19.3

Demasiado Humano

Tadeu dos Santos 19 de janeiro de 2011

Bem pesadas as coisas, a mobilidade social que tantos apregoam por aí, não é afinal dotada de tanta mobilidade assim. Nascemos em determinados agrupamentos sociais e muito raramente logramos dele sair.

De igual maneira, aderimos às ideias ínsitas a esses grupos. Salvo raríssimas exceções, nossas origens findam por ditar os ideais a que iremos abraçar.

Oscar Niemeyer é uma dessas exceções. Arquiteto de inquestionável sucesso tanto no Brasil quanto no exterior. Membro inquestionável de “nossa elite” teve desde sempre os olhos voltados para o outro. Era-lhe tão fácil se entregar ao conforto que decorria de todo o seu êxito profissional e alhear-se de todo o resto.

Mas não. Niemeyer é um humanista. Crê na igualdade e elegeu o humano como o princípio e fim de todas as coisas.

Já centenário, aqui e ali o corpo dá mostras da passagem do tempo. Os sonhos, porém, prosseguem ilesos e olvidando-se às inteiras do passar dos anos, parecem mais jovens, mais atrevidos.

Niemeyer. Autor: Antônio Máximo Medeiros da Rocha.

O socialismo real ruiu e é aqui que Niemeyer nos fornece provas cabais do quando há de demasiado humano em si. No meio do caminho havia uma pedra e esta atendia pelo nome de Revolução Cultural. Era burguês, demasiadamente burguês, ouvir Bach, Beethoven ou mesmo Mozart. Ler Balzac, Proust ou mesmo Shakespeare era crime praticado contra o Estado Socialista. Eram todos, sem exceção, produtos da alta cultura burguesa. As ideias eram de tal maneira fora do lugar que tudo o que nos resta é escarnecer. As perseguições políticas e os expurgos também foram devidamente ignorados pelo nobre arquiteto.

Mas não duvido de que em sua sua cabeça haja, tal e qual uma maquete, um novo modelo de sociedade erigido em função da dignidade do homem.

Nascido em agosto de 1929, Yasser Arafat contava 19 anos por ocasião da criação do Estado de Israel. A seguir concluiria o curso superior graduando-se em Engenharia Civil.

Arafat é mais um daqueles que por imposição de seus interesses pessoais, poderia se ter voltado para o próprio umbigo e ficado por ali a contemplar a visão. Aderiu à causa Palestina e foi um de seus mais importantes líderes. Em 1994, juntamente com Shimon Peres ganhou o Nobel da Paz. A questão palestina segue sendo questão. É uma ferida que sangra e não há cicatrização num horizonte próximo.

Mas também Arafat era humano, demasiadamente humano. A revista Forbes confere a Arafat o 6° posto na lista que arrola os homens mais ricos do mundo em 2003, avaliando seu patrimônio pessoal em 300 milhões de dólares. O serviço secreto israelense afirma que sua fortuna beira 1,3 bilhão de dólares. Auditoria realizada junto à Autoridade Palestina conduzida pelo Fundo Monetário Internacional atestou que Arafat desviou 900 milhões de dólares de fundos públicos para uma conta bancária especial controlada por ele. Em outubro de 2003, promotores públicos do governo francês fizeram uma investigação a Suha Arafat por suspeita de lavagem de dinheiro após a Tracfin os ter alertado para a realização de transferências de quase 1,27 milhão de dólares cada, com alguma regularidade, desde a Suíça para as contas bancárias da Sra. Arafat em Paris. A investigação foi tornada pública em 11 de fevereiro de 2004.

Autor: Antônio Máximo Medeiros da Rocha.

Por mais que se esforce a ficção, a realidade está sempre alguns passos adiante. Que ser complexo, não?

Niemeyer e Arafat superaram o imobilismo e a estreiteza dos chamados interesses pessoais e avançaram. Mas não estavam, claro, imunes às contradições do tempo, do lugar e sobretudo de suas respectivas condições, humanas, demasiadamente humanas.

Enquanto isso descem as encostas da iniquidade. A culpa, claro, é desses incautos que resolveram construir justo ali, na descida da montanha. E vemos então que esse mesmo Estado detentor de uma das mais altas exações fiscais do mundo é incapaz de impedir construções em áreas de risco. Mas eis que elas já estão lá e daí então esse mesmo Estado-Arrecadador é incapaz de remover aqueles cidadãos-contribuintes das ditas áreas de risco. Ato contínuo, também não são suficientes competentes para dar um mero alarme e como se tudo isso fosse insuficiente não logram chegar às áreas assoladas pela calamidade. Mas não tem nada não. Eles vão liberar saques do FGTS no importe de R$ 4 mil e alguma coisa. Dinheiro que, saliente-se, é das próprias pessoas vitimadas pela tragédia. A CEF, bem sabemos, é apenas a gestora do FGTS.

