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Maio 68: um urubu no estádio, um estádio na cidade e uma cidade no urubu

Gilmar Mascarenhas 27 de junho de 2019

Desde já aviso ao leitor que o ano de 1968 aqui entrou muito mais por simpatia e quase devoção pessoal do que por banais fidelidades cronológicas. Na verdade tudo aconteceu no ano seguinte, um apagado 1969. Mais precisamente, ao findar o igualmente simpático mês de maio, adentrando um primeiro de junho. Mas posso melhor justificar “racionalmente” a troca do mês: a aventura foi toda planejada em maio e sua execução demandou tarefas complicadas ainda no final deste mês, conforme relataremos aqui. Vamos, pois, aos fatos, que muito mais importam que as datas.

Estamos falando de um acontecimento bizarro, porém marcante. Quatro jovens torcedores rubro-negros trouxeram para o Maracanã, num dia de “casa cheia”, um urubu. Este foi atirado ao gramado. Pelo relato de um dos responsáveis pelo fato inusitado,

Até hoje me arrepio quando conto esse momento. Assim que o soltamos, ele deu uma descaída, mas depois abriu bem as asas e deu uma volta em frente à torcida do Flamengo, que começou a gritar “é urubu, é urubu, é urubu”. E quando ele passou em frente aos botafoguenses, com a bandeira tremulando, eles ficaram calados, sem reação. Ele pousou no meio do campo, e a torcida do Flamengo gritava ainda mais, incorporando o símbolo – contou Luiz Octávio. (O GLOBO, 01 jun. 2009).

Se o C.R. Flamengo ostenta em nossos dias a ave de má reputação popular como seu símbolo máximo, a ponto de batizar Ninho do Urubu seu Centro de Treinamento, tende a haver um consenso de que o estranho episódio de 1969 fora decisivo nesta identificação.

O urubu já frequentava o imaginário do rubro-negro carioca há muito tempo, mas não era aceito pelo clube tampouco pela maioria de seus torcedores. Nas três décadas anteriores a 1969, tal ave era amiúde atribuída ao clube pelos torcedores rivais e de forma bastante pejorativa. Pois desde 1938 o Flamengo passou a mandar seus jogos no então inaugurado Estádio da Gávea, construído em terreno vizinho à Lagoa Rodrigo de Freitas, em aterro da mesma, que na década anterior propiciou a construção do Hipódromo da Gávea. Sendo a referida lagoa um ambiente naturalmente propício à mortandade regular de peixes (Sacopenapã, ou “lagoa do peixe podre” ou mesmo “água podre”, era sua denominação indígena, para os nativos tupinambás), era interessante o sobrevoar de urubus sobre o campo do Flamengo, atraídos, muito antes da chegada do clube, pelos peixes em decomposição nas margens da lagoa.

O Flamengo adotou o Urubu como seu mascote
O Flamengo adotou o Urubu como seu mascote. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Durante três décadas, os flamenguistas em geral refutavam, obviamente, o símbolo atribuído pelos rivais de forma perversa, uma vez que o urubu povoa negativamente o imaginário popular, seja por suas preferências alimentares, seja por sua aparência pouco valorizada, seja pela condição de vilão na produção cultural (vide o Zeca Urubu, personagem do famoso desenho animado “Pica-pau”, criado em 1948 nos Estados Unidos e que naquela década de 1960 frequentava nossas televisões). Os torcedores rubro-negros tinham outra mascote, o simpático marinheiro Popeye, consagrado ainda nos anos 1940 pelo cartunista argentino Mollas (na Argentina já era muito difundida essa prática).

Aqueles anos sessenta não foram bons para o C.R. Flamengo. Dois títulos cariocas, um torneio Rio-São Paulo em 1961 e nenhum outro no âmbito extra-local (Taça Brasil ou Torneios Roberto Gomes Pedrosa). Praticamente nenhum jogador de maior expressão, exceto um Gerson “canhotinha de ouro” que cedo migrou para o então chamado Selefogo, de Jairzinho Furacão, Paulo Cesar Caju, Leônidas, Roberto, Afonsinho, Manga e outras feras. Um time que, ao contrário do rival, vinha muito bem: faturou quatro cariocas naquela década (com goleadas nas decisões), uma Taça Brasil, três Rio-São Paulo e que apenas não foi mais longe por ter esbarrado, nos primeiros anos deste decênio, no impressionante Santos de Pelé, bicampeão mundial de 1962-63.

