05.4

História, memória e futebol

João Paulo Streapco 20 de novembro de 2009

Recentemente, um grupo de discussão criado na internet com o propósito de preservar a memória e a literatura do futebol protagonizou um importante debate que interessa aos historiadores, jornalistas e torcedores sobre o caráter da memória e da história do futebol. Este artigo pretende, a partir das discussões decorrentes desse debate, apresentar alguns aspectos dos termos história e memória que podem ser levados em consideração por todos que pleiteiam trabalhar ou estudar a história do futebol no Brasil ou no mundo.

DSC01694
O episódio deflagrador do debate.

No início de março, o programa Grandes Momentos do Esporte da TV Cultura de São Paulo apresentou uma edição comemorativa dos 40 anos da partida entre Sport Club Corinthians Paulista e Santos Futebol Clube, que acabou com um jejum de 11 anos sem vitórias corintianas no clássico.

Na mesma semana em que o programa foi ao ar, completavam-se 30 anos da conquista do primeiro Campeonato Brasileiro do São Paulo Futebol Clube. O título foi disputado em março de 1978 contra o Clube Atlético Mineiro, mas referente ao Campeonato Brasileiro de 1977. Não houve qualquer menção à conquista tricolor durante o programa.

Um dos participantes do grupo de discussões chamou a atenção de todos para o acontecimento, criticando a postura dos responsáveis pelo programa, de priorizar como grande momento do esporte uma partida que não definiria o resultado de qualquer campeonato, enquanto relegava ao esquecimento a primeira conquista nacional do São Paulo. Segundo o mesmo participante, esta seria mais uma prova da militância midiática a favor do Corinthians.

As repercussões foram imediatas, e, em alguns casos, injuriosas e ofensivas ao caro colega. Em outros, apoiavam-no.

Os argumentos levantados pelo colega se baseavam numa idéia de que a objetividade dos fatos condiciona a produção da memória ou dos programas de TV que tratam dela. Assim, toda partida que decide um campeonato seria necessariamente mais importante que as partidas intermediárias, a conquista inédita de um título seria necessariamente mais importante que todos os outros e as vitórias, conquistas e gols os verdadeiros grandes momentos do futebol.

Objetividade e subjetividade em história. E por que não em jornalismo?

O desenvolvimento do debate mostrou a confusão que existe quando falamos de história e memória, e as relações que essas estabelecem com as idéias de objetividade e subjetividade. Mais ainda, mostrou que a proposta de estudar e preservar a memória/história do futebol ainda é mais sedutora aos que não são historiadores de ofício, e sim historiadores amadores e/ou jornalistas.

Outro aspecto interessante foi apresentar um tema de reflexão comum da historiografia e do jornalismo: o fato. Em tempo, segundo o Novo Dicionário Aurélio, o significado do termo é: 1. Coisa ou ação feita; sucesso, caso, acontecimento, feito. 2. Aquilo que realmente existe, que é real.

Para defender a objetividade dos fatos, o colega apresentou uma afirmação repetida por quase todos do meio jornalístico, que todo jornalista deve se ater àquilo que os fatos apresentam em si mesmos, não devendo emitir opiniões sobre o tema. O que não se apontou é que a escolha de todo tema publicado ou investigado por um jornalista é em si, uma escolha subjetiva, que diz respeito ao jornalista, à sociedade em que ele vive ou à empresa midiática que lhe contrata. Nenhum jornal publica todos os fatos que ocorreram num determinado dia ou semana numa comunidade, sociedade ou no mundo. Existe uma seleção prévia que é, portanto, subjetiva.

Isso não exime o jornalista, assim como o historiador, do compromisso com a veracidade dos fatos (aí entra a ética). Mas nos leva a consciência de que todos os jornalistas e historiadores são atores políticos, e os frutos de seus trabalhos não são politicamente isentos. Portanto, não existe isenção quando falamos de jornalismo e história.

Transformar um fato jornalístico em fato histórico também não é um ato isento e objetivo. Assim como o jornalista, o historiador trabalha movido por circunstâncias que são subjetivas, e quando elege um fato como histórico, realiza um procedimento que é parecido ao do jornalista, quando leva ao conhecimento do público um determinado fato. O historiador não trabalha em decorrência do fato, não é o fato que determina sua escolha. Pelo contrário, as demandas da sociedade em que vive o historiador (e o jornalista) condicionam seu olhar para o passado. Essas demandas podem ser de ordem política, econômica, social ou mesmo cultural. As possibilidades são múltiplas.

