderam uma meta dificílima como a do alvinegro, que suportaram ou sucumbiram, que venceram ou perderam, que corresponderam ou estiveram aquém das expectativas, que são lembrados ou que foram perdidos na memória. Vai o jogador, que é de carne e osso, fica o ídolo, que é da ordem da imaginação: Cássio não foi melhor que Dida, mas foi maior e fez história.

Referências

https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/o-que-deu-errado-1-ex-corinthians-e-avai-goleiro-renan-explica-fim-de-carreira.ghtml

https://blogdojuca.uol.com.br/2022/02/a-surpreendente-triste-e-repugnante-historia-do-idolo-gylmar-dos-santos-neves/

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Cássio, Ronaldo, Dida e outros goleiros (ou, como é difícil defender a meta corintiana). Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 1, 2024.
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