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Futebol gaúcho, futebol-arte, invenção de identidades

Há poucos dias o treinador do Grêmio de Football Porto-alegrense, Renato Portaluppi, foi perguntado se sua equipe não joga, hoje, fora das características históricas do clube e do futebol gaúcho. O Grêmio é um dos times mais interessante do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2017. Apesar de ter atuado em todo o primeiro turno sem seu camisa dez, Douglas, o toque de bola, as triangulações, a verticalidade nas infiltrações, fazem com que a equipe do Sul esteja na disputa real do título do torneio, assim como também do da Copa Libertadores da América. Neste caso, o conclamado espírito copeiro gremista se aliaria com alto nível técnico e boa dose de habilidade de seus jogadores. Os jogos da equipe, com a exceções de praxe, encantam os que gostam do futebol bem jogado.

PR - FUTEBOL/COPA DO BRASIL 2017/GREMIO X ATLETICO-PR - ESPORTES - Lance da partida entre Gremio e Atletico-PR disputada na noite desta quinta-feira, na Arena da Baixada, em Curitiba, valida pela volta das quartas de final da Copa do Brasil 2017. FOTO: LUCAS UEBEL/GREMIO FBPA
O técnico do Grêmio Renato Portaluppi passa instruções para a a sua equipe. FOTO: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Chama a atenção que se tenha evocado na entrevista uma identidade que não seria a do “jogo bonito”, do “futebol-arte”, mas a do “futebol-força”, de “pegada”, modelo que estaria mais próximo da prática do jogo no Uruguai e na Argentina. Um futebol do Sul da América. A identidade se constrói também naquilo que não é ou não parece ser, de modo que o futebol praticado no Rio Grande do Sul não seria, portanto, genuinamente brasileiro. É curioso que a perspectiva segundo a qual o futebol jogado no Brasil se aproximaria do bailado e da capoeira, tendo a ginga como princípio axial, nem sempre esteve presente. Há anos atrás colaborei com um trabalho de Thiago Lisboa Bartholo e Antônio Jorge Gonçalves Soares[1] que mostra que nos anos 1940 a interpretação era diversa: jornais brasileiros diziam que para vencer o selecionado argentino seria necessário jogar defensivamente, com grande dedicação tática, dada a habilidade sobressalente dos vizinhos. Eram tempos de La Maquina River, das excursões vitoriosas dos Millonarios à Europa, época em que provavelmente o melhor futebol do mundo era jogado na margem direita do Rio da Prata. Isso sem falar em Diego Maradona.

Também o futebol uruguaio pode ser muito técnico e bonito. Basta lembrar da vitória do Mundialito de 1980, em que entre outros figuraram Ruben Paz e Victorino, ou, mais recentemente, da vitória na Copa América de 2011 e do quarto lugar no Mundial da África do Sul, em 2010, com Luis Suarez e Diego Forlán. Há sempre repetição discursiva que gera a mesma mirada sobre os mesmos fenômenos, confirmando o que já se pensa sobre si, exemplos contrários e que descontinuam os discursos identificadores são vários.

O adversário por excelência do Tricolor Gaúcho é o Sport Club Internacional. O derby entre eles é conhecido como grenal e é visto no Sul como um campeonato à parte. Há o grenal do Século, o primeiro na Arena do Grêmio, o último no demolido Estádio Olímpico etc. A rivalidade é muito grande e o estado se divide em dois. Nos anos 1970, o domínio estadual foi do Inter, que foi octacampeão gaúcho, sequência que só em 1977 foi quebrada pelo Grêmio treinado por Telê Santana, o mesmo que brilharia sem título na seleção e com muitos títulos no São Paulo Futebol Clube. Antes, treinara o primeiro campeão nacional com o Clube Atlético Mineiro, em 1971.

04/03/2017- Porto Alegre- RS, Brasil- Campeonato Gaúcho: Lance da partida entre Grêmio e Internacional, disputada na noite deste sábado (04), na Arena. Foto: Lucas Uebel / Grêmio FBPA
Lance da partida entre Grêmio e Internacional, disputada em 2017, na Arena do Grêmio. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

O Colorado daqueles anos, tricampeão brasileiro, ficou conhecido pela condição física, obra, em grande parte, do fisicultor Gilberto Tim, depois alçado a preparador físico da seleção brasileira, com Telê. Era importante a questão tática, em que despontava a execução geralmente perfeita da linha de impedimento pela defesa comandada pelo chileno Elias Figueroa. Mas havia muita técnica em jogadores como Paulo César Carpegiani e Marinho Perez, Manga, Valdomiro e Batista. Havia Mário Sérgio, que olhava para um lado e passava para o outro, e que com o pé esquerdo dominava e lançava a bola como poucos. E havia um craque, Falcão.

Paulo Roberto Falcão foi um jogador excepcional. Habilidosíssimo, técnico, vertical, decisivo. Presenciei sua arte em campo uma única vez, no Estádio Orlando Scarpelli, em Florianópolis, em partida em que o Inter goleou o Figueirense no Nacional em 1976. Simpatizávamos com a equipe local, meu pai, meu irmão e também eu, apesar de minha primeira camiseta de time, não sei por que, ter sido exatamente a do Inter. O irmão que queria ver gols, e não saiu decepcionado. O artilheiro era Dario, o Peito-de-Aço que substituía o nove do ano anterior, Flávio Minuano. Dadá Maravilha marcou quatro dos cinco gols contra Figueira. Mas o craque, mesmo, era Falcão, que seria a grande ausência do plantel brasileiro na Copa da Argentina, em 1978. Dominando as duas intermediárias, principalmente a ofensiva, circulando entre as laterais e enfrentando com coragem a defesa adversária, jogava e fazia o time jogar. Não por acaso a dupla gaúcha Kleiton e Kledir Ramil, ao compor sua prece a Porto Alegre (Deu pra ti), diz “Que saudade da Redenção, do Fogaça e do Falcão”. O parque central da cidade, o professor de cursinho, compositor e político de esquerda, o craque. Em Porto Alegre, como depois em Roma, Falcão é rei.

O Grêmio não fica atrás. Ronaldo Assis, rebatizado de Ronaldinho Gaúcho, foi formado no Olímpico. Irmão de outro ótimo jogador do mesmo clube, Roberto Assis, Naldo, como era chamado nas categorias de base, sempre mostrou a tremenda habilidade que o tornaria o melhor do mundo, no Barcelona. Não houve futebolista brasileiro mais habilidoso nas duas últimas décadas. Teria Ronaldinho, e mesmo seu irmão, assim como Falcão, aprendido futebol no lugar errado, já que lá imperaria o futebol-força?

Mas não foram só os irmãos Assis que brilharam no time de origem alemã. No campeão gaúcho de 1977 despontou Ortiz, ponta-esquerda titular do selecionado da Argentina campeão em 1978; Éder foi decisivo nos anos seguintes, antes de ser o ponta-esquerda titular da mítica seleção de 1982. Mas podemos ir adiante e chegar a 1983. Campeão da Libertadores, o Grêmio contrataria o mesmo Mário Sérgio que fora campeão brasileiro em 1979 pelo Inter e Paulo Cézar Lima, a encarnação do futebol-arte, que jogou pelos quatro grandes do Rio de Janeiro. O objetivo era o Mundial de Clubes, disputado em partida única, no Japão, na forma de uma Copa Intercontinental. A partida foi contra o Hamburgo, vice-campeão europeu, e o time brasileiro venceu por dois a zero. Os gols foram de Renato, o mesmo que é hoje bom técnico do time.

Renato é provavelmente o maior ídolo do Grêmio. Foi um excelente jogador, talvez não melhor que Cristiano Ronaldo, como recentemente afirmou, mas muito técnico e habilidoso, ademais de rápido e forte. Foi grande atacante em tempos de Romário, Bebeto, Müller, Ronaldo, Edmundo, Careca. Destacou-se naquela final de Mundial, como igualmente acontecera na Libertadores, mas levou seu talento também para Flamengo, Botafogo e Fluminense. No Rio de Janeiro virou Renato Gaúcho.

Em 1990, de dentro de um ônibus que passava em frente Estádio Olímpico, em Roma, vi nele uma pichação que mostrava toda a mágoa dos torcedores do time em Falcão jogara, com Renato. Antes esperançosos, os tiffosi não perdoavam a decepcionante performance do brasileiro nos poucos jogos em que entrou. Mesmo fracassando naquela que era então a Liga mais disputada do mundo, o gremista não deixou de ser o grande atacante que foi.

Falcão e Renato, Inter e Grêmio, futebol gaúcho, futebol-arte.

Belo Horizonte, agosto de 2017.

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Escreverei nesta coluna a cada quinze dias. Unidos, memórias e futebol, demarcam-me afetivamente. Vou tratar do tema de forma ampla, sem passadismo, dedicando-me a diferentes artefatos e temas. Agradeço muito a Sérgio Settani Giglio pelo convite e a Wagner Xavier Camargo pelo incentivo para ocupar este espaço. O leitor sempre tem o direito de inalienável de ignorar ou de abandonar um texto. A leitura, as críticas e demais comentários serão, no entanto, sempre muito bem-vindos.

[1] O artigo [Alteridade privilegiada: confrontos futebolísticos entre brasileiros e argentinos na imprensa carioca (1939-1945)] pode ser acessado aqui mesmo no Ludopédio: http://www.ludopedio.org.br/biblioteca/alteridade-privilegiada-confrontos-futebolisticos-entre-brasileiros-e-argentinos-na-imprensa-carioca-1939-1945/

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol gaúcho, futebol-arte, invenção de identidades. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 5, 2017.
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