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Estádios de futebol: objeto de desejo, de disputas e (cada vez mais) de estudos

Gilmar Mascarenhas 21 de setembro de 2017

O estádio, enquanto lugar social, potente espaço de sociabilidades e intensas expressões político-culturais vem despertando, merecidamente, várias pesquisas Brasil afora. No mês passado, dois orientandos meus concluíram respectivamente uma dissertação e uma tese de doutorado. A primeira, de autoria de Krycia Perni, compara aspectos do novo Maracanã com o tradicional estádio de São Januário, que persiste como contraponto ao processo de modernização, espécie de “antiarena”, diria o colega Fernando da Costa Ferreira, autor da tese de doutorado supracitada. Esta, versando sobre os comportamentos dos torcedores no novo Maracanã, traça um impressionante e minucioso retrato da tipologia dos torcedores e suas práticas no interior do estádio. Um pouco antes, no final de julho, participei da banca de defesa da Tese de Doutorado de Georgino Neto, na UFMG, sobre a evolução dos estádios na cidade de Belo Horizonte, mais uma grande contribuição no âmbito do GEFUT, sob orientação de seu mentor e coordenador, Silvio Ricardo da Silva.

Neste mês de setembro, outra boa notícia: o lançamento do livro de Irlan Simões, “Clientes versus rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno”, o qual tive o prazer de prefaciar. Participei recentemente da banca de mestrado do Irlan, em Comunicação Social, na UERJ, sob a experiente orientação de Ronaldo Helal, nobre parceiro de estudos do futebol. O livro nasce desta dissertação com cara de tese doutoral.

O autor trata de um tema ainda muito pouco estudado, se considerarmos a centralidade ocupada pelo futebol na sociedade brasileira e a relevância dos estádios enquanto equipamento de lazer vibrante e onipresente nas grandes e medias cidades do Brasil. Este formidável equipamento de uso coletivo encontra-se disseminado por todo o território nacional: conforme o último levantamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o país possui quase oitocentos estádios. Consoante à atual supremacia territorial urbano-metropolitana, uma ínfima parcela deste conjunto de estádios (sobretudo as novas arenas) concentra mais de 80% ou 90% da renda auferida por todo o universo do sistema futebolístico nacional. No plano arquitetônico, a tônica dominante é a ostentação monumental destes novos objetos icônicos. No aspecto funcional, prevalecem promessas de segurança, tecnologia e comodidade ao público assistente. No âmbito social, o novo conceito de estádio tende ao elitismo explícito. Na dimensão cultural, o banimento ou repressão ao amplo e inventivo repertório de expressivas práticas coletivas de cantos e coreografias. É deste segmento de que trata a boa pesquisa de Irlan, agora felizmente disponível ao público mais amplo.

Percebendo o novo estádio como um potencial microcosmo do universo urbano, ali podemos vislumbrar a crescente imposição do valor de troca sobre o valor de uso nos espaços de sociabilidade, apontando a “cultura” e o lazer como novas fronteiras de acumulação capitalista. Neste sentido, no bojo da proclamada “nova economia do futebol”, eufemismo para designar as últimas rodadas de hipermercantilização deste esporte e das formas sociais de vivenciá-lo, o estádio contemporâneo se vê crescentemente submetido aos implacáveis princípios do gerenciamento técnico-empresarial. Gerenciamento que visa “requalificar-revitalizar-refuncionalizar” o tradicional equipamento, tornando-o mais rentável e, sem meias-palavras, mais “bem freqüentado”. Eis o palco fundamental de realização das “novas culturas torcedoras”, tema central deste livro, que atravessam e tentam redesenhar o estádio, reanimando-o, resgatando-o da frieza matemática do lucro a qualquer custo.

clientesxrebeldes

Embora o princípio mercadológico já estivesse presente no “velho estádio” – sendo este um espaço acessado pelos indivíduos unicamente pela via da aquisição de ingresso –, as novas arenas ampliam e radicalizam o sentido da cidade-mercadoria, ao impor valores comerciais muito mais altos para os ingressos e para a alimentação em seu interior, eliminando assim agentes e serviços informais que tradicionalmente compunham a experiência dos torcedores naquele espaço vivido. Em outras palavras, como espaço apropriado pelos “usuários” (terminologia infame neste caso), que nem sempre querem se reduzir a meros consumidores e passivos observadores (os “clientes”, nas palavras de Irlan), mas participar ativamente da festa, inclusive expressando coletivamente suas opiniões e reivindicações: são os “rebeldes” deste livro. O rico movimento de apropriação do estádio faz dele um elemento singular na reprodução social da cidade.

