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Desvio e conformidade no esporte: uma crítica de Kurt Weis

Wagner Xavier de Camargo 11 de setembro de 2022

Buscando referências para compreender correntes teóricas dentro da Sociologia do Esporte, deparei-me com Kurt Weis, um sociólogo alemão que produziu algo nesta linha de pesquisa na segunda metade do século XX.

Weis foi discípulo de Günther Lüschen, outro sociólogo alemão que ficou marcado por uma produção acadêmica na linha teórica funcionalista da sociologia, e influenciou muitas gerações de pesquisadores.

No entanto, nem um, nem outro são mais lidos na Alemanha ou na Europa atualmente, segundo jovens teóricos da área temática de Sociologia do Esporte em terras germânicas. Parece que, como forma de sobrevivência, esta disciplina tem buscado abrigo nas discussões do campo de Ciências do Esporte (HAUT; STAACK; SCHWANK, 2020) e, em consequência, perdido espaço.

Ao procurar bibliografia em português, deparei-me com um livro de fins dos anos 1970, organizado pelos dois pesquisadores citados, porém escrito em espanhol (Sociología del Deporte). Lüschen e Weis têm vários textos nele, mas o que me chamou atenção foi “Desvio e conformidade no esporte” (Desvío y conformidad en la institución del deporte), de autoria de Weis.

Ele está preocupado em refletir sobre formas desviantes da norma, particularmente àquelas que se relacionam à violência instituída no esporte. Vai defender que “o social só se explica pelo social”, além de sublinhar que o campo esportivo, em suas raízes sociopolíticas, serve ao controle da sociedade para ora impor a conformidade, ora combater o desvio.

Haveria, portanto, uma tensão instalada entre conformidade e desvio: “desvio e conformidade condicionam-se reciprocamente e estão unidos de modo inseparável. O desvio é necessário para que o sistema reconheça e faça prevalecer a conformidade” (WEIS, 1979, p. 252, tradução minha).

A noção de desvio empregada vem das teorizações de Robert Merton, um sociólogo estadunidense que se preocupou com a desorganização social das ruas. Este resgata as ideias do funcionalismo estrutural de Talcott Parsons para enfatizar a necessidade de pensar a dinâmica dos processos sociais.

Para Weis, uma análise de conduta desviada deve estudar as tentativas do sistema de equacionar (encaminhar resolução para) desvios e estabelecer a conformidade, sendo que tais intentos se resumiriam no controle social – “face negativa” de uma instituição.

Segundo argumenta, desta forma, o esporte é uma instituição social que, como todas as demais, serviria para satisfazer necessidades de uma sociedade, prescrevendo modelos de atuação e relação, organizados em um complexo de papeis sociais que funcionariam para regular o mecanismo social.

Neste artigo o autor vai pensar o caso do esporte dentro do sistema carcerário (prisional) e os argumentos de teóricos que defendem que ele é um elemento fundamental de controle social da violência e ressocialização de presos.

A primeira questão colocada por Weis diz respeito ao como se pratica política social usando o esporte como subterfúgio, pois esse acaba sendo manejado como controle social, “(…) quando atividades esportivas são incentivadas ou dificultadas e quando prêmios de mérito esportivo são concedidos ou negados” (WEIS, 1979, p. 258, tradução minha).

Por isso, o autor coloca em dúvida a capacidade genérica e afirmativa do esporte servir para socializar/ressocializar um indivíduo. Além disso, nos centros penitenciários em que prescrevem o esporte como modelo importante a ser aplicado, muitas vezes tais centros não injetam dinheiro e não têm pessoal qualificado para executar a prescrição defendida.

Diante disso, argumenta que nenhuma função desejada pode alcançar seu objetivo se não for possível exercer qualquer influência sobre o verdadeiro grupo-alvo. A recuperação social do preso fracassará se a sociedade não aceitar a pessoa que está disposta a se readaptar socialmente ou se ela considerar mais a marginalização social imposta pela prisão do que a (res)socialização buscada, por exemplo, por meio do esporte.

A conversão do esporte em uma instituição social e a supressão de suas “primitivas experiências sensoriais” faz com que ele enterre parte de seu “caráter original”, de acordo com o autor. Isto posto, falha-se ao negar ao esporte sua eficácia educativa, uma responsabilidade que outras instituições não atingiram completamente, na visão de Weis.

Como ele cita:

Uma sociedade e um esporte que contam o sucesso e a vitória entre seus valores mais altos produzem, consequentemente, também perdedores. O desejo para que o outro perca não é uma forma natural, mas uma forma socialmente adquirida de comportamento. Portanto, quanto mais sucesso e triunfo forem enfatizados, mais o perdedor em potencial fará esforços (legítimos e ilegítimos), para evitar a derrota. Nesses esforços, muitos dos ideais oficiais podem ser violados

(WEIS, 1979, p. 254, tradução minha)

Deste modo, a partir da linha argumentativa do autor, fica claro que ele usa dos pressupostos do funcionalismo durkheimiano, mas tenta colocar em xeque tais ideais. Disse que, então, suas considerações só poderiam ser críticas, pois tomar o comportamento desviante como uma perspectiva central não pode levar a um elogio unilateral da conformidade. Se se insiste na conformidade, será inevitável a aparição e a condenação do sistema desviado.

Esta é a brecha usada por alguns teóricos para colocar Kurt Weis como um autor que inaugura a linha do sociointeracionismo, uma vertente que valoriza a dimensão sociocultural do indivíduo, valorizando o contexto cultural, histórico, social e no qual está inserido. Lev Vygostsky, um teórico bielorrusso, foi quem fundamentou tal corrente teórica. Para ele, a vivência em sociedade é fundamental para transformar o homem de um ser biológico em um ser humano/social, potencializador de interações.

Weis não foi além em suas teorizações. Permanece em alguns registros, aqui e acolá, como o “pai do interacionismo simbólico” na Sociologia do Esporte (FERNANDO; BARATA; OTERO, 2005). Contudo, mesmo que pouco ainda se saiba, fica como pauta de pesquisa para futuras gerações de sociólogos/antropólogos que queiram investigar suas ideias e proporem desdobramentos.

Para finalizar, deixo um fragmento incisivo do autor:

Antes de continuarmos abusando de uma instituição como o esporte, sobrecarregando-a com uma lista interminável de funções sociais, devemos considerar quantos perdedores, infratores e pessoas disciplinadas ela já criou, quantos modelos falsos de conduta ela estabeleceu e segundo interesses de quem ela realmente agiu

(WEIS, 1979, p. 264, tradução minha).

Para quem se interessar:

FERRANDO, Manuel García; BARATA, Núria Puig; OTERO, Francisco Lagardera (comps.). Sociología del deporte. 2ª edición actualizada. Madrid: Alianza Editorial, 2005.

HAUT, Jan et al. The Sociology of Sport in Germany: development and recent trends. Sociología del deporte, v. 1, n. 2, p. 25-36, 2020.

LÜSCHEN, Günther; WEIS, Kurt. Sociología del deporte. Trad. Erika Schwarz y Daniel Romero. Valladolid: Miñon Editorial, 1979.

WEIS, Kurt. Desvío y conformidad en la institución del deporte. In: LÜSCHEN, G.; WEIS, K. Sociología del deporte. Trad. Erika Schwarz y Daniel Romero. Valladolid: Miñon Editorial, 1979. P. 252-267.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Desvio e conformidade no esporte: uma crítica de Kurt Weis. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 13, 2022.
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