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Heróis Malandros. Heróis malandros?

Foi Gilberto Freyre quem, em 1938, estabeleceu a forma canônica da suposta superioridade do estilo brasileiro no seu artigo de jornal “Foot-ball mulato”, onde argumentou que as qualidades da astúcia e a espontaneidade individual seriam expressões do mulatismo do nosso futebol. Na época, o antropólogo se referia principalmente a Leônidas da Silva. Seguindo o mesmo mote do seu clássico Casa Grande e Senzala, Freyre deposita na miscigenação a explicação para nossa “superioridade” futebolística.

O êxito desta narrativa se estabeleceu junto com o livro de Mário Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, com primeira edição de 1947 e segunda de 1964, bem pelo fato de o Brasil ter formado seleções extraordinárias entre os anos 1950 e 1970, tendo vencido, no período, três Copas do Mundo.

Desde então, a imprensa do nosso país aciona instrumentos diferentes dos que usa para comentar as partidas dos campeonatos locais para analisar e “julgar” a seleção brasileira. Nos campeonatos locais, o discurso em torno do campeão se utiliza de termos como “regularidade”, “determinação” e “competência”. Já o discurso em torno da seleção brasileira vai buscar elementos como “arte”, “espontaneidade”, “astúcia”, todos eles presentes no artigo de Freyre. Isto porque, ainda que possamos observar certo declínio da metáfora “pátria de chuteiras”, a seleção ainda conserva algo de sentimento de nação. Por isso, quando ela está disputando Copas do Mundo, a imprensa busca traços de uma suposta “brasilidade” em seu estilo de jogo.

Uma hipótese que merece investigação seria a de que, no Brasil, de uma forma geral, tendemos a cultuar heróis “malandros”, que conseguem o sucesso sem muito esforço. Temos uma tradição literária neste tema, começando por Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida até o consagrado Macunaíma de Mário de Andrade. Nas ciências sociais, o antropólogo Roberto DaMatta analisou o “malandro” Pedro Malasartes no seu clássico Carnavais, Malandros e Heróis. No futebol, chega a ser uma crítica contundente chamar um jogador de “esforçado”. Podemos ainda citar a seleção brasileira que conquistou o tricampeonato em 1970. Ela é idealizada como uma equipe que não precisava treinar. No entanto, temos evidências de que aquela seleção se utilizou de métodos de preparação física dos mais modernos da época. Privilegiaríamos narrativas que falam de êxito sem a ênfase no esforço?

No entanto, quando falamos do ídolo mais festejado da década de 1980 – Zico – encontramos uma narrativa mais próxima da ordem, do profissionalismo e do “esforço”. Sua biografia é antagônica a de Romário, ídolo mais festejado na década seguinte. Porém, mesmo Romário, quando parou de jogar disse, em entrevista, que ele sempre treinou, apesar de não gostar de treinos. Esta fala não foi levada em conta pela imprensa que não a destacou em nenhum lugar.

Romário concede entrevista. Foto: Luiz Pires – VIPCOMM.

E o que dizer de Pelé? Sua biografia o destaca mais como um rei apolíneo, diferente da de Maradona, mais “dionisíaca”. Não estaríamos aí diante de uma contradição? Se no Brasil temos uma tendência a cultuar heróis “malandros” por que Pelé, nosso “Rei”, não se enquadraria neste modelo? Pode ser que estejamos em uma área de tensão entre dois modelos e que a oposição entre apolíneo e dionisíaco, tal como colocada por Freyre em seu artigo de 1938, leve a interpretações conflitantes por serem seus indicadores amplos e indefinidos. Se tenderíamos a cultuar heróis mais “dionisíacos”, por que ao tratar de Zico, a imprensa teria abandonado o discurso “malandro” e optou pelo da “ordem” , mais “apolíneo”? O mesmo parece ocorrer com Pelé, o Rei do futebol. Seriam exceções que confirmariam a regra? Ou ambas as vertentes são possíveis no Brasil?

Como sugeriu o antropólogo Hugo Lovisolo, estas são questões boas para reflexão. Eu acrescentaria que são ainda melhores para ser pensadas em um momento de julgamento do Mensalão, onde o resultado final nos mostraria que nem tudo neste país acaba em “samba”, universo, por excelência, do “malandro”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Heróis Malandros. Heróis malandros?. Ludopédio, São Paulo, v. 44, n. 6, 2013.
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