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Gillian Lynne e a educação de crianças pela dança

Wagner Xavier de Camargo 3 de julho de 2022

No último dia 01 de julho completou quatro anos que o mundo perdeu Gillian Lynne, uma ex-bailarina britânica e excepcional coreógrafa, que viveu uma vida ativa no meio artístico, com muito reconhecimento e fama.

Mas não é sobre isso que quero falar, em que pese a trajetória de Lynne seja digna de um texto sobre seus melhores feitos enquanto profissional. Quando ela tinha por volta de 7 anos de idade acabou vivendo uma história curiosa.

Sua mãe foi chamada pela escola porque a pequena Lynne não queria ficar sentada, falava pouco e demonstrava certo nervosismo. Além disso, distraia-se com barulhos externos e não anotava as lições. Todos os professores a colocavam de castigo, naqueles famosos cantos apartados da sala de aula.

Lembremo-nos de que a escola naquele momento, e muito mais do que hoje, determinava a passividade do aluno (aprendiz) perante o professor (sábio que ensinava). O processo de ensino-aprendizagem era unidirecional e o mestre era a “fonte de informação”.

Em casa, a mãe a castigava com frequência, pelo mal desempenho na escola e por não entender o que se passava com Lynne. E, com receio de que a menina pudesse ter alguma doença ou distúrbio, levou-a ao médico.

A década de 1920 revolucionava tratamentos na área da medicina, bem como foi um tempo em que as vacinas começaram a aparecer em grande quantidade, particularmente contra tétano, tuberculose, difteria e coqueluche.

Os antibióticos (inclusive os extraídos da natureza) estavam sendo sintetizados por cientistas e, como dizem Ujivari e Adoni (2014), os anos 1930 foram os da melhora substantiva na vida das pessoas e, não por acaso, a mortalidade geral da população despencou nestes anos.

Depois das explicações da mãe de Lynne, o médico sugeriu uma conversa em privado com ela, porém fora do consultório. Antes de saírem, no entanto, ele ligou o rádio que ficava no canto de uma estante antiga e deixaram a pequena Lynne a sós.

Em poucos minutos, e observando pelo pequeno vidro na parte superior da porta da sala, notaram a garota se movimentando lentamente em consonância com a música que ecoava do rádio. O médico, então, expressou à mãe que ali não havia doença alguma e que ela deveria matricular Lynne numa escola de dança.

A menina simplesmente dançava e dava vazão a uma das expressões mais singelas que é o movimentar do corpo em sintonia com a música ou a partir dos sons do mundo externo. O rádio que veiculava algumas músicas ainda era uma novidade naqueles anos e nem todo mundo tinha acesso a ele.

E a própria dança contemporânea traçava seus primeiros caminhos com Rudolf Laban, grande nome que estava no auge de sua carreira e influenciando muitos lugares e inúmeras gerações pela Europa (ARRUDA, 1988).

Gillian Lynne
Gillian Lynne no The Olivier Awards. Fonte: Daniel Deme/WENN.com/Wikipédia

Lynne logo foi descoberta pelo público a partir do espetáculo “A Bela Adormecida”, performance realizada no The Royal Opera, um dos lugares mais famosos de óperas e espetáculos em Londres, Reino Unido.

Enquanto a Segunda Guerra acontecia, ela dançava. Contra os tempos obscuros e as maldades humanas, materializadas nos combates no teatro europeu do conflito, Lynne lutava pela possibilidade de dançar, muitas vezes se desviando de bombas que caíam sobre a capital londrina. Este percurso está lindamente registrado na autobiografia A Dancer in Wartime (Uma bailarina nos tempos de Guerra, em tradução livre), de 2012.

A disciplina de Educação Física já era uma realidade em vários países do mundo. Apesar de ter inserido a ginástica em seu programa educacional, sempre foi reticente à dança enquanto um de seus conteúdos. Até hoje tal resistência permanece.

Como bailarina continuou brilhando em vários trabalhos até ser convidada para atuar como coreógrafa no musical Cats, da Broadway. Com o estrondoso sucesso, mais tarde também coreografaria a montagem de O Fantasma da Ópera. Esses dois trabalhos a deixaram ampla e internacionalmente conhecida.

A história e a trajetória de Lynne nos mostra, ao menos, duas coisas fundamentais: a) a educação de crianças passa por uma educação do corpo que se movimenta e, portanto, a educação delas pode também passar pela dança enquanto cultura corporal; b) comportamentos em sala de aula, que são diferentes dos padrões, não necessariamente devem ser corrigidos ou enquadrados.

A garota Lynne mostrou que outros modos de apreender a realidade são possíveis e que o corpo que se movimenta está mais próximo da criatividade do que da doença.

A dança como é um dos componentes da Educação Física atual deve estar dentro da sistematização da educação oferecida para jovens estudantes, independente de suas faixas etárias e condições sociais.

Para quem se interessar:

ARRUDA, Solange. Arte do Movimento: as descobertas de Rudolf Laban na dança e ação humana. São Paulo: Parma, 1988.

LYNNE, Gillian. A Dancer in Wartime: the touching true story of a young girl’s journey from the Blitz to the Bright lights. London: Penguin Random House, 2012.

LYNNE, Gillian. Full Biography. Disponível em <http://www.gillianlynne.com/book.htm>

UJAVARI, Stefan Cunha; ADONI, Tarso. A história do século XX pelas descobertas da medicina. São Paulo: Editora Contexto, 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Gillian Lynne e a educação de crianças pela dança. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 3, 2022.
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