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Choque de rebeldes

Lúcio Humberto Saretta 17 de julho de 2020

Os labirintos do futebol às vezes nos levam a lugares estranhos, curiosos como uma sala de espelhos em um parque de diversões. Um dos confrontos das oitavas de final da Liga dos Campeões da Europa, por exemplo, opôs Napoli e Barcelona, duas equipes de cidades que, de um modo ou de outro, em algum momento da sua história se rebelaram contra o “status quo” vigente dentro dos seus países.
 
A Catalunha, região da qual Barcelona é a capital, possui uma cultura particular, além de uma língua própria e melodiosa. Apesar da sua identidade ter sido sufocada ao longo dos séculos, quer seja em guerras com outros povos europeus, quer seja através do jugo do governo central espanhol, o sentimento separatista permanece vivo sob a pele dos seus habitantes. Como uma flor que nasce entre o cimento do asfalto, o espírito e a força do povo catalão possuem uma beleza indomável. O seu clamor está presente nos versos do poeta Joan Maragall:

“Escucha, España, la voz de un hijo que te habla en lengua no castellana; hablo en la lengua que me ha legado la tierra áspera; en esta lengua pocos te hablaron; en la otra, demasiado”.

Quanto à romântica e ensolarada Nápoles, podemos dizer que se trata de uma cidade possuidora de encantos e problemas. O esplendor do mar Tirreno e o calor humano dos seus moradores convivem com o estigma da Camorra e do crime. De qualquer maneira, assim como os cidadãos de Barcelona, é possível que os napolitanos nutram uma espécie de rancor em relação ao resto do país, no caso, o norte rico que os despreza.

Barça x Napoli – 2014. Fonte: Wikipédia

 
Jogador virtuoso, inteligente e de forte temperamento, Johan Cruyff foi uma das bandeiras do Barcelona, defendendo as cores azul e grená com maestria nos anos 1970. Mais tarde, como técnico, o holandês conduziu o clube catalão à conquista da sua primeira Copa dos Campeões da Europa, em 1992. Em um time que contava com craques do quilate de Koeman, Guardiola e Stoichkov, Cruyff imprimiu a sua marca pessoal, baseada na técnica e no posicionamento, fazendo o Barça vencer e dar espetáculo.
 
Foi o exemplo clássico de rebeldia transferida do criador para a criatura, satisfazendo o espírito indômito típico da fanática torcida do clube catalão. Outras quatro Copas da Liga dos Campeões viriam com técnicos diferentes, mas o recado de Cruyff havia sido dado, e o seu lugar no panteão dos grandes personagens da história do Barça estava garantido.
 
O Napoli, por sua vez, também teve suas figuras emblemáticas. Curiosamente, assim como aconteceu com Cruyff no Barcelona, muitos dos astros que brilharam no firmamento do clube “partenopeo” foram jogadores estrangeiros. A começar pelo uruguaio Attila Sallustro, passando pelo sueco Jeppson e pelo brasileiro Vinicius, até chegar na dupla formada pelo brasileiro Altafini (o nosso Mazzola) e o argentino Sívori. E então veio Maradona. Após desembarcar na Europa e jogar no próprio Barcelona, o argentino acabou chegando ao Napoli através da mão do presidente Corrado Ferlaino.
 
Na cosmopolita metrópole espanhola Maradona havia descoberto os encantos da cocaína. Na bucólica Nápoles, por sua vez, ele seria alvo de uma adoração popular quase sem limites. César Menotti, técnico de Maradona na seleção argentina e também no Barça, disse que “o ídolo é sempre uma consequência e não a causa”. Nápoles necessitava de alguém que a libertasse das suas correntes. Ao conduzir o time sulista ao seu primeiro “scudetto”, em 1987, Maradona foi alçado à condição de um anjo vingador, alguém que redimiu o povo daquela cidade de vocação agrícola e pastoril, tantas vezes alvo de preconceito por parte do norte rico e industrial da Itália. A própria Camorra, na figura dos irmãos Carmine e Lovigino Giuliano, bajulou e protegeu o craque nos anos em que ele viveu na cidade.
 
Por outro lado, se no Barça os seus desafetos haviam sido o presidente Núñez e o técnico Lattek Udo, no Napoli os seus inimigos seriam o presidente Ferlaino e o técnico Ottavio Banchi. Mas a verdade é que dentro de campo Maradona era uma espécie de timoneiro natural. Segundo alguns dos seus companheiros durante a epopeia napolitana, como Bruscolotti, Renica, Romano e Giordano, apesar da sua genialidade no trato com a pelota Maradona era um sujeito humilde, que respeitava o resto do elenco e não reclamava dos erros cometidos por eles.
 
Sophia Loren certa vez declarou sentir-se mais napolitana do que italiana. Os anos de Maradona na cidade devem ter sido tempos de rara felicidade para a musa do cinema, como de fato foram para toda a torcida do Napoli. Em 1989, o clube venceu o seu maior título em nível continental, a Copa Uefa, e, em 1990, veio o segundo “scudetto”.
 
Obviamente a cristaleira do Barcelona tem mais troféus, e o peso da sua camisa é maior. Mas, na decisão que se avizinha, penso que não haja um favorito. O time catalão tem Messi, jogador de perfil reservado, avesso a polêmicas, e que é, sem dúvidas, a imagem do Barça no século XXI, além de uma verdadeira máquina de fazer gols. O Napoli, por sua vez, deposita suas esperanças no belga Mertens, um jogador que vem conquistando o coração da torcida com atuações contundentes. O primeiro jogo, na Itália, acabou empatado em um a um. Agora, graças à pandemia do coronavírus, o jogo de volta deverá acontecer em Portugal, e com os portões fechados.
 
Nesse choque de rebeldes, espera-se que o bom futebol encontre um campo fértil para vicejar. Afinal, tratam-se de dois clubes que têm suas raízes fincadas em valores inerentes ao esporte e à vida: a luta aliada à beleza e a paixão pelas causas perdidas.

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Lúcio Humberto Saretta

Autor dos livros "Alicate contra diamante", "Crônicas douradas", "Lições da barbearia", "O louco no espelho" e "O cão e o violão".

Como citar

SARETTA, Lúcio Humberto. Choque de rebeldes. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 42, 2020.
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