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Desculpe. Sem tempo para amar!

Gustavo Fernandes 29 de novembro de 2023

Os dois braços arqueados na altura do peito. As duas mãos fechadas em formato de concha tocando as axilas. Talvez, em um universo paralelo, com outro ordenamento moral e que tivesse passado por um outro processo histórico muito menos excludente e violento, esse gesto poderia ser até uma comemoração efusiva e característica, tal qual os braços abertos de Bellingham ou o grito de “Siiiuuu” de Cristiano Ronaldo são no nosso cosmos. Mas, não é bem assim, já que a realidade nua e crua e a especulação imaginativa são dois elementos que normalmente não jogam juntos, não vestem as mesmas cores e não constroem o mundo lado a lado.

Além dos gestuais, no rosto do sujeito, o semblante de desprezo e superioridade escancara o décimo nono episódio de racismo dirigido à Vinícius Júnior, na Espanha[1]. Um ato igualmente praticado por uma criança[2], na mesma partida, e reproduzido por milhares de torcedores, em outras.    

Incontáveis mímicas preconceituosas já foram, e a única e infeliz certeza é que muitas mais virão para o jovem jogador, toda semana, de novo e novamente, em um ritmo que levanta questionamentos angustiantes. Por que Vini continua sendo vítima da aversão de seus rivais, rodada após rodada? Por que a brutalidade nos estádios permanece ascendendo em níveis escatológicos todos os anos[3]? O retrospecto de violência que deveria nos ensinar a melhorar parece que apenas se autorreferenda, conduzindo-nos eternamente a uma espiral de maldade da qual nem mesmo o mais heroico indivíduo de nosso tempo seria capaz de superar.

Afinal, por que nos detestamos tanto? Para além de especificidades, como a educação tida por cada um desde o berço ou a bússola moral que guia cada pessoa em suas particularidades de caráter, a resposta, em geral, parece ser transparente: no futebol e nos demais aspectos da vida, talvez seja mais fácil odiar do que amar[4].

Vinicius Jr
Vini Jr. durante aquecimento do Real Madrid. Foto: canno73/Depositphoto.

 

Não é preciso ir muito longe. Pegue o seu celular, as redes sociais atestam a veracidade da questão. Em um perfil privado, suas postagens sempre, invariavelmente, receberão comentários positivos. Elogios a sua beleza, seu estilo de vida, seus gostos pessoais, as suas fotografias mais espontâneas e casuais, ou mesmo àquelas mais posadas, que só estão ali para seguir o fluxo do trend. Isso porque estão lá te observando apenas aqueles que você permite, que conhecem sua personalidade, que convivem simultaneamente com as suas qualidades e com os seus defeitos. Que te entendem.

Mas, torne-se conhecido, abra o seu perfil para o público e potencialmente verá todos os aplausos e apoios se diluírem como uma minúscula fração de açúcar no imenso e intragável mar de ódio. De uma hora para a outra, suas roupas parecem não servir mais, seu cabelo aparenta ser horrível, não importa o que faça, seu estilo de vida é desprezível e desinteressante e suas fotografias são artificiais e sem personalidade. O som ocasional da notificação de um like em seu post agora é o seu terapeuta emocional, o motivo do seu ilusório alinhamento psicológico, além de funcionar como um bote salva-vidas (furado) em meio a esse mar gigante, em que contas falsas são criadas com a única intenção de fazer mal a alguém gratuitamente[5]. Ódio pelo ódio.

Transporte para os estádios de futebol, e o buraco é ainda mais profundo. Aqui, não existem bots compartilhando informações falsas, algoritmos fazendo a seleção da crueldade virtual ou perfis fake espalhando o rancor, senão de milhares de pessoas, com rostos, corpo e vozes, presentes fisicamente em um mesmo lugar, odiando seus adversários, e pagando por isso. Caro, até! Mas, não são todos que são odiados.

Na imagem que correu o mundo, é possível perceber que em frente àquele sujeito da mímica racista, estão Bellingham e Alaba, outros dois jogadores negros, assim como Vini Jr, também presente na foto. Só que, os insultos foram dirigidos unicamente ao brasileiro. Curiosamente, dos três madridistas citados, Vini é o único que adota um posicionamento mais combativo, de enfrentamento direto, contra a discriminação racial em suas redes sociais, cobrando as autoridades espanholas, os clubes envolvidos nesses casos e, inclusive, o próprio presidente de La Liga, Javier Tebas[6].

Pelo exemplo de Vinícius, é possível notar uma das facetas mais dissimuladas do ódio, dentro e fora dos estádios: quando vestindo a máscara do preconceito, seja ele qual for, o ódio será, muitas vezes, seletivo, isto é, ele passará a ter com maior foco em sua mira quem o expor e o encurralar, em uma clara demonstração do que a grandíssima Inês Brasil resume com “se me atacar, eu vou te atacar”[7] (desculpe, leitor, mas eu precisava de um exemplo compreensível e que aliviasse a tensão do texto. Certamente, entenderá!).

