38.5

Em defesa da prata

Paulo Nascimento 21 de agosto de 2012

 “A novidade era o máximo
do paradoxo estendido na areia
Alguns, a desejar seus beijos de Deusa
outros, a desejar seu rabo pra ceia.”
(Gilberto Gil, “A novidade”)

Em uma conversa recente que tive com um inglês que visitava o Brasil, ouvi dele por diversas vezes um espanto pelo fato do quanto o futebol mobiliza por aqui. Dentre outros pontos, chamou a atenção do gringo como os torcedores brasileiros sentem-se orgulhosos com os cinco títulos da Copa do Mundo conquistados na história do torneio. Poderia ser a exímia organização do torneio nacional. Poderiam ser as cores, cantos, gritos e coreografias que tomam conta dos estádios brasileiros. Poderiam ser os diversos trabalhos de promoção de mobilidade social que poderiam estar sendo realizados com crianças e adolescentes, seja por iniciativa pública ou privada. Poderia, mas não é. O que nos dá orgulho é saber que, apesar dos pesares do mundo e de nosso país, ocupamos um lugar de destaque que nenhuma seleção ocupa, naquele que é tido como o esporte mais popular do planeta.

E talvez por conta disso, dessa suposta excelência que seria gritante e incontestável, a falta de um título olímpico ao futebol brasileiro chame a atenção. Talvez em razão de os Jogos Olímpicos virem aumentando paulatinamente sua ressonância no Brasil, aos poucos a falta do ouro olímpico vai se transformando em fardo, peso, obrigação. Estamos possivelmente em meio à invenção de uma tradição. Posso estar sendo levado por minha memória a lugares obscuros, mas não me lembro de ter ouvido na minha infância vivida nos anos 80 alguma queixa de torcedor de futebol sobre a ausência de medalha olímpica na galeria de títulos do futebol brasileiro, fosse de ouro, prata, bronze ou latão. Hoje, temos outro cenário.

Oscar tenta fazer o gol contra Honduras. O jogo foi válido pelas quartas-de-final e o Brasil venceu por 3 x 2. Foto: Mowa Press.

E os Jogos de Londres, recém-encerrados, acabaram por ser mais um capítulo desta trama. Mais uma vez, a seleção brasileira de futebol não conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. Mais uma vez cotadíssima para conquistar a inédita medalha, o time não resistiu ao México, de quem já perdera em amistoso preliminar aos Jogos. Foi derrotado por 2 a 1, com um gol logo nos primeiros instantes do jogo, aos 29 segundos de jogo (o gol mais rápido da história dos Jogos Olímpicos, fizeram questão de lembrar os mais dramáticos).

Não faltaram críticas ao esquema tático, à disposição (ou falta dela) de alguns jogadores, à convocações equivocadas, e sobretudo ao técnico Mano Menezes. Para alguns, a medalha de ouro seria o único modo do técnico, questionado já há algum tempo, ganhar sobrevida no emprego. Romário, no posto de comentarista esportivo, encontrou mais um flanco ao que aparentemente parecer ser uma vontade cada vez mais intensa do deputado: posicionar-se como “do contra” ao que estaria sendo feito de modo “errado” no país. Longe das contendas técnicas, me chamou a atenção o modo que esta medalha de prata foi recebida em meio ao mosaico de outras conquistas (ou a falta delas) do Brasil. Houve quem comparasse a postura dos homens do futebol às mulheres do vôlei, e insistisse em um quadro onde ambos estariam diametralmente opostos. Elas, sinônimo de perseverança, garra e determinação. Eles, o contrário.

Neymar parece não acreditar no que vê na partida da final contra o México. Foto: Mowa Press.

Não é fácil dar sustentação a este quadro. Vôlei e futebol são esportes muito diferentes, seja pela parte técnica, pela contagem dos pontos, ou pelo poder simbólico que exercem na população brasileira. Também me chamou a atenção o modo como os que não conquistaram a medalha de ouro foram tratados. Me pareceu uma nova versão do “ser vice e ser o último são a mesma coisa”, adaptado ao pódio olímpico. E foi aí que a canção de Gilberto Gil me tomou a mente.

Assim como em “A novidade”, onde Gil narra com a verve poética que lhe é única a história de uma sereia que fisga o olhar dos que estão na praia por motivos diferentes – alguns querem beijá-la; outros, matá-la para cear seu rabo –, os torcedores brasileiros dão demonstrações de semelhante ambiguidade e maniqueísmo quando vão lidar com os seres não menos fantásticos que são os atletas olímpicos brasileiros. Há quem os eleve a uma categoria supra-humana; outros que, em igual intensidade, vivem à espreita do próximo resultado – e caso esse resultado seja diferente do ouro, teríamos então um fracasso retumbante.

Jogadores do Brasil com a medalha de prata. Foto: Mowa Press.

O momento histórico do Brasil é outro. Vivemos em uma sociedade que experimenta pela primeira vez espaços, gestos, gostos e dissabores que pareciam inalcançáveis. Essa novidade se estende também à esfera política. Temos mais gente mais consciente de seu poder de cidadão, de como se fazer ouvido pelo Estado, e de como negociar com os demais, numa prática inédita de alteridade. Talvez seja mesmo uma novidade assimilar um resultado esportivo que não seja a taça de campeão, e que nem por isso merece ser menosprezado.

O time de futebol brasileiro estava entre os favoritos. Viu seu favoritismo aumentar quando Espanha e Uruguai foram eliminados. Tem um histórico de participações em Copas do Mundo incomparável ao México. Mas perdeu. Faz parte do jogo. Nem sempre dá pra ganhar. E uma medalha de prata não é exatamente o por dos mundos – espanhóis e uruguaios que o digam. Quem sabe que, com a iminência da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos a serem realizados no Brasil, os cidadãos brasileiros, os mesmos que vão ocupando novos lugares na política brasileira, aprimorem seu ethos de torcedores. Que estes torcedores aprendam a cobrar dos que administram o esporte no Brasil em igual ou maior intensidade à cobrança feita aos atletas, não raro injustas. E que comecemos a nos comprometer, todos, estejamos torcendo nas arquibancadas ou em frente às telas de computador, a um modo mais equilibrado de torcer. Pois entre a medalha de prata e o último colocado há, sim, uma solene diferença.

 

Referências:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.

HOBSBAWM, Eric. & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Paz e Terra, 1994.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. Em defesa da prata. Ludopédio, São Paulo, v. 38, n. 5, 2012.
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