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Considerações finais da pesquisa (parte 1): Os clubes sociais como caminho de categorização para a preservação do futebol varzeano

As armadilhas impostas por uma leitura do passado que se restringe ao universo dos clubes de futebol bem-sucedidos e majoritariamente profissionais, traz consigo o risco de uma interpretação baseada em resultado conhecido previamente e tomado como natural (RIBEIRO, 2017). Os circuitos varzeanos e populares do futebol na cidade de São Paulo, abordados ao longo das publicações desta coluna, desvelam uma das atividades de associativismo esportivo e de lazer mais duradouras desde o final do século XX (SILVA, 2013; FONTES: 2014; SEABRA, 2003; MAGNANI & MORGADO, 1996; ANTUNES, 1992). 

A expressão “várzea”, comumente atrelada à expressão desse futebol do Estado e da cidade de São Paulo, refere-se à apropriação dos terrenos marginais dos principais rios da cidade, como o Tamanduateí, Tietê e Pinheiros, por campos de futebol desde a sua origem. A presença deste futebol de categoria amadora e majoritariamente popular não é uma exclusividade das grandes metrópoles e tampouco da cidade de São Paulo. De um modo geral, as práticas do futebol como lazer (ou participação), continuam a ter presença marcante, tanto nos grandes centros urbanos como nas médias e pequenas cidades brasileiras, com destaque às zonas rurais.

A conformação das equipes de futebol de várzea transcendem a sua atuação atlética dentro de campo, para configuram-se como agrupamentos coletivos de relevância, traduzidos como agremiações esportivas, de caráter popular e grande representatividade, dos bairros centrais aos periféricos. Por meio de uma forte mobilização e responsabilidades distribuídas entre seus membros, esses clubes revelam complexas articulações com diversas instâncias do cenário esportivo, político, de atuação social, de práticas e referências culturais,  mostrando-se, portanto, como base sine qua non de sua existência e pertinência como categoria de atenção aos órgãos e departamentos históricos de proteção do patrimônio cultural

A maturação da existência das agremiações como o Santa Marina Atlético Clube, não exclusivamente esportivas, mas de característica cultural e de lazer, nos sugerem a adoção de uma categoria de proteção do patrimônio presente, porém de pouca recorrência nas normativas de patrimônio: os clubes de bairro ou clubes sociais. Os clubes de bairro são espaços onde é possível construir formas de identidade, pertencimento, solidariedade, comprometimento político, além de práticas esportivas ou culturais. São agremiações ou associações com identidades próprias e plurais, de caráter comunitário e células residuais de organização autorregulada da sociedade civil em cidades grandes e metrópoles, como São Paulo.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Clubes sociais são constituintes do associativismo popular, imigratório e pós abolicionista, datados do século XIX e início do século XX. Essas entidades eram (e ainda são) espaços de solidariedade, contenção e cooperação entre famílias, vizinhos e comunidades. Esses clubes são frequentados por meninos, meninas, adolescentes, jovens, adultos, homens e mulheres. São trabalhadores, funcionários públicos e pequenos comerciantes, alguns sindicalizados e com convicções partidárias independentes. 

Podemos apontar que os clubes sociais surgiram como espaços de vizinhança e comunidade, onde os vizinhos foram autorizados a estabelecer relações entre diferentes classes sociais, derrubando barreiras que ainda nos dias de hoje são intransponíveis. Prova disso é a estratificação da sociedade que por vezes extinguiu ou empurrou tais entidades para as franjas sociais da cidade, erradicando-os em bairros fechados, privados, longínquos ou até rurais (CASAGRANDE, 2017). 

Há algo bastante usual no que tange à criação de agremiações esportivas, como ostimes amadores de futebol de SP e Região Metropolitana tratados pela pesquisa que foi apresentada nesta série: : um grupo de pessoas (historicamente de rapazes) fundam um time com o intuito de inserir o bairro nas iniciativas esportivas da cidade. Trata-se de uma versão, até certo ponto épica, mas que guarda concretudes que merecem um olhar atento. Apesar do envolvimento mais denotado e compromissado com o futebol, tais clubes de bairro, no decorrer do tempo, consolidam-se e ampliam suas ambições no que tange à participação em outros esportes, atividades sociais e de cultura, bem como no tocante à educação dos comportamentos de seus associados.