De algum modo, parece que sentimos a necessidade de odiar. É como se rejeitar fosse a forma menos dolorosa – e mais espinhosa – de lidar com as nossas próprias imperfeições, pré-conceitos e inseguranças, ao passo que os mantemos escondidos dos julgadores olhos alheios, pois há uma relação paradoxalmente fundamental entre estar no mundo e senti-lo mental e fisicamente: ninguém, sob hipótese alguma, deseja ser odiado pelos seus semelhantes, mas, ao mesmo tempo, alguém ou algo, em algum lugar, será certamente alvo do ódio de outrem. Então, será o ódio o mal necessário para o andamento do mundo como ele é?

Bom, é comum que se diga que “ao encontrar o emprego dos seus sonhos, você jamais irá trabalhar”[8]. Só que o mesmo aforismo guarda uma versão menos romântica, que diz o seguinte: “trabalhe no emprego dos seus sonhos, e você encontrará outra coisa para odiar”[9], um pensamento que, em certa medida, enxerga o ódio como um preenchedor inevitável de lacunas, um oponente indriblável. Será mesmo?

O fato é que, em muitas situações, o ódio parece ser um caminho mais acessível e mais fácil de se alcançar do que o amor. Acima de tudo, o amor é um sentimento egoísta, de querer para si, única e exclusivamente, a todo o instante. Só que também é algo que demanda confiança e paciência, uma construção imaterial ao longo do tempo, como uma avenida invisível sendo pavimentada pouco a pouco no ritmo da existência. Nesse sentido, para amar alguma coisa ou alguém, é preciso, primeiramente, abrir mão do imediato.

No esporte, em especial no futebol, o amor a uma personalidade geralmente se materializa em forma de idolatria, de apreço e validação das qualidades, façanhas e estilo de vida daquela figura, como algo construído jogo após jogo – afinal, ainda não se tem registro na história futebolística de alguém que passou a idolatrar um jogador depois de ter visto pela primeira vez ele cobrar um lateral, em um lance completamente randômico e trivial.

Acontece que em um jogo de disputas em diversas frentes, como o futebol, em que, para além do placar, estão envolvidos a sensação de pertencimento à camisa, verdades históricas dos clubes e obviamente discussões políticas e sociais, a ideia de longo prazo se dissolve a cada lance de cada partida, e, então, recorre-se ao caminho mais fácil e mais imediato, odiar.   

Vini Jr
Jogadores de futebol e Comitê Técnico e torcedores homenageiam Vinicius Junior, futebolista do Real Madrid, que sofreu racismo na Espanha na La Liga. Foto de thenews2.com/Depositphoto

Na marcha preocupante desse sentimento que só asfixia o futebol, será que é possível torcer e se identificar enquanto torcedor do seu time sem ter que detestar o seu rival pelo fato de ele estar do outro lado da arquibancada[10]? E o que mais vale: como poderemos caminhar para não termos mais que conviver com outras anatomias do ódio que extrapolam completamente a mera rivalidade entre clubes, a boa relação social e todos os limites éticos da sociedade?

Do caso envolvendo Vini Jr., passando por diversas outras demonstrações de violência nos estádios do mundo inteiro, infelizmente, com 90 minutos mais os acréscimos, além do pré-jogo e da prorrogação, sempre será mais fácil e sobrará mais tempo para odiar quem estiver do outro lado. Como autocrítica, na caminhada em que estamos, possivelmente teremos que atualizar o status de “paixão nacional”[11] atrelada ao futebol doméstico, afinal de contas tanto a paixão quanto o amor podem até machucar e abrir feridas, algumas delas incuráveis. No entanto, ao se comparar com o ódio, nenhuma dessas emoções podem ser entendidas como gumes opostos de uma mesma faca. Ódio e amor são dois domínios completamente distintos e perigosamente confundidos.


REFERÊNCIAS

[1] Vini Jr. ironiza o décimo nono episódio de racismo sofrido por ele na Espanha | ESPN

[2] Criança imita macaco em direção à Vini Jr. | Planeta do Futebol via X

[3] Está sob discussão na Comissão de Segurança Pública o PL 2086/2022, de autoria de Jorge Kajuru (PSB-GO), que busca aumentar a pena do crime de tumulto ou violência em eventos esportivos | Agência Senado

[4] Leia a crônica que inspirou a fazer este texto | Crônicas de categoria

[5] Segundo reportagem da Pública deste ano, 80% dos perfis em redes sociais responsáveis por espalhar fake news continuam ativos, muitos deles sob novas contas falsas | Agência Pública

[6] Após negar racismo contra Vini Jr. em maio deste ano, em partida contra o Valencia, Javier Tebas volta atrás e se desculpa | ge

[7] Confira a declaração na íntegra | voces.sabemquemsoueu via TikTok

[8] Ao que parece, a frase é atribuída ao filósofo Confúcio, mas com diferenças em relação à tradução. Eu usei as minhas próprias palavras, mas mantendo o sentido original

[9] Não encontrei a autoria desta frase, mas certamente ela existe. Caso saiba, por favor deixe nos comentários do blog e corrija este jovem escritor

[10] Leia também este texto de Gustavo Bandeira para o blog do LEME sobre a questão da rivalidade no futebol

[11] A “paixão nacional” e o ódio no futebol | Trivela

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

FERNANDES, Gustavo. Desculpe. Sem tempo para amar!. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 29, 2023.
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