Também poderia aquele Botafogo ter realizado uma vitoriosa campanha na Libertadores de 1969, não fosse a atrapalhada CBD e seu calendário maluco que impediu que o campeão da Taça Brasil (decidida somente em janeiro de 1969) se inscrevesse a tempo no certame continental. Aquele time era tão poderoso que, em meados de 1968, foi convocada a seleção brasileira para dois amistosos com atuações impecáveis. Goleamos o Chile em Santiago (5 a 1) e a Argentina por 4 a 0 num Maracanã extasiado pelo show de bola. O último gol canarinho resultou de um “olé” de mais de cinquenta passes. Aquele timaço nacional tinha, em campo, oito alvinegros, feito que me parece jamais igualado com tamanho êxito por outra equipe brasileira.

Diante deste cenário de contraste entre os dois clubes, consta que naquele 1969 o Flamengo não vencia o Botafogo há quatro anos. Alvinegros tratavam o rival como “freguês” e alguns jogadores zombavam afirmando na imprensa que gastavam o “bicho” antes da partida pois a vitória era certa. Pois chegara o dia do fim do tabu, e foi justamente naquela animada tarde domingueira da inusitada presença dos urubus no gramado do Maracanã. Zico e Junior eram adolescentes e árduos torcedores que, conforme registraram posteriormente, acompanharam com sofrimento aquele período em que seu principal rival era o implacável Botafogo. Sofrimento que atingiu o ápice em 1972, na goleada de 6 a 0, quando ambos, com 18 e 17 anos respectivamente, já estavam prestes a adentrar a equipe profissional e mais tarde poder devolver, com grande alívio, os 6 a 0. Embora não exatamente no mesmo nível, pois sem os requintes de crueldade de um gol de letra (de Jair Furacão da Copa 70) e aplicada justamente no dia do aniversário do Flamengo.

O popular Henfil colaborou para a paulatina conversão do urubu em símbolo maior do clube, adotando-o em seus cartuns e oferecendo uma imagem que contribuía para arrefecer os terríveis preconceitos para com o pobre animal. Os torcedores pouco a pouco adotaram o que antes lhes soava como xingamento, tal qual (guardando as diferenças e contextos) os palmeirenses fizeram com o “porco”.

Creio que explicamos até aqui a presença do urubu no estádio, do ponto de vista da trama simbólica que tece a representação dos clubes. Mas isto não é suficiente, daí a segunda oração do título, “um estádio na cidade”. Perguntamos: que grande estádio em nossos dias permitiria tal acontecimento? Nenhuma arena, com certeza. É preciso reconhecer que havia um ambiente muito distinto do atual, aquilo que temos conceituado em diversos artigos como “estádio das massas”, que se difundiu no Brasil sobretudo nos anos 1960 e 1970, propiciando amplo protagonismo popular. Estádio como festa e não como espetáculo. Lugar de inventividade, de fortes expressões e território do imprevisto, tal qual a súbita presença de um urubu no Maracanã (fato repetido em outras ocasiões, como em 1983 e 1984). Tema que, de tão debatido, dispensa maiores explanações nesta coluna.

Interessante registrar a profunda diferença entre aquele Maracanã e o atual. Com preços e ambiente sumamente populares, aquele estádio propiciava manifestações jocosas como a que narramos aqui, nela contendo a afirmação da negritude e da condição favelada de muitos dos torcedores rubro-negros. No Maracanã atual, a torcida do Flamengo que preenche os espaços às dezenas de milhares é basicamente branca e de classe média ou de patamar superior. A favela surge apenas como representação, e ainda assim sob a mira dos dirigentes do clube, que em fevereiro do ano corrente estranhamente vetaram o uso da expressão “festa na favela”, atendendo recomendações do pessoal de marketing do clube, conforme me lembrou o colega Fernando Ferreira. Torcedores protestaram, alegando preconceito e tal, mas o fato é que a favela está em nossos dias muito longe do Maracanã, sobretudo dos jogos do Flamengo, clube que tende a adotar valores mais altos para ingresso no estádio, sob constante alegação do elevado custo de seu elenco de jogadores.

Por fim, a terceira parte do título: a cidade no urubu. Qual cidade? O Rio de Janeiro de meio século atrás. Conforme contaram ao O Globo, os quatro rapazes residentes no sofisticado bairro do Leme “decidiram ir a um lixão localizado na Praia do Pinto, favela situada nas margens da Lagoa”. Não consta na matéria que a favela, naquele mesmo maio de 1969, mais precisamente na madrugada do dia 11, sofrera um incêndio de graves proporções e jamais explicado, destruindo mil barracos e desabrigando nove mil pessoas. Por sua localização privilegiada, a favela estava na mira do governo e dos grandes interesses imobiliários, e seus moradores recusavam a remoção que acabou enfim acontecendo, levando a maioria deles para distantes conjuntos habitacionais como Cidade Alta e Cidade de Deus.