Uma vez estabelecida a formação de um coletivo para pelejas e confraternizações, a procura, identificação e fixação de um endereço  demarca como a atuação dessa agremiação se notabiliza como “clube” e, consequentemente, não se limita quantitativamente e qualitativamente às restrições impostas pelas dinâmicas do futebol. Tais coletivos passam a agregar atividades extras a sua sede, onde até um certo momento funcionavam apenas como campo, escritório administrativo, vestiário e geralmente, um bar/lanchonete. A prática de danças e bailes, samba, pugilismo, halterofilismo, vôlei, caminhada, futebol de salão, artesanato, xadrez, bocha e carteado exemplificam a variedade de atividades exercidas a partir da constituição e manutenção do espaço físico organizados por essas associações. Nesses cenários de intensa oferta de atividades num clube, bem como suas agremiações responsáveis, observa-se o aumento sensível da inserção social e a afirmação de compromissos de âmbito macro e micro com o bairro e comunidade.

Vários clubes fundados por setores populares conseguiram sobreviver, se organizar, expedir seus próprios regulamentos para estabelecer regras e integrar a vizinhança em suas atividades e objetivos. Esses antigos clubes cumpriram (e continuam a cumprir) a função de recreação, assistência social e segurança social de famílias e comunidades desassistidas dessas garantias pelo Estado, bem como pelo processo de privatização desses direitos, e do custo social atribuído aos mesmos. Neste contexto, de uma sociedade civil desprovida de um estado de bem-estar democratizado, os clubes sociais ou de bairro, são capazes, em diferentes épocas, de regenerar um vínculo social baseado em solidariedade e participação em uma cidade grande como São Paulo. 

Identifica-se que o período de maior esplendor dos clubes situa-se nas décadas de 1940 a 1980. Os clubes, integrados por famílias inteiras, eram cenários de grande parte do crescimento das crianças, dos adolescentes e da transição para a juventude. Essas instituições passaram a fazer parte da vida cotidiana de muitas gerações de habitantes de São Paulo. Neles, as relações de amizade foram fortalecidas e foi forjado um grande senso de pertencimento. 

Vale destacar que a maior parte das instituições sociais existentes, a exemplo das escolas e universidades, locais de trabalho e instituições religiosas, seguem uma ordem vinculada aos diferentes segmentos de idade, com regulações próprias. Nesse sentido, o ambiente dos clubes de bairro apresenta-se como espaços mais livres de encontro e formação, permitindo que meninos e meninas se reúnam e convivam com gerações pertencentes aos núcleos de seus pais e avós, para recriar e difundir relacionamentos, laços de amizade e de participação associativa. Com os anos, essas experiências geram interesses de constituição de papéis mais ativos, como, por exemplo, na ocupação de cargos diretivos para tomada de decisão e intercâmbio de temas caros e necessários da atualidade de cada geração. Ademais, na esteira das contradições de uma sociedade segregada social e racialmente, conforme tratado por Santos (2012), os clubes sociais e de bairro configuraram, no referido período, importante instância de associativismo negro (DOMINGUES, 2000).

A diversificação esportiva e cultural dos clubes de bairro possibilita o aumento de sua massa societária, fato que incide diretamente sobre sua autonomia financeira. Em sua maioria atletas, esses associados não só pagam uma taxa social, mas também pagam uma mensalidade pela disciplina que praticam sozinhos ou entre familiares, permitindo que estes espaços se configurem como autofinanciados.

A exposição permanente de sua coleção de acervos, composta por inúmeros troféus, medalhas e fotografias de diferentes gerações e episódios locais, regionais e nacionais, transmite aos sócios e visitantes a robustez histórica representada por um clube popular e amador. Essas pessoas passam a ter orgulho de pertencer, representar, cuidar e compartilhar esses locais. 

