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Histórias cruzadas: o Muro de Berlim, os esportes e eu

Wagner Xavier de Camargo 3 de novembro de 2019

O próximo dia 09 de novembro marca 30 anos que o Muro de Berlim se foi. Na verdade, diante dos ventos de mudança que atingiam o final dos anos 1980, da fase terminal do período de disputa entre as superpotências econômicas da época, Estados Unidos e União Soviética, e das transformações inerentes do curto século XX (para lembrar do historiador inglês Eric Hobsbawn), nem o Muro aguentou. Ele ruiu antes mesmo de ter caído de fato. No meio da gritaria e do alvoroço na fatídica noite de 09 de novembro de 1989, os guardas só entenderam que era para abrir as fronteiras. E, em poucos minutos, havia um bando de gente apinhada no Muro que dividia a cidade de Berlim ao meio. Pás, picaretas e martelos esculpindo a liberdade foram as imagens que todos vimos pela televisão, nos dias subsequentes.

Queda do Muro de Berlim. Foto: Reprodução/Pinterest/Slide Share.

Eu era um jovem raquítico de 15 anos. Em minha concepção, era “comunista” desde que minha professora de História do antigo ginásio tinha me explicado sobre isso em aula. Ideias interessantes de igualdade e coletividade, pensava. De minha parte, tendo vindo de uma escola pública, em 1989 ingressei via bolsa de estudos em um colégio particular e, por ironia do destino ou não, tive que estudar alemão como matéria obrigatória. Por mais contraditório que pareça, começou aí minha identificação com a língua. Na época, cheguei a sabê-la mais do que o tal inglês, que me perseguia por anos e com o qual não tinha boa relação.

Por causa também das aulas de história eu me interessava por esporte, mas só no nível da apreciação. Nada de praticá-lo. “Morte ao esporte”, repetia com convicção. Lembro-me de que, como adolescente, considerava o esporte alienante e um mecanismo que usava as pessoas como massa de manobra. Tantos exemplos vi nos dois Jogos Olímpicos dos anos 1980, Los Angeles e Seul, que desacreditava no fenômeno. Particularmente na Coréia do Sul, veio a decepção. Vários atletas dopados foram pegos em exames de urina. Ben Johnson, o canadense medalhista dos 100 metros rasos que virou meu ídolo então derrubando o mito Carl Lewis, não ficou 2 dias com a medalha no peito. Doping confirmado. Esse tal de doping, para um garoto pré-adolescente, era o mal do século.

Berlim esteve muito tempo separada em Ocidental e Oriental pelo Muro. Obra dos soviéticos socialistas, que em 1961, temendo uma fuga em massa de alemães orientais para Berlim ocidental e mesmo para outras partes da Alemanha mais a oeste (ocupada por países capitalistas que venceram a Segunda Guerra), trataram logo de enclausurar sua porção e estabelecer uma fronteira, inclusive com rígido controle de passagem. Como podia o socialismo fazer isso com as pessoas, indagava em silêncio. Mais tarde fui entender que tanto o capitalismo do bloco liderado pelos Estados Unidos, quanto o socialismo real implantado pela União Soviética em vários países apenas queriam fatiar o mundo em áreas de suas influências.

Nos Jogos de Seul, em 1988, havia observado a Alemanha Oriental ser vice-campeã no quadro de medalhas. Mais de 100 delas, não me lembro a quantidade. Havia visto a alemã Kristin Otto, uma alta loira esquálida, arrematar seis medalhas só para si na natação. Os jornalistas televisivos comentaram, a partir do feito, que foi a primeira vez que uma mulher atingira uma marca dessas na história das Olimpíadas. Isso gerou o tema de um trabalho na disciplina de História Geral, ainda no final da então 8ª série. Agora penso que essas referências me influenciaram na língua, que comecei a aprender no ano seguinte.

Kristin Otto em 1984. Foto: Wikipedia.

O Muro de Berlim era o símbolo da Guerra Fria, um período de ameaças simbólicas entre as superpotências capitalista e socialista, no qual a tecnologia e a militarização cresciam dia a dia. Tanto EUA quanto URSS distribuíam recursos financeiros para países com o propósito de armá-los. Conflitos pipocavam, aqui e acolá. Os Jogos Olímpicos deste sintomático período foram os mais acirrados da história do esporte moderno. Cada medalha contava e cada expressão esportiva era computada num quadro esportivo de resultados. Quem se mostrasse superior na quantidade de medalhas, mostrava que o sistema socioeconômico era o melhor. Atletas de países capitalistas tentavam; os do lado socialista também.

Em 1999 ganhei de presente de aniversário o livro O Verde violentou o Muro, de Ignácio de Loyola Brandão. O livro era sobre Berlim e já estava quase na 10ª edição. A obra dizia de um tempo que o literato tinha passado na cidade, ainda na época do Muro, financiado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). A vida na Berlim dividida, seus bairros (Bezirke) e seus habitantes chamados de Ossis (orientais) e Wessis (ocidentais), suas bicicletas, o parque Tiergarten, as rotas dos trens, os sons da cidade e mesmo as áreas turísticas se fossilizaram em minha memória de tanto que li o livro. Desejava, então, viver em Berlim! Voltei muitas e muitas vezes ele, sempre descobrindo algo novo na cidade. Cheguei até à ousadia de presenteá-lo (mesmo em português) a um amigo alemão, anos mais tarde.

Estima-se que a excelente campanha da Alemanha Oriental em todos os Jogos Olímpicos (de Verão e Inverno) de fins dos anos 1960 até 1988 tenha relação com a dopagem dos atletas. Eram usados distintos métodos, como a administração de esteroides anabólicos, prescrição de drogas injetáveis (particularmente testosterona) e mesmo métodos como gravidez involuntária seguida de aborto para potencializar o rendimento dos corpos de mulheres. Com o tempo, passei a entender o contexto como datado e o esporte ingressou em minha vida para nunca mais deixá-la. De atleta a estudioso, ele me acompanha até hoje.

Nesse tempo depois que o Muro caiu, então, muita coisa aconteceu no mundo, em Berlim e mesmo em minha vida. A multipolaridade se instalou, com o domínio comercial dos blocos econômicos, liderados pelos EUA. Berlim se unificou, destruiu o Muro, se reconstruiu como cidade, mudou seus espaços e desde há alguns anos, reconstrói partes do fatídico monumento para visitação turística (dados oficiais de 2010 da Secretaria da cidade colocavam a área de Bernauer Straβe, onde ainda havia parte do Muro, como o lugar mais visitado). Eu finalizei minhas formações acadêmicas e estudei (muito) o alemão. Em 2009 obtive uma bolsa de estudos do mesmo DAAD para um estágio doutoral na cidade.

Fachada do prédio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Foto: Wikipedia.

Este texto tece uma relação entre minha vida, o Muro de Berlim e os esportes. Propositalmente, ele não terá fim, porque a comemoração da ruína da opressão das liberdades nunca cessará! Ou ainda porque continuaremos a comemorar a queda de muros, reais ou invisíveis, que separam famílias, pessoas, regimes políticos e mesmo conhecimentos. Num mundo que insiste no conservadorismo como opção e (ainda) na construção de muros, que mobilizemos sempre nossas picaretas e martelos imaginários ou reais. Um viva aos 30 anos da Queda do Muro de Berlim! