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Espanha e o nordeste brasileiro: possíveis aproximações?

Adriano Lopes de Souza 19 de dezembro de 2016

Desde sua sistematização, no século XIX, na Inglaterra, o futebol passou por constantes mudanças que contribuíram fundamentalmente para sua difusão, tornando-o, um dos esportes mais populares em todo mundo. Sendo, inclusive, utilizado como ferramenta de reivindicação dos anseios de uma ou várias sociedades. Nesse sentido, farei alguns apontamentos levando em consideração a região nordeste do Brasil e a Espanha, a partir de suas cidades com pretensões separatistas. Embora distantes essas “regiões” parecem utilizar o futebol como possibilidade de expor um discurso de unidade ou de pertença a suas respectivas regiões.

A partir da união dos reinos de Castela e Aragão, unidos pelo casamento de Isabel e Fernando em 1469, surge um dos primeiros Estados modernos. A Espanha, que seria uma das primeiras nações europeias a iniciarem o seu processo de formação de Estado-nação, rompendo com as estruturas socioeconômicas vigentes na sociedade feudal. Nesse cenário, diversos povos, com suas respectivas culturas, foram reunidos sob o comando de um só reino. Ao longo desses mais de cinco séculos, a Espanha passou por inúmeras mudanças sociais, econômicas e politicas que contribuíram para formação de uma nação importante no cenário mundial, mas que vive as turras com diversos povos que desejam se separar do Estado espanhol.

Essa discussão separatista tem um viés histórico e político importante. Ainda que houvesse uma centralização do poder na formação do Estado espanhol, diversos povos tiveram suas culturas mantidas. Contudo, durante o século XIX, a partir da ascensão burguesa, houve incentivo numa maior centralização do Estado, e diversas cidades perderiam sua autonomia, conforme discorre Antônio Gomes Moreira Maués e Élida Lauris dos Santos, em seu artigo intitulado como: “Estabilidade constitucional e acordos constitucionais: os processos constituintes de Brasil (1987-1988) e Espanha (1977-1978). Ainda de acordo com os autores:

Isso levou ao surgimento de correntes políticas nacionais, que reivindicavam o retorno de suas autonomias, particularmente em duas regiões de grande importância econômica: Catalunha e País Basco. Sob a Constituição de 193, essas regiões tiveram o reconhecimento de sua autonomia, a qual foi posteriormente suprimida pelo regime franquista, fazendo com que as correntes nacionalistas reaparecessem com força no processo constituinte”.

Essa necessidade separatista ainda está presente e encontrou no campo esportivo uma importante ferramenta de reivindicação. Através do futebol, que ao longo dos anos tornou-se um importante elemento cultural, a sociedade espanhola tem apresentado ao mundo o quanto esse movimento é forte em seu território. Nesse sentido, tomamos como exemplo a Catalunha – situada a nordeste da Península Ibérica – e o País Basco – localizado entre o norte da Espanha e sul da França – que tornaram-se referências, através da utilização de seus clubes, respectivamente, Athletic Club e F.C Barcelona, como símbolo do movimento separatista. Através dessas agremiações, esses povos expressariam seus sentimentos por suas regiões.

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Manifestação pró-Catalunha, algo corriqueiro nos jogos do Barcelona. Foto: Josep Mª Bipolar Mosfet (CC BY-SA 2.0).

Sobre essa característica, o professor da Universidade de Valência, Ramón Llopis Goig, trás um importante conceito no qual ele denomina como etnoterritorial. De acordo com Goig, esse conceito refere-se a dimensão de um sistema político no qual se desenvolvem conflitos identitários e movimentações políticas de grupos étnicos com base territorial identificável. Essa “base territorial” seria, justamente, no exemplo citado, o País Basco e a Catalunha que contemplam várias províncias na sua formação, destacando-se, respectivamente, a província de Bilbao e a de Barcelona.

Essa apropriação do futebol como espaço de reivindicação também esta presente no Brasil. Compreendendo sua utilização como um viés simbólico territorial, ou seja, de valorização regional, o futebol tem sido utilizado como ferramenta de afirmação de identidade do povo nordestino,perpassando pela discussão sobre o torcer misto. Essa forma de torcer refere-se a escolha de agremiações clubisticas que não pertencem a cidade de origem do torcedor. O termo “misto” compreende uma ideia de “impureza”, conforme discorrido por Artur Alves Vasconcelos em sua dissertação, intitulado como: Identidade futebolística: Os torcedores “mistos” no nordeste.

Esse termo é utilizado de forma pejorativa por torcedores que se consideram “anti-mistos”. Estes são aqueles torcedores que torcem, exclusivamente, pelas equipes locais além de não concordarem com a escolha clubistica feita por seus conterrâneos. Comumente, esses torcedores se manifestam por meio de faixas e cartazes nos estádios, utilização de camisetas, ou através das redes sociais, apresentando argumentos que seriam são motivos para não se torcer por um clube “de fora”.

Sobre a negação ao considerado “de fora”, percebe-se a presença de um discurso claramente regionalista, que é muito freqüente na região. De acordo com Maura Penna, em sua obra intitulada como: O que faz ser nordestino: identidades sociais, interesses e o “escândalo”, Erundina, a autora discorre sobre os conceitos de região e regionalismo. A partir de sua análise, “região” aparece como um viés político-administrativo. Pensar em região seria pensar no “todo”, no caso, na própria região nordeste. Porém, sobre o “regionalismo” advém da relação entre o individuo e o espaço, da relação do povo nordestino com sua região. Nessa perspectiva, existe um forte apelo dos torcedores “anti-mistos” perpassando pelo ideal regionalista. Ou seja, ao torcer por agremiações de outras regiões do Brasil, esse torcedor deixa de valorizar a sua região, sendo uma justificativa para o termo “vergonha do nordeste”, muito utilizado contra os torcedores mistos da região.

Após a apresentação desses dois importantes cenários, compreendo que tanto na Espanha, quanto na região nordeste do Brasil, a apropriação dos clubes de futebol ocorre para além do “simples” torcer. Por trás da escolha clubisticas, existe uma veiculação simbólica no qual os clubes de futebol dessas regiões se constituem como importante elemento de representação local. Embora, na Espanha, através do conceito de “Etnoterritoriedade”, compreendo que haja um engajamento mais político em detrimento da região nordestina do Brasil, que apresenta um discurso mais simbólico.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SOUZA, Adriano Lopes de. Espanha e o nordeste brasileiro: possíveis aproximações?. Ludopédio, São Paulo, v. 90, n. 9, 2016.
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