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“Causei dano onde mais dói” – A luta antirracista em 2021

Iniciar um texto talvez seja uma das tarefas mais dificultosas para um (a) escritor(a), pensar sobre a proposta que será feita, os argumentos, narrativa, fontes, bibliografia etc. E o medo de ser repetitivo nos assuntos e até mesmo o autoplágio, antes de iniciar este texto passar por essas ideias foi o primeiro obstáculo, além dos que a realidade já nos impõe (principalmente em tempos de pandemia – COVID-19). Refleti sobre meu primeiro texto aqui neste espaço no início do ano sobre a trajetória de esportiva e luta antirracista de Ruud Gullit[1]. Pensei uma série de assuntos que poderiam ser abordados neste segundo momento, entretanto, olhando para a retrospectiva de 2021 não pude me furtar a discutir sobre as lutas antirracistas no futebol.

“Não é porque eu estou perdendo os cabelos que eu vou achar um negócio imundo desses bonito”

Em junho de 2021, durante a transmissão do jogo entre Goiás e Londrina pela série B do campeonato Brasileiro, quando Celsinho (meia do Londrina) estava caído no gramado os responsáveis pela transmissão da Rádio Bandeirantes tiveram o seguinte diálogo em relação ao cabelo do jogador:

“O cabelo deve pesar demais, né Vinícius?”, pergunta Romes Xavier.

“Exatamente. Parece mais uma bandeira de feijão a cabeça dele do que um verdadeiro cabelo. Não é porque eu estou perdendo os cabelos que eu vou achar um negócio imundo desse bonito”, responde Vinícius Silva.[2]

O cabelo de Celsinho atualmente é utilizado no penteado Black Power, este estilo é oriundo dos negros dos Estados Unidos que tinham na década 60 iniciado um processo de deixar seus cabelos na forma natural, muito além de um penteado, este tipo de cabelo se transfigura em posição política na luta antirracista, ao passo que

Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. James Brown perfeitamente expressou esse momento no seu hit de 1968: “say it loud – i’m black and i’m proud” (“Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!”). (PEQUENO, 2019)

Ambos foram demitidos (em virtude dos comentários) e pediram desculpas ao jogador.

Celsinho Londrina
Foto: Divulgação/Gustavo Oliveira/ Londrina Esporte Clube

“vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha”

Durante a partida do Londrina contra o Brusque, realizada em agosto de 2021 válida pela Série B do campeonato Brasileiro de Futebol, Celsinho voltara a ser alvo de injúria racial a partir de uma ofensa ao seu cabelo. Neste episódio, toda comissão de arbitragem (árbitro, assistentes e quarto árbitro) assinaram a súmula que continha o seguinte teor:

Por volta dos 45 minutos do 1º tempo, o atleta do Londrina, sr. Celso Luis Honorato Júnior informou ao quarto árbitro que foi ofendido com as seguintes palavras: “vai cortar esse cabelo seu cachopa de abelha”, por um homem na arquibancada, que foi identificado pelo coordenador da CBF, sr. Ricardo Luiz, como XXXX[3] staff da equipe do Brusque. Informo ainda que o referido atleta, juntamente com o diretor de futebol da equipe do Londrina, sr. Germano Cardozo Schweger, estiveram na porta do vestiário da arbitragem, após o término do jogo e confirmam o relato acima. (Súmula CBF, 2021)[4]

Outro caso de injúria racial sofrido pelo atleta, desta vez, o ofensor fazia parte da diretoria da equipe adversária. Em um primeiro momento o Brusque teve retirado de sua pontuação 3 pontos, entretanto, na semana da Consciência Negra, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva – STJD julgou o recurso do Brusque e devolveu a pontuação ao time catarinense.

O Londrina e o jogador lamentaram a decisão do órgão e afirmaram a necessidade de continuar a luta contra o racismo no futebol nacional.

Um dos fatos expostos neste caso foi a tentativa por integrantes do Brusque em culpar a vítima (Celsinho) pelo ocorrido e minimizar a situação. Esta saída não é incomum nos casos de racismo no futebol nacional, basta lembrarmos das situações sofridas pelo goleiro Aranha, quando defendia a Ponte Preta em 2014 em partida contra o Grêmio realizada em Porto Alegre. Na época, um ex-presidente do clube gaúcho classificou o ocorrido como “folclore do futebol”[5].

O futebol não é uma bolha flutuando na sociedade, pelo contrário, é parte desta sociedade. Ou seja, quero dizer aqui que o racismo expressado nos gramados nestes dois exemplos acima são parte de um problema estrutural da humanidade. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, até novembro de 2021 já havia sido registrados 1016 casos de injúria racial[6]. Mesmo com as medidas legislativas que punem os casos de racismo enquanto crime os números não apresentam diminuição significante. Os casos envolvendo Celsinho demonstram a necessidade de posicionamento dos jogadores negros neste combate e principalmente na denúncia. Mas o racismo tem vários braços e atinge também o futebol feminino, veremos a seguir.

