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Onde estão os negros no futebol brasileiro?

Ana Beatriz Santos da Silva 16 de abril de 2024

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a maioria da população brasileira é negra. Entre pretos e pardos, os números confirmam o que os olhos conseguem ver nas ruas. Distante de uma fajuta homogeneidade, a população negra no Brasil é composta por distintos grupos, ideias, posicionamentos políticos, escolhas e está unida por uma mesma realidade: o racismo.

É oportuno apontar que o Brasil, antes de ser o país que conhecemos, já se estruturava socialmente a partir do racismo, que segregava negros e os povos originários, mantendo a lógica colonial a todo vapor. De lá pra cá, o pensamento não mudou. Percebe-se, a partir das artimanhas utilizadas pelo racismo, que os instrumentos mudaram, mas o alvo continua sendo o mesmo. Com isso, entendendo que o futebol não é um objeto deslocado da sociedade e sim um reprodutor das relações que mantemos para além do esporte, é urgente debater como as relações étnico-raciais se dão dentro e fora das quatro linhas. Assim, fica a pergunta: Onde estão os negros no futebol brasileiro?

Goleiros, técnicos e cargos de confiança: Há espaço para o negro?

Se não há dúvidas de que ser jogador de futebol é o sonho de muitos meninos – não excluindo as meninas, que se multiplicam nas escolinhas e também compartilham do mesmo sonho – como se efetiva esse sonho? Entre as categorias de base, multiplicam-se os jovens negros, que na busca desse sonho, se distanciam da própria família e se criam entre o gramado, a bola e a arquibancada.

Como exemplo, John Kennedy, atacante do Fluminense, saiu de casa (em Itaúna, Minas Gerais) aos 14 anos, buscando a carreira como jogador. Ao deixar o pequeno município mineiro, deixou a própria família, abrindo mão da infância e também da adolescência, na preparação em ser atleta. Acusado de indisciplina mais de uma vez, teve apoio durante a trajetória. Recentemente, foi associado ao tráfico de drogas por um jornalista que, em nota indecente, quis retratar o que disse com cinismo. Quanto de racismo um jovem de 21 anos pode sofrer por ser jogador de futebol? Ainda mais, quanto de racismo cabe após um gol na final da Libertadores da América? Talvez John Kennedy tenha essa resposta, assim como Adriano, o Imperador, teve tempos atrás.

John Kennedy
Foto: Marcelo Goncalves/FFC/Fotos Públicas

A história de John Kennedy se repete. São centenas de crianças espalhadas em muitas escolinhas de futebol no Brasil a fora. Muitas estão distantes da própria família e responsáveis, ainda muito cedo, em mudar a realidade em que vivem. A caminhada até o time profissional, sobretudo se esse time for da elite do futebol nacional, é marcada por percalços, perseguições e dezenas de questionamentos. É possível enumerar vários episódios em que os jogadores, ainda na base, sofrem com ataques de injúria racial, sem chance de defesa. Vale ressaltar que o apoio recebido por John Kennedy, durante a formação enquanto jogador, quanto também no percurso profissional, não é regra no futebol profissional e sim, uma rara exceção. A indústria do futebol, que transforma corpos em objetos, não se compadece quanto aos percalços da vida. Os relatos se multiplicam na internet e repete-se a pergunta: Há espaço para o negro?

Lamentavelmente, desde a violenta perseguição destinada a Barbosa, acusado de falha no segundo gol do Uruguai, na derrota da Seleção Brasileira em 1950, poucos são os goleiros negros brasileiros. Na série A do Campeonato Brasileiro, a maioria dos goleiros são brancos – basta verificar em rápida pesquisa pelos times titulares. Se a posição de goleiro requer grande confiança e cuidado, o que significa observar os clubes nacionais e pouco identificar os goleiros negros? As acusações e críticas ao goleiro Hugo, revelado pelo Flamengo, também foram coincidências? E ainda, houve o mesmo peso contra Júlio César, goleiro marcado pela derrota por 7 a 1 para a Alemanha, como ocorrido com Moacyr Barbosa do Nascimento? Quando se pensa nos técnicos e nas comissões, a situação também é restrita. Trata-se de um péssimo sinal conseguir enumerar os técnicos negros presentes nas grandes equipes brasileiras e, pior ainda, que muitos não estejam atuando no momento. Técnicos como Andrade e Jayme de Almeida geriram times campeões (Brasileiro em 2009 e Copa do Brasil em 2013, respectivamente), mas estão distantes de um reconhecimento maciço, tanto pela imprensa, quanto pelos comandantes do futebol. Fazer duas vezes melhor não parece ser o suficiente.

Barbosa. Foto: Wikipedia.

A situação se agrava ao pensar nos presidentes dos maiores clubes brasileiros. Essa realidade se espalha nos conselhos deliberativos e em demais setores de confiança, ligados à reprodução dos clubes. Ainda é possível resgatar o passado e lembrar da comum presença dos massagistas nas comissões dos clubes – em maioria, negros, como Denir Silva, que trabalhou no Flamengo durante quatro décadas e que nos deixou em 2022, vítima de um câncer. Atualmente, quantos massagistas perderam visibilidade para outros profissionais que, não coincidentemente, são profissionais brancos? Qual reconhecimento é proporcionado a quem dedica quatro décadas em prol de um clube? Se pensarmos na lógica contrária, entre porteiros, seguranças e auxiliares de serviços gerais, os clubes repetem o que vemos socialmente – muitas pessoas negras ocupando cargos de base.