Fomos lá na sexta anterior ao jogo e não encontramos nenhum urubu. Decidimos então ir para um outro lixão, no Caju (Zona Norte), à noite. Nada também. Então nos disseram que de manhã tinham mais de mil e voltamos lá no sábado. Com a ajuda de um gari rubro-negro, fizemos um laço com um lençol e capturamos um – relembrou Luiz Octávio. (O GLOBO, 01 jun. 2009).

Ninho do Urubu
Fãs prestam homenagem aos jogadores vítimas da tragédia no Centro de Treinamento do Flamengo, o Ninho do Urubu, ocorrida em 2019. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

A ausência de urubus na favela, fato decepcionante para os rapazes, pode quiçá ser explicada pelo enorme incêndio ocorrido menos de vinte dias antes da chegada dos visitantes rubro-negros. Imaginemos um cenário desolador naquela comunidade. Pois bem, decididos a fazer história, seguiram os rapazes para o Caju e, enfim, capturaram o animal. Começou uma saga cruel para o pobre animal:

O primeiro passo havia sido dado, mas ainda surgiriam outros obstáculos. No caminho de volta para a Zona Sul, dentro de um carro DKV, o urubu se livrou do lençol em que estava embrulhado. O jeito foi parar o veículo na Avenida Brasil (uma das vias mais movimentadas do Rio) e conseguir um saco. O animal reagia com bicadas. Mas acabou dominado. 

Após passar a noite no porão do prédio em que Romílson Meirelles morava, o pássaro foi levado para o Maracanã. Com o ‘convidado’ escondido em uma bandeira do Flamengo, entraram sem problemas no estádio. O objetivo era soltá-lo, com uma bandeira rubro-negra amarrada nas patas, quando os times entrassem em campo. Como bicava os seus ‘amigos’, o lançamento foi antecipado. (O GLOBO, 01 jun. 2009).

Muito pode ser debatido a partir dos fatos narrados, mas aqui nos deteremos à dimensão ética, relacionada ao respeito aos animais. Vimos nesta coluna, no mês de março, no Estádio Azteca, no México, a águia adestrada que sobrevoa o campo como espetáculo. Sem ignorar aspectos negativos, como o encarceramento dos bichos, trata-se de uma animal certamente bem alimentado, cuidado e treinado para aquela performance. No caso do urubu, uma fêmea, esta sofreu incontestável violência física e emocional. No dia seguinte ao grande jogo, a ave apareceu morta no antigo fosso do estádio. Morreu de inanição, segundo o jornal O Globo de 3 de junho de 1969. Acreditamos que uma boa dose de estresse deve ter contribuído para o óbito.

Vivíamos então, podemos ponderar, um nível de consciência ecológica muito diferente do atual. Também avançamos muito, desde então, no debate em torno do respeito aos animais. Aquele Rio de Janeiro de 1969 certamente permitia um grau muito maior de violência e indiferença para com os animais, de modo que o triste episódio parece não ter repercutido de forma tão impactante como o seria em nossos dias.

Para concluir estas reflexões sobre “uma cidade no urubu”, devemos considerar o cenário cultural e o futebol nessa dinâmica de significações. Na matéria, um dos jovens afirma que aceitar o urubu era ir de encontro ao preconceito sofrido por sua torcida: “O nosso objetivo era calar as torcidas adversárias, que ironizavam o fato da torcida do Flamengo ter muitos negros”. Negritude, favela, urubu, símbolos facilmente mixados numa narrativa racista e elitista começavam a ser combatidos pela nova geração, que vivia, de um jeito ou de outro, toda aquela contracultura dos anos 1960, que envolvia a valorização da negritude e a aceitação de novos símbolos, muito menos sóbrios e muito mais provocantes, como o urubu.


Fontes

https://rioquemoranomar.blogspot.com/2019/06/ha-50-anos-1-de-junho-de-1969-o-urubu.html

http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Memoria/0,,MUL971128-16319,00-URUBU+FAZ+ANOS+COMO+SIMBOLO+DO+FLA.html

https://extra.globo.com/esporte/flamengo/flamengo-veta-expressao-festa-na-favela-de-suas-redes-sociais-associado-violencia-23612039.html

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Maio 68: um urubu no estádio, um estádio na cidade e uma cidade no urubu. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 37, 2019.
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