Em face às desigualdades de cidades grandes brasileiras ou metropolitanas como São Paulo, clubes sociais ou de bairro assumem o controle sob uma pequena e diversificada escala social e geográfica, de forma autônoma, e fornecem um ambiente capaz de restaurar os laços sociais por meio da troca e do estabelecimento de relações comunitárias com recursos próprios. Neste ponto, deve-se lembrar que, na ausência do Estado, os clubes desempenharam um papel importante na regulamentação do intercâmbio social, e isso é atribuído à presença histórica dessas instituições em determinados bairros e endereços, bem como da facilidade de reconhecimento da ação dos clubes pelos cidadãos locais.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Essas instituições não possuem finalidade lucrativa e se constituíram, tanto no passado quanto no presente, como parte significativa e inseparável do patrimônio social e cultural da diversidade representada por regiões e bairros de uma mesma cidade, com indubitáveis objetivos que visam o bem comum social e comunitário.

Vítimas de uma sociedade estruturada a partir da cristalização das desigualdades, os clubes sociais ou de bairros representam uma forma de resistência ao poder econômico – visibilizado pela especulação imobiliária de diferentes manchas da cidade – e a lesão aos direitos constitucionais de acesso e uso da cidade e ao lazer.  

Por serem basicamente instituições sem fins lucrativos (quando não de valores altruístas), gerida por pessoas comuns que buscam atividades sociais, culturais ou esportivas, os clubes de bairro sobrevivem com o magro orçamento que administram, sendo a garantia do território-terreno uma condição sine qua non para continuar existindo, bem como a adesão de políticas públicas e editais para a qualificação de suas atividades e edificações. As agremiações contidas dentro dos espaços dos clubes de bairro podem ser consideradas como uma expressão de uma sociedade ativa  que  se  esforça para exibir-se à sua maneira  na  cena  pública e resistir a formas acachapantes de representação coletiva em uma cidade grande ou de uma metrópole. 

A pujança dos clubes sociais e de bairro em São Paulo não esteve restrita, historicamente, às formas de sociabilidade e associativismo da várzea, mas certamente teve nesses arranjos seus principais potencializadores. Nesse sentido, a decisão do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP) pelo enquadramento da sede do Santa Marina Atlético Clube como Zona Especial de Preservação Cultural (ZEPEC-APC), em 2023, legitimando os estudos organizados pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), cujos conteúdos foram apresentados nessa série, pode ser considerado como um significativo precedente normativo. Não apenas por consolidar um passo importante pela proteção dos bens culturais deste clube e o retorno de suas atividades, ainda limitado por decisões judiciais anteriores, como também por demarcar uma referência para mobilizações sociais e ações de proteção e salvaguarda vindouras.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Fatima. M. Futebol de fábrica em São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

CASAGRANDE, A. E. Between History and Passion: The Legitimacy of Social Clubs in the Province of Buenos Aires (2001-2007). Politics and Governance, 5(1), 34-41, 2017.

DOMINGUES, P. J. Uma história não contada: Negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São Paulo (1889 – 1930). Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

FONTES, Paulo. Futebol de várzea and the working class – amateur football clubs in São Paulo, 1940s – 1960s. In: FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de (Org.). The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. Londres: Hurst Publishers, 2014, p. 87-101.

MAGNANI, José Guilherme e MORGADO, Naira. Tombamento do parque do povo: futebol de várzea também é patrimônio. In: IPHAN, Ministério da Cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996.

RIBEIRO, Raphael Rajão. Futebol amador: história, memória e patrimonialização. Simpósio Nacional de História, p. 1-17, 2017.

SEABRA, O. C. de L. Urbanização e fragmentação: cotidiano e vida de bairro na metamorfose da cidade em metrópole, a partir das transformações do Bairro do Limão. 2003. 313 397 f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

SANTOS, R. E. Sobre espacialidades das relações raciais: raça, racialidade e racismo no espaço urbano. In: SANTOS, R. E. (Org.) Questões urbanas e racismo. Petrópolis, RJ : DP et Alii ; Brasília, DF : ABPN, 2012.

SILVA, Diana Mendes Machado da. A Associação Atlética Anhanguera e o futebol de várzea na cidade de São Paulo (1928-1950). 2013. 210 f. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2013.

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Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte...  

Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SANTOS, Alberto Luiz dos; BONFIM, Aira F.; SPAGGIARI, Enrico. Considerações finais da pesquisa (parte 1): Os clubes sociais como caminho de categorização para a preservação do futebol varzeano. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 20, 2024.
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