O dia: 5 de Outubro de 2013; a ocasião: 27ª rodada do campeonato brasileiro de futebol da série B; o local: Estádio Maria Lamas Farache (Frasqueirão), localizado na cidade de Natal (RN); o jogo: ABC Futebol Clube (ABC-RN) versus Sociedade Esportiva Palmeiras; o destaque: poderia ter sido as duas belas viradas que ocorreram na partida, mas não o foi. Na ocasião, O ABC-RN, que havia inaugurado o marcador, sofreu a virada do Palmeiras por 2 x 1, ainda assim reagiu e reverteu o placar. A partida terminou em 3 x 2 a favor do time da casa.

No entanto, antes mesmo do apito inicial do árbitro, um fato já chamava mais atenção do que o jogo de futebol chamaria naquele dia: a superlotação do estádio. As arquibancadas estavam ocupadas de tal forma que, por questão de segurança, a polícia militar orientou alguns dos torcedores para que pulassem a grade que separava a torcida do campo. Ao ser abordado pela imprensa (clique aqui e veja o vídeo), após a resolução do incidente, o então técnico do ABC-RN, Roberto Fernandes, proferiu a seguinte citação, publicada no site globo.com:

[…] vai esperar acomodar todo mundo sentado para começar o jogo? Isso não é realidade, não é? Isso aqui não é Copa do Mundo ainda, nem é arena, é diferente, isso é estádio, não é arena.

Para os profissionais que trabalham diretamente com futebol (como técnicos e dirigentes), as diferenças entre estádios e arenas, bem como as normas de condutas que regem cada um desses espaços, parecem estar claras; mas e para os torcedores? Estes compreendem a lógica citada pelo técnico do time do ABC-RN de que arenas são projetadas para oferecer conforto, ao passo que os estádios não?

Foto da torcida do ABC no Frasqueirão. Foto: ABCdista – Wikipédia.

São muitos os motivos que fazem com que o estádio seja um importante espaço para o torcedor: a conquista de títulos por seus clubes do coração; a recordação de um grande ídolo que ali jogou; partidas marcantes; e, até mesmo, momentos de grande decepção, como o maracanazo da Copa de 1950. As emoções do espetáculo futebolístico vivenciadas nesses estádios são fundamentais para que se promova a perpetuação desses sentimentos na memória coletiva associada ao estádio. Assim, as mudanças propiciadas pela configuração de novos espaços e novos comportamentos do torcer, transcendem o espaço em si e exercem influencia na nação, cidade, bairro, família e no indivíduo.

Para se adequar aos padrões estabelecidos pela FIFA em função da Copa do Mundo de 2014, foi necessário que o país passasse por uma série de obras de infraestrutura urbana e de mobilidade, além da reforma e construção de novas arenas esportivas. A criação desses novos espaços fez com que a “vida” dos estádios estivesse muito além dos 90 minutos de uma partida de futebol. Estas arenas, de caráter multiuso, além de palcos futebolísticos, passaram a comportar shoppings, restaurantes, estacionamentos, cinemas, oficinas, museus, dentre outras possibilidades.

Acredito que os torcedores que frequentam os estádios têm seus comportamentos alterados em função de diferentes fatores, tais como: Importância do jogo, perigo representado pela equipe adversária, atuação do árbitro, volume de público, dentre outros. Esses fatores refletem na enunciação de cânticos de apoio ao clube (ou de repúdio ao adversário), emoções explicitadas e na fruição do espetáculo futebolístico de uma maneira geral. Os estádios de futebol são espaços peculiares que permitem determinadas práticas que são aceitas apenas naquele universo. Pode-se dizer que estar no estádio é quase como estar em casa.

Vista interna da Arena Mineirão. Foto: Portal da Copa.

No entanto, o processo de modernização dos estádios em conformidade com o “padrão FIFA”, acarreta na modificação dos comportamentos dos torcedores, e, nesse caso, de forma mais impactante, pois sua influência não se determina pelos fatores citados anteriormente, mas sim de maneira indeterminada, sob a lógica das novas tecnologias empregadas.

Tomando o Mineirão como exemplo, vê-se que câmeras de seguranças seguem os torcedores dentro e nos arredores dos estádios, monitorando cada passo. Concomitante ao suposto aumento do conforto e a segurança (um dos mais fortes discursos empregados), há a redução do público. Exemplificando, podemos citar o fato das arquibancadas de concreto terem perdido espaço para as cadeiras numeradas. Seria esse o conceito de conforto para o (novo) torcedor? Na realidade, há milhares espalhados pelo Brasil que são contra e defendem que as arquibancadas de concreto são melhores para torcer. Em coro com o samba enredo de Neguinho da Beija Flor (“Não quero cadeira numerada / Vou ficar na arquibancada / Prá sentir mais emoção”) esse pensamento soa quase como unânime. Não sem razão, esse enredo se tornou uma espécie de hino de várias torcidas pelo Brasil.

O brasileiro possui sua maneira de torcer e cada clube tem seu tipo peculiar de torcedor. Pela normatização do padrão FIFA não é mais possível a prática da famosa avalanche gremista; ou ainda (em parte) das tradicionais formas de se torcer das torcidas organizadas, notadamente mais efusivas e resistentes à lógica de assistir aos jogos em suas respectivas cadeiras numeradas. Por fim, assistir um Cruzeiro e Villa Nova com 132.834 presentes, como foi em junho de 1997, parece improvável atualmente, considerando que a capacidade atual do Novo Mineirão pouco supera os 62 mil lugares. No entanto, cabe acentuar que, embora haja um intento de se controlar o comportamento desses torcedores, este movimento não se dá de forma passiva, e comporta nichos importantes de resistências e tensões frente a estas mudanças.

Pensando que o campo do futebol se entrelaça a diversos contextos socais, se faz imprescindível estarmos atentos e sermos críticos dos fatores que a ele se relacionam, buscando garantir assim, a qualidade e continuidade das discussões sobre o tema.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Christian Matheus Kolanski Vieira

Graduado em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Mestrando no Curso Interdisciplinar em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) - UFMG.

Como citar

VIEIRA, Christian Matheus Kolanski. Estádios x Arenas. Ludopédio, São Paulo, v. 64, n. 1, 2014.
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