O futebol é um dos espaços que permite uma interação entre pessoas desconhecidas. Basta sair com a camisa de um clube que alguém irá se comunicar com você seja para realizar um elogio ou para fazer alguma brincadeira. O mais incrível disso tudo é que no dia seguinte você pode cruzar com a mesma pessoa que falou com você quando estava com a camisa do clube e ser ignorado pelo fato de não estar com ela.

Ao partir desta ideia acima, neste texto, vou dialogar com o artigo Futebol, Clãs e Nação de Igor José Renó Machado. Igor tem como proposta mostrar como o futebol “opera como uma forma de organização e classificação da realidade, através da divisão do mundo em times-clãs”. Ao longo de seu texto, Igor parte de suas experiências que chamou de cenas sociais para ilustrar e dialogar como o fenômeno futebol funciona em nossa sociedade.

BRASILIA, BRAZIL - JULY 05: An Argentina supporter cheers prior to the 2014 FIFA World Cup Brazil Quarter Final match between Argentina and Belgium at Estadio Nacional on July 5, 2014 in Brasilia, Brazil. (Photo by Clive Rose/Getty Images for Sony)
Cidadão futebolísitico. Foto: Clive Rose/Getty Images for Sony.

Seguindo esta linha de argumentação trago para o meu texto algumas cenas sociais das quais participei quando, em 2007, estava em Buenos Aires. Estava na cidade a passeio e, além de conhecer a cidade, queria transitar pelos espaços do futebol. Também recebi algumas encomendas futebolísticas. Para o meu cunhado compraria uma camisa do Boca Juniors e para o meu amigo compraria uma camisa do Vélez Sarsfield.

Entre os roteiros que havia montado com a minha namorada era o de conhecer os estádios do Boca Juniors e do River Plate. Claro que gostaria de assistir a uma partida em algum desses estádios, mas o campeonato havia acabado uma semana antes de minha chegada que aconteceu em dezembro.

Nunca é demais dizer que a cidade de Buenos Aires é interessantíssima. Andando pelos parques da cidade cruzei com vários futebóis. O mais curioso que vi não foi propriamente um jogo com equipes. Era um chute a gol em um parque. Seria mais uma cena comum caso a planta que fazia a divisão geográfica do espaço não fosse utilizada como barreira para a brincadeira.

Além dos parques, do excelente sorvete e das empanadas, não faltam livrarias e sebos, que possuem muitos títulos sobre futebol disponíveis nas prateleiras. Nas caminhadas pela cidade encontrei as lojas esportivas. Em 2007, não era tão fácil encontrar camisas de outros clubes no Brasil. Encontrava-se, é claro, mas não com tanta facilidade como é hoje.

Em uma das muitas caminhadas resolvi entrar na loja de esportes para saber o preço das camisas que haviam me solicitado. Perguntei ao atendente quanto custava a camisa do Boca Juniors. De imediato o vendedor foi muito solícito e me mostrou o modelo disponível. Também disse que tinha um modelo pirata – muitas lojas lá vendem os dois tipos de produtos. Perguntei o preço, não me recordo o valor, mas era mais barato comprar lá do que no Brasil. Estava dentro da faixa de preço que meu cunhado havia pedido, mas estava decidido a pesquisar em outras lojas. Após falar o preço perguntei se ele tinha a do Vélez. Na hora ele mudou a sua feição e parou de me atender. Isso mesmo, me deixou sozinho. Virou as costas e foi para a entrada da loja para atender outra pessoa. Essa era a primeira mostra de que com rivalidade não se brinca.

A primeira pergunta sobre a camisa do Boca Juniors operou para o vendedor como um símbolo compartilhado. Talvez ele tenha pensado que eu fosse um admirador do Boca mesmo sendo um brasileiro. Era como se, nas palavras de Igor Machado, ao compartilharmos algo em comum nos transformaríamos de desconhecidos em “cidadãos futebolísticos”. Porém, a pergunta seguinte sobre o Vélez rompeu com os símbolos que o vendedor imaginava que compartilhávamos. Ao perceber essa quebra, na lógica do vendedor, não havia o que compartilhar e, portanto, a conversa estava encerrada.

