Foi discreta a reação frente à escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2027, decidida em 17 de maio em Congresso da FIFA na Tailândia. Será a primeira vez do torneio em um país da América do Sul, que já sediou várias versões do evento masculino, duas delas, inclusive, no país. Para conseguir o feito, a aposta foi na defesa da sustentabilidade propalada pelo governo atual, o desenvolvimento esportivo, a liderança feminina brasileira no futebol mundial e os direitos conquistados pelas mulheres – estes que ainda são pequenos se pensarmos nas dificuldades que encontram para, por exemplo, praticar a modalidade.

Para se ter ideia do imbróglio, no sábado dia 01 de junho, após o amistoso com a seleção da Jamaica, a jogadora Cristiane, de volta à equipe sob o comando de Arthur Elias, em preparação para os Jogos Olímpicos – que se lembre que a masculina não se classificou – comemorou as recentes conquistas anunciadas pela FIFA para as atletas que agora terão direito à licença-maternidade remunerada como medida obrigatória em todas as ligas nacionais filiadas à entidade, assim como também a permissão para se ausentaram de treinos e jogos durante o período menstrual, sem prejuízo à remuneração, entre outros benefícios. A experiente jogadora, que entrou em campo com o filho nos braços, emocionou-se, mas também vaticinou: “Felicidade (é o que eu sinto), e também é uma tristeza. Porque a gente está em 2024 e está falando disso só agora… Olha o tempo que a gente perdeu por coisas que são simples, simples para o nosso desempenho, ter o nosso filho próximo” .

Seleção feminina
Foto: Joilson Marconne/CBF/divulgação

A atacante tem razão em criticar a demora. O futebol feminino faz parte do programa da FIFA desde 1970, ainda que no Brasil tenha sido formalmente proibido até 1983. São 54 anos para discutir questões que já deveriam ter sido observadas há muito tempo. Prova disso são ainda as esparsas referências que a modalidade alcança no Brasil, ainda que com jogadoras como Marta, que foi considerada a melhor do mundo por seis vezes, cinco delas de forma consecutiva. Mesmo o país fazendo grandes resultados, ainda é um esporte marginal, vide a pouca visibilidade que a definição da sede teve. Ela repercutiu entre os que acompanham a modalidade, personalidades que debatem os direitos das mulheres, algumas jornalistas que reforçaram o avanço que terá a modalidade com a escolha, mas não na sociedade como um todo e foi em seguida esquecida.

Esse ainda é o lugar destinado para elas no país, em qualquer posição que ocupem. Há avanços, principalmente em relação à seleção feminina, com equiparação de salários e novas regras, como observou Cristiane. Mas o futebol no Brasil, e também no mundo, ainda é efetivamente masculino. A maioria dos técnicos, auxiliares, preparadores, árbitros, jornalistas, comentaristas, presidentes, são homens. Nos 16 times que disputam a série A1 do Brasileirão Feminino, são apenas 03 técnicas, mas 13 técnicos. São poucas as que furam a bolha, como a presidenta do Palmeiras, Leila Pereira, a árbitra Edna Alves, ou ainda um número ainda pequeno de comentaristas, jornalistas e narradoras que circulam pelo universo masculino da modalidade.

Leila é a primeira mulher a presidir o Palmeiras. É empresária, banqueira, advogada e jornalista. De acordo com a revista Forbes, é a quinta mulher mais rica do Brasil, com uma fortuna estimada em R$ 7,2 bilhões. Isso não impede que receba críticas, mas de certo modo a mantém protegida.
No dia 28 de abril comemorou em uma rede social a primeira vez na história em que uma partida do campeonato brasileiro masculino foi inteiramente comandada por arbitragem feminina, o confronto entre Internacional e Atlético Goianiense. Embora alguns comentários elogiassem a escolha da CBF, houve muito mais os negativos, escritos principalmente por homens, mas também por mulheres: “Na arbitragem eu acho bacana, mas na narração tem de ser 100% homens”; “Não acredito que a tia Leila é feminista” ; “Sou mulher, mas não gosto” ; “Não concordo, pois o futebol masculino é mais agressivo, e aí vamos ter um problemão e a narrativa vai ser ‘jogadores vão para cima de uma mulher enfurecidos’”; “Uma mistura que não vale a pena o risco”; “Só ladeira abaixo”, entre outros, ainda piores, jocosos em um nível muito baixo, como “E quem vai cozinhar, passar e limpar a casa?” Seriam as críticas tão animadas, e algumas mal-educadas, caso a conta fosse de um homem?

A mandatária do Palmeiras esteve no Senado Federal, para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Manipulação dos Jogos e Apostas Esportivas no dia 05 de junho, e de sua cadeira precisou ouvir a piada do senador Jorge Kajuru ao se dirigir à Margareth Buzetti (PSD-MT), membra da CPI e única senadora mulher participando da plenária: “Representando as mulheres, ela [Margareth] que gosta de futebol, normalmente mulher vai ao estádio e pergunta quem é a bola. Não é o seu caso”, afirmou. O senador teve a fala rebatida pela palmeirense: “Kajuru, hoje tem presidente de clube mulher”, disse ela, precisando lembrá-lo que o cargo mais alto de um clube que vem ganhando praticamente todos os títulos que disputa nos últimos tempos tem como principal dirigente uma representante do suposto “sexo frágil”.

Se Leila fez uma fala acertada contra o preconceito de gênero que sofre, e é uma voz importante que se levanta contra a estrutura masculinista do futebol, por outro lado, desliza feio ao praticar xenofobia, quando criticou o dono do Botafogo SAF, John Textor, que tem feito alegações sobre atos suspeitos em partidas da séria A de 2023, inclusive envolvendo o Palmeiras: “Eu não posso deixar um estrangeiro vir aqui pro Brasil, que perdeu um título, por incapacidade deles, por capacidade do Palmeiras. Ele precisa provar o que está dizendo”, finalizou. Sim, ele precisa provar o que diz, mas o fato de ser estrangeiro, como o excelente treinador do clube que dirige, nada tem a ver com isso.

A presidenta, infelizmente age de forma semelhante a seus agressores, atacando da mesma maneira que é atacada. Faz lembrar Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, que há quase oito décadas, em Dialética do Esclarecimento, apontaram para a falta de liberdade de uma sociedade impedida de refletir sobre si mesma, em que as vítimas de preconceito são intercambiáveis segundo a horda que lhes ataca: “vagabundos, judeus, protestantes, católicos” ou ainda mulheres e estrangeiros, afinal, “Na medida em que agridem cegamente e cegamente se defendem, perseguidores e vítimas pertencem ao mesmo circuito funesto”. Não há, nesse processo, sociedade, ou futebol em seu interior, que possa sair do círculo infernal da repetição e, de alguma maneira, se emancipar de seus próprios infortúnios.

Leila Pereira
Fonte: Wikipedia

Leila recebe olhares tortos e enviesados e críticas mais veladas porque fala de um lugar de grande poder oriundo do cargo que ocupa, mas também da classe social à qual pertence. Isso fica evidente, por exemplo, no fato de poderem viajar, ela e a delegação toda, no jato de sua propriedade, evitando torcedores enfurecidos que muitas vezes se colocam contra jogadores e dirigentes nos aeroportos. Quando deixar o cargo não terá problemas financeiros.

Muito provavelmente também terá um pouco menos de chance de sofrer assédio como acontece com várias mulheres no futebol. Para se ter uma ideia, uma jogadora das categorias de base de um grande time brasileiro, recentemente, teve uma parte de seu corpo tocada por um funcionário de uma empresa terceirizada que trabalhava no CT do clube. Reagiu indignada e informou o fato à técnica e à dirigente do quadro feminino que, verificando as câmeras, levaram o caso de assédio ao presidente, que prometeu que resolveria a questão. Após dois meses sem que funcionário fosse sequer afastado, reforçaram a necessidade de um posicionamento e tiveram como resposta, do próprio mandatário, o seguinte: “Vocês precisam entender também que é difícil. Eu entendo, tenho filhas e netas, mas é um instinto natural do homem”. Apesar disso, em seguida demitiu o funcionário.

Para finalizar, nos Jogos Regionais de futsal dos Joguinhos Abertos de Santa Catarina, disputado no Sul do estado, pôde-se ver a goleira de um dos times a todo momento se dirigindo aos fundos da quadra, onde há uma entrada para o ginásio. Gesticulava e dizia algumas palavras, estava preocupada, dividindo-se entre orientar sua equipe, defender a meta e algo que acontecia fora da quadra. Ela falava com seu filho que estava – como toda criança feliz nos ginásios – correndo e brincando pelos corredores, mas também se dirigindo ao espaço externo, onde já não estaria sob os olhos da mãe. Preocupada, pediu, gritou, que ele ficasse lá dentro ou ligasse para o pai, ao mesmo tempo em que, imediatamente, defendia uma bola. Nada mais ilustrativo dos pequenos ou grandes percalços, como queiram interpretar, das jornadas das mulheres no esporte ainda em 2024.

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Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

TORRI, Danielle; VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol, sociedade, mulheres: passos lentos. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 15, 2024.
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