“Nosso” indômito governador já circula pelos meandros do poder há longos 24 anos (desde março de 1987). Já foi deputado Estadual, Senador e agora é governador. Todo o tempo decorrido não foi ainda suficiente para que Leonel Brizola deixasse de ser o Bode Expiatório preferencial de Sérgio Cabral. Sempre que ele se refere a populismo o alvo mirado é Brizola.

Após a apoteótica invasão do Complexo do Alemão, temos o fiasco na prevenção e socorro às vítimas das torrenciais chuvas na região Serrana de nosso Estado. “Nosso” Governador dormiu sonhando com a Copa do Mundo e com as Olimpíadas e acordou com o pesadelo traduzido em avalanche que tal e qual um tsunami varreu a vida de centenas de cariocas. Até quando?

E no turbilhão gerado pelas águas que teimosamente desciam as montanhas, vimos solidariedade. Deparamo-nos com filas de doadores de sangue. Vimos pessoas que não tinham qualquer contato com as vítimas pondo suas próprias vidas em risco para tentar levar algum alívio ao semelhante. Mas havia também gente que vendia o galão de água a R$ 45,00. Quão complexo é o ser humano, não? Sempre humano, “demasiadamente” humano.

O mundo globalizado e multifacetado em que estamos imersos reveste-se de uma complexidade que parece condenar a todos ao imediatismo, à pessoalidade.

Com o futebol a coisa não se passa de maneira diversa. Há por aí uma fórmula composta de cifrões e cifrões e mais cifrões. Os jogadores são apátridas, estão em toda e em nenhum lugar. Nos dias que seguem a paixão clubística está restrita aos torcedores. Nesse mar de profissionalismo e interesses monetários, somente os habitantes das arquibancadas são movidos à base do bom e velho amor.

Exportamos jogadores para todos os cantos do mundo e claro está que o distanciamento provoca o afrouxamento dos laços que os uniam ao país. Tudo isso faz com que, exemplificativamente, a Copa do Mundo que anteriormente era um torneio que antagonizava países e em que se punham as diferentes escolas de futebol a provar sua real e efetiva supremacia, fique totalmente destituída de sentido.

Há ainda que se falar no velho jeito alemão de se jogar futebol? Como sabemos, ele era baseado na redução dos riscos, forte contra-ataque e cerrada marcação. Eventualmente, surgiam jogadores que sabiam o que fazer com a bola, como por exemplo, Beckenbauer, Paul Breitner, Overath. Eram, porém, exceções que só faziam confirmar a regra. A Alemanha da última copa era veloz, com jogadores habilidosos do meio de campo pra frente, atrevida e ofensiva.

A última Copa do Mundo nos mostrou um Brasil germanizado. Perdemos o que tínhamos de melhor, sem conseguir amealhar o essencial das características alemãs. Dir-me-á alguém que isso não carece de muita preocupação e que é apenas e tão somente, nossa entranhada mania de macaquear o estrangeiro. São os nossos eternos complexos de colonizado.

Não me convenço.

Transformamo-nos numa grande fábrica produtora de volantes. Ronaldinho Gaúcho é a exceção e Elano, a regra.

Didi, campeão mundial em 1958 e 1962 era o epíteto da escola brasileira de jogar futebol. Refinadíssimo, foi apelidado, Mr. Football pela imprensa europeia em meio à Copa do Mundo de 1958. Meio-campista pensador. Era, literalmente, o distribuidor de jogo. Foi dele a iniciativa de ir à rede após o 1° gol da Suécia na final de 1958, pô-la sob o braço, conduzí-la até o meio-de-campo e dar início à virada. Não há mais Didis entre nós.

O que vimos de fazer até o momento é diuturnamente levado a efeito pela chamada imprensa esportiva. Estamos cá a atestar a realidade. Há por aí um jeito único de se jogar futebol e a movimentá-lo há cifras que nós, meros mortais, não conseguimos atinar para a real importância.

Mas tal e qual Prometeu, resistiremos.

Repatriaremos jogadores. Sobretudo aqueles que representam nosso jeito moleque de tratar a bola. Evitaremos a saída prematura de nossos jogadores. Há toda uma geração maravilhosa vindo por aí. Queremos vê-los de perto. Riam os cifrões de nossa grandiloquente inocência. Ouço-os daqui. E eu repiso, tal e qual Prometeu, resistiremos.

Flamengo é Flamengo, Ronaldinho é Ronaldinho e sonhos são passos iniciais, preliminares para o que de melhor ainda está por chegar.

E ainda que tentarão nos meter à cara a Cartilha do Bem Torcer. Uniformes impecáveis e canções exaustivamente ensaiadas talvez estejam à nossa espera.

Que nada! Faremos história a contrapelo e em meio a uma infinidade de interesses possíveis, faremos a opção preferencial pela paixão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SANTOS, Tadeu dos. Demasiado Humano. Ludopédio, São Paulo, v. 19, n. 3, 2011.
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