Conheci primeiro o museu e o estádio do Boca. O bairro La Boca transpira futebol. Aliás, Buenos Aires inteira transpira futebol. Como existem muitos clubes de futebol na cidade a identidade do bairro também é produtora de discursos. Naquela semana o Boca estava no Japão para disputar a Copa do Mundo de Clubes da FIFA. Uma das propagandas vistas neste bairro dizia que o Japão era o segundo bairro do clube numa clara alusão de que era um clube vencedor e internacional.

bairro
Japón, nuestro segundo barrio. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Quando fui ao do River não pude entrar porque havia uma preparação para o natal. Uma pena. Na volta resolvemos andar em busca de novos lugares para conhecer na cidade. Nessa caminhada conhecemos o hipódromo e o parque dos holandeses. Neste último vimos um parque não estava em nossos planos e lá também encontramos o futebol.

Após muito rodar pela cidade comprei as camisas encomendadas e também resolvi comprar uma para mim. Havia decidido não comprar o Boca e do River por serem as mais fáceis de encontrar fora da Argentina. Também não compraria a do Vélez por conta da encomenda do meu amigo. Entre as disponíveis escolhei a do San Lorenzo. É preciso ressaltar que essa escolha é anterior a dois importantes fatos que envolvem o clube. O primeiro é o fato do papa Francisco ser torcedor do clube, mas ele se tornou papa em 2013. O segundo é a conquista da Libertadores, mas esta somente aconteceu em 2014. A escolha, portanto, foi pela beleza da camisa.

Após passar uma semana agradável em Buenos Aires chegava a hora de retornar. Como eu já não tinha mais camisetas limpas resolvi estrear a camisa do San Lorenzo para voltar ao Brasil. Para chegar ao aeroporto pegamos um translado. A compra do bilhete de ida e volta havia sido feita assim que chegamos em Buenos Aires. Ao entrar no ônibus e antes de entregar a passagem ao motorista fui questionado:

– Você tem o ticket?

– Tenho, respondi.

– Que pena, porque se não tivesse não precisaria comprar. Com essa camisa iria de graça!

Naquela manhã o Boca havia perdido para o Milan a final da Copa do Mundo por 4 a 2. A derrota havia alegrado os rivais do Boca. No caminho para o aeroporto uma colagem em um dos muros da cidade retomava a força dos bairros e provocava a torcida do Boca. O cartaz dizia: “É melhor vocês ficarem no seu segundo bairro porque o primeiro não quer ver vocês”. A velocidade do ônibus em que estávamos não permitiu tirar um foto, infelizmente.

Já no aeroporto ao passar pela imigração o policial abre rapidamente meu passaporte e ao olhar para mim diz: “linda sua camisa”. Imediatamente chama outro policial que está dois guichês adiante e fala para ele “isso que é time!”. Com um sorriso devolve o passaporte e sigo para a área de embarque.

Todas estas cenas sociais revelam o quanto o futebol pode explicar sobre nós. Se Geertz foi muito feliz ao dizer que a sociedade balinesa se revela por meio da briga de galos podemos afirmar que a sociedade brasileira e argentina se revelam por meio do futebol. E ao vestir uma camisa de um time de futebol você é transformado em um cidadão futebolístico em como tal passa a fazer parte ou ser excluído de um determinado clã.

E esta dimensão do cidadão futebolístico seria a expressão que revela que “o futebol é muito mais do que um jogo”, ele existe diria Barthes, para “relatar o contato humano”[1].

Referências

BARTHES, Roland. O que é esporte? Serrote. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2009.

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

MACHADO, Igor José de Renó. Futebol, Clãs e Nação. Dados. Rio de Janeiro, v.43, n.01, 2000.

[1] Barthes não fala especificamente sobre o futebol, nesta passagem sua referência é ao esporte em geral.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Cidadão futebolístico. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 24, 2017.
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