Torcedores negros, setores populares e uma conta que não fecha

Quando se fala das torcidas que ocupam os estádios brasileiros, fica-se o questionamento: Há um embranquecimento do perfil do público frequentador? Partindo da realidade brasileira, em que o salário mínimo em 2024 está R$ 1412, quem consegue ser assíduo nas arquibancadas? É importante frisar, de imediato, que ainda há uma taxa de desemprego de 7,6%, com 8,3 milhões de brasileiros sem emprego. Entre os trabalhadores da base, que recebem salários irrisórios e os que estão desempregados, quem pode dispor de uma parte da renda para frequentar os estádios para ver o time do coração?

Assim, diante dessa apresentação, é importante relacionar as limitações de classe com a raça de quem, majoritariamente, vive-as no cotidiano. Se as pessoas negras são as que mais estão desempregadas ou em trabalhos de baixa remuneração, é possível correlacionar esse impacto com os altos valores dos ingressos e os demais custos, como deslocamento (transporte
público) e alimentação.

Há quem aponte a necessidade do retorno de uma geral, como acontecia no estádio do Maracanã, mas cabe a reflexão que aquela geral contava com condições inapropriadas e não dispunha do básico que um torcedor precisa no estádio. Ou seja, é válida a reflexão: Deve-se criar um novo setor para torcedores pobres ou deve-se diminuir o valor dos ingressos, permitindo que esses mesmos torcedores possam frequentar o local que quiser?

Esse debate se faz necessário mediante a um apontamento atual: Há um embranquecimento do futebol e da cultura nas arquibancadas. Aponta-se o racismo religioso vivido por Paulinho, candomblecista e filho de Oxóssi, que comumente tem sofrido com ataques de cunho racista, a partir do momento em que se manifesta, professando a própria fé. Esse exemplo, somado às novas imposições Brasil a fora, como a proibição de bandeiras de mastro, a exclusão ou diminuição dos ritmos brasileiros na arquibancada – no Rio de Janeiro é possível apontar a ausência do samba, algo que diminuiu muito dos anos 90 para o período atual – como outros fatores, formam um futebol moderno que não inclui nem o negro e nem as culturas oriundas da população negra brasileira.

Paulinho
Foto: reprodução redes sociais

Assim como nos clubes, os trabalhadores que ocupam os cargos de base, como os controladores de acesso, seguranças, vendedores e correlacionados, também são negros. Dos que torcem para algum clube, a proximidade se dá através do trabalho e não como lazer. Afinal, quem pode ter lazer em um cotidiano com tantos desempregados e trabalhadores informais? Ademais, um lazer tão custoso como tem sido o futebol.

Combate ao racismo: Entre a problematização de cânticos e campanhas pontuais

Se há um cotidiano racista e não resta qualquer dúvida sobre isso, existe um combate ao racismo dentro do futebol?

Os cânticos com ofensas racistas se multiplicam nas arquibancadas. Entre as acusações de ser ladrão ou gambá, “mulambo” ou favelado, as torcidas brasileiras têm se acostumado a cantar dentro dos estádios canções que visam provocar o rival e, infelizmente, ainda existem variadas músicas com conotação racista. Há quem pense que não peso nessas palavras – talvez desconheçam o uso semântico e/ou linguístico do racismo – porém ele existe.

Se já houve exclusão – de uma competição nacional – de um time em que torcedores foram flagrados xingando um goleiro de macaco, por que ainda não há um longo debate em torno dos demais termos? Por que seguimos com essa insistente provocação em torno da raça – e também em torno da sexualidade e/ou do gênero – sem que haja uma mobilização dentro e fora dos estádios para novos rumos?

Há quem aponte esse debate como “mimimi” ou perda de tempo. Num país que um jovem negro é assassinado enquanto você lê este texto, nenhum debate sobre racismo pode ser considerado mimimi. Não podemos e não devemos nos limitar às campanhas de novembro negro, em que curiosamente os clubes acordam de um conivente cochilo, para falarem de não ao racismo e apresentarem as pessoas negras que compõem seu espaço. Não podemos e não devemos ter apenas o Observatório Racial do Futebol – que faz um excelente trabalho, pedagógico e político – falando sobre isso o ano inteiro.

O combate ao racismo deve ultrapassar o que parece ser “racismo óbvio” no Brasil, que é quando alguém profere termos como macaco e entender que as questões étnico-raciais estão presentes em todas as relações, na condenação do que é visto como “preto demais” e na exclusão de pessoas negras nos estádios brasileiros.

Finalizando a prosa

Diante de tudo que foi exposto, é possível concluir que o racismo não se limita aos cânticos racistas e aos episódios de injúria racial, por vezes destinados aos jogadores e também aos torcedores. É preciso, assim como feito quando se analisa a sociedade em geral, denotar os melindres do racismo na reprodução das relações dentro do futebol.

É necessário olhar pro lado e perceber que, dependendo da torcida e do setor em que se está no estádio, a maioria de torcedores não é negra. Observar que quem é julgado como “preto demais” é perseguido na imprensa. Afirmar que as pessoas podem ter qualquer escolha religiosa e que isso não pode fazer delas um alvo. Corroborar na criação de cânticos que, sim, provoquem os rivais, mas não por raça (ou gênero/sexualidade).

O futebol brasileiro é uma invenção, sobretudo, dos negros que estiveram lá. O rei do futebol é negro. Os dribles e o gingado, características fundamentais do futebol brasileiro, são heranças do povo negro. Muitos ritmos também são dessa mesma herança. E assim, finalizo esse texto apontando que: O espaço para o negro, no futebol brasileiro, deve ser respeitado. Sem mais delongas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SILVA, Ana Beatriz Santos da. Onde estão os negros no futebol brasileiro?. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 17, 2024.
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