História e memória

Aqui cabe discutir o significado dos termos história e memória, na medida em que são coisas diferentes, mas muitos as confundem.

Quando falamos em história, devemos levar em consideração que o termo se origina na Grécia Clássica (segundo o historiador francês Jacques Le Goff, do grego antigo em dialeto jônico, historie significa “procurar”) e atualmente se desdobra em três significados (na língua portuguesa e outras línguas derivadas do latim; nas germânicas é um pouco diferente): história como relato de vida de indivíduos e de sociedades (algo parecido com memória, mas não a mesma coisa), a ciência que estuda estes relatos e narrativas literárias.

Interessam-nos neste artigo os dois primeiros significados, pois quando nos propomos a criar um grupo que discute a preservação da memória do futebol, estamos falando na manutenção de documentos que relatem a vida dos indivíduos, clubes e federações que participaram e organizaram campeonatos de futebol ao longo do século XX e início do XXI, e permitam à cientistas (historiadores) estudarem estes relatos, investigarem a importância destes fatos para a sociedade em que vivem.

Em relação à memória, a caracterização mais comum é como mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimento e experiências. A partir desta caracterização surgem algumas confusões como a que afirma que a memória é algo concreto, definido, cuja produção e acabamento se deram no passado e que o grande trabalho daqueles que trabalham com o tema seria trazê-la ao presente.

Outra confusão diz respeito ao discurso de que a memória corre o risco de se desgastar, como um objeto friável, submetido a uma ação abrasiva e por isso teria de ser constantemente restaurada e preservada.

Pela definição exposta sobre memória, como mecanismo de retenção e registro de informações, passa por um processo semelhante ao do jornalismo e da história, na medida em que é obrigada a selecionar aquilo que deve ser registrado e retido. Este registro/retenção não se dá no passado quando o determinado objeto da memória foi produzido, mas no presente, quando uma determinada sociedade decide preservá-lo e transformá-lo em depositário da memória social. E o registro de alguns fatos implica no esquecimento de outros que perdem importância.

História e memória não são a mesma coisa, mas apresentam algumas características comuns: são frutos das indagações que as sociedades e os historiadores fazem no presente e são atividades intelectuais subjetivas.

Justificando o programa

Quando o programa Grandes Momentos do Esporte escolheu sua pauta, baseou-se em alguns aspectos conhecidos de corintianos, são-paulinos e demais torcedores: nunca foi tão difícil para a equipe corintiana ganhar de um adversário como o Santos de Pelé. Talvez, nunca tenha existido um jejum tão longo envolvendo os grandes times de São Paulo. Logo, seu fim é um grande momento esportivo, digno de atualização constante através da memória.

Já o título são-paulino de 1977 perdeu sua importância porque a equipe são-paulina protagonizou outras disputas que ganharam contorno épico e que dentro desse processo de seleção da memória, ocupam o lugar daquele título brasileiro na memória tricolor. Alguém tem dúvidas sobre qual título é mais importante? O primeiro título da Libertadores ou o primeiro título do Brasileirão? Dentre os títulos Brasileiros, existe algum que seja mais digno de memória do que aquele contra o Guarani, em 1986?

Trabalhar com memória e história é ter consciência de que selecionamos aquilo que deve ser preservado. Essa seleção se dá no presente e implica no esquecimento de muitos eventos (mais do preservamos), trata-se de uma operação intelectual subjetiva envolta nas tramas políticas, sociais, econômicas e culturais que envolvem seus produtores.

Bibliografia
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras, Celta Editora, 1993.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora Unicamp, 2006.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros nº34. São Paulo, 1992.

VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo, Hucitec, 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

João Paulo Streapco

Mestre em História Social pela FFLCH - USP, onde apresentou a dissertação intitulada "Cego é aquele que só vê a bola. O futebol em São Paulo e a formação das principais equipes paulistanas: S.C. Corinthians Paulista, S. E. Palmeiras e São Paulo F. C. (1894 - 1942)."

Como citar

STREAPCO, João Paulo. História, memória e futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 05, n. 4, 2009.
Leia também:
  • 24.4

    Os donos da bola são os donos da memória futebolística brasileira?

    João Paulo Streapco
  • 08.4

    Algumas referências históricas sobre estádios de futebol em São Paulo

    João Paulo Streapco
  • 07.1

    Como o acervo de um clube pode contribuir na produção de conhecimento histórico

    João Paulo Streapco