A reinvenção dos estádios (“arenização”, com prefere nosso jovem autor) não se reduz apenas a uma arquitetura sofisticada e monumental, alvo de ufanismo e promotora de mais um cartão postal em nossas metrópoles. Impõe-se uma rotina altamente organizada, ao empobrecer a sociabilidade historicamente construída no processo de apropriação desse espaço público pelas massas urbanas. O atual “modelo FIFA” concebe o moderno estádio como equipamento destinado a um público específico, “figurante”, seleto, solvável, disposto a pagar caro por tecnologia, conforto e segurança. Um público “familiar” e “ordeiro”, que vai ao estádio consumir o espetáculo e não realizar tradicionais formas de protagonismo que não interessam ao novo modelo hegemônico. Ainda no plano da retórica modernizadora, pretende-se um estádio “civilizado”, em contraposição ao caos e à “barbárie” supostamente reinantes no modelo anterior, considerado vulnerável a movimentos de massa incontroláveis e sujeito à atuação de grupos sociais “perigosos”.

Todo esse processo afeta profundamente a cultura do futebol, incluindo nela a forma social de produção e realização da paixão do torcedor. Segundo o antropólogo Arlei Damo (também colunista do Ludopédio), o “pertencimento clubístico” é uma modalidade de vínculo identitário intenso e imutável com o clube, gerador de um “segmento de público militante”, com grande engajamento emocional – condição para viver plenamente a excitação futebolística – e capaz de atitudes tidas como irracionais. Esta aparente irracionalidade, produtora de gestos considerados agressivos e imprevisíveis, não interessa à moderna indústria do espetáculo, que prefere um consumidor sóbrio e obediente. Ademais, um consumidor de maior poder aquisitivo, de forma que nossos novos estádios tendem a expulsar simultaneamente o pobre e o torcedor apaixonado, duas categorias sociais que muitas vezes se confundem no mesmo indivíduo, já que o “pertencimento clubístico” está enraizado na cultura popular. De tão enraizado, resiste ao modelo hegemônico, engendra suas táticas e por vezes organiza a luta contra o “futebol moderno”. Podemos neste livro conhecer de perto duas interessantes iniciativas: o “Povo do Clube” (organização dos torcedores “colorados”, os do Sport Club Internacional, de Porto Alegre) e a “Resistência Azul Popular”, no âmbito dos torcedores do Esporte Clube Cruzeiro, de Belo Horizonte.

Venho postulando que o direito ao estádio popular e democrático é uma faceta da luta mais geral pelo direito à cidade. Poderia (e deveria) ter havido, antes da “arenização”, algum canal de diálogo com o cidadão frequentador do estádio e com as torcidas organizadas, cada qual com seus saberes pautados no vivido, sobre os problemas e particularidades deste território singular. Mas o novo modelo se impôs verticalmente, e por isso Irlan nos convida a ouvir as supracitadas vozes dissonantes.

Irlan não se restringe às bibliotecas e circuitos acadêmicos. Torcedor militante, envolve-se com ativismos no âmbito do futebol, dialoga com grupos organizados, atua e teoriza ao mesmo tempo. Baiano liberto da fácil adesão aos clubes midiáticos de Rio e São Paulo, tem personalidade para torcer vivamente para o soteropolitano Esporte Clube Vitória. Mais que torcer (como diria Gabriel Cohn, “ter o fundilho das calças puído no cimento das arquibancadas”), Irlan se engaja na gestão do clube, construindo, no momento em que redijo estas linhas, um belo projeto de pesquisa e extensão, que vai desde o resgate da memória do rubronegro baiano (um dos mais longevos clubes do Brasil) a seu potencial de entrelaçamento com a periferia onde se insere o fantástico, plural e pulsante estádio Barradão, “antiarena” convicta e que assim persista, amém (aos olhos de nossas elites, ao menos daquela parte que vive de costas para o Brasil, um equipamento feio, mal frequentado e muito mal localizado).

Este livro é uma bela jogada concluída com arremate certeiro, sacudindo as redes.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Estádios de futebol: objeto de desejo, de disputas e (cada vez mais) de estudos. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 21, 2017.
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