“A Nine (lateral direita) tem o cabelo mais exótico, me parece, dessa equipe do Bahia”

O futebol feminino, além das lutas por equidade em comparação ao futebol masculino, também é palco das situações racistas. Em abril do ano corrente, os responsáveis pela transmissão do jogo válido pelo campeonato Brasileiro Feminino A-1, entre Napoli x Bahia, da empresa MyCujoo, fizeram os seguintes comentários destinados as atletas do Bahia. “O Bahia, que está aí com a sua vantagem de estatura, com esses cabelos exóticos. Pelo menos meia dúzia (das jogadoras). A Nine (lateral direita) tem o cabelo mais exótico, me parece, dessa equipe do Bahia” Comentário feito pelo narrador e seguido pelo comentarista com “Verdade. Eu até ‘tava’ brincando com esses cabelos. Parece a Margareth Menezes (cantora), lá da Bahia”[7]. Este tipo de ataque demonstra os estereótipos que persistem contra as mulheres negras, ao passo de se tornar mais um obstáculo para mulheres negras que pretendem seguir o sonho de jogar futebol, pois, lutam duplamente, contra o machismo e o racismo.

Faz-se necessário inserir outro caso de racismo envolvendo o futebol feminino, em partida válida pela Libertadores Feminina a atleta do Corinthians Adriana foi chamada de “macaca” por uma jogadora do Nacional-URU. Após o episódio vários clubes emitiram nota de solidariedade com Adriana.

“Causei dano onde mais dói”

Infelizmente, o racismo é parte estrutural do modo de produção capitalista (ALMEIDA, 2018), assim como foi de outros modos de produção no passado. E desta forma, assume um caráter mundial e se expressa também nos campos de futebol internacionais.

Em dezembro de 2021, durante o clássico do futebol italiano entre Milan e Internazionale, o atacante Ibrahimovic fez comentários sobre a suposta prática de Vodu da mãe de Lukaku. Em entrevista, ao jornal Corriere della Sera, Ibra se vangloriou da sua atitude durante o jogo, afirmando que “E causei dano onde mais dói nele: os rituais de sua mãe” e continuou “Aquele derby nós perdemos, e depois, eu me lesionei. E se a questão do vodu for verdade?” [8]

Este acontecimento nos leva a refletir como parte dos jogadores de futebol não estão dispostos a compreender ou respeitar a cultura de outrem, pois, devido a predominância da crença cristã o que é diferente significa errôneo e em alguns casos atitudes levam a intolerância religiosa. Quem não se lembra do Neymar com a faixa na cabeça, durante a comemoração da conquista da Champions League em 2016, escrito “100% Jesus”. Então, foi naturalizado devido ao padrão cristão em que convivemos no oriente, mas como teria sido a reação do mundo esportivo se ele tivesse usado a faixa “100% Buda”, “100% Oxalá” ou outra religião?

Lukaku
Lukaku pela Bélgica em 2018, durante a Copa do Mundo. Foto: Дмитрий Садовников/Wikipédia.

“Não basta não ser racista: sejamos antirracistas”

Os casos aqui expostos são parte de um montante maior, inclusive pelos casos que não são denunciados, percebidos etc. O futebol como um esporte que atraí milhares de espectadores pelo mundo, deve assumir seu papel social na luta antirracista ou quaisquer outras formas de opressão. Vivemos um período em que as desigualdades tendem a crescer em consequência da pandemia do COVID-19, e junto com isso os casos de racismo. Desta forma, as confederações reguladoras, clubes e patrocinadores necessitam construir políticas de caráter permanente que visem não apenas remediar a ferida e sim tentar evitá-las. Afirmo aqui a necessidade de construção de políticas a longo prazo como campanhas de conscientização (não apenas no mês de novembro), regulamentos e contratos que visem punição aos racistas etc.

Aos jogadores, jogadoras e torcedores acredito que a luta antirracista não cabe apenas à população negra, será necessário que os não negros compreendam a necessidade de entrarem na luta antirracista. Sigamos para a construção de um futebol menos hostil e uma sociedade em igual medida.

Notas

[1] Acesse o texto em https://ludopedio.org.br/arquibancada/ruud-gullit-notas-sobre-genialidade-e-militancia/

[2] Matéria com vídeo das falas disponível em https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/07/19/narrador-e-comentarista-chamam-cabelo-black-power-de-jogador-de-pesado-e-imundo-durante-jogo-em-goiania.ghtml

[3] Optei por não colocar o nome do ofensor, pois, não tenho acesso as medidas legais que estão tramitando.

[4] A súmula completa pode ser acessada em https://static.poder360.com.br/2021/08/sumula-jogo-brusque-londrina.pdf

[5] Aos interessados(as) em relembrar o caso acessem http://ge.globo.com/rs/futebol/times/gremio/noticia/2014/09/ex-presidente-do-gremio-critica-aranha-e-minimiza-ofensa-e-folclore.html

[6] Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/ministerio-dos-direitos-humanos-recebeu-1-019-denuncias-de-injuria-racial-em-2021/

[7] O vídeo com os comentários está disponível em https://twitter.com/acacio_miranda/status/1386391975264403459?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1386391975264403459%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.uol.com.br%2Fesporte%2Fultimas-noticias%2F2021%2F04%2F25%2Fnapoli-bahia-comentario-racista.htm

[8] Ver reportagem completa em https://placar.abril.com.br/placar/ibrahimovic-admite-provocacao-a-lukaku-causei-dano-onde-doi-mais/

Referências

DIANGELO , Robin. Não basta não ser racista: Sejamos antirracistas. [S. l.]: Faro Editorial, 2020. 192 p. v. 1. ISBN 978-8595811065. Kindle.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer / PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional / EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais / UFMG desde 2017. Doutorando e bolsista CAPES - Demanda Social. Mestre em Estudos do Lazer pelo PPGIEL. Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT),Grupo de Pesquisa em História do Lazer (HISLA), atualmente é vice-líder do grupo.

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva. “Causei dano onde mais dói” – A luta antirracista em 2021. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 33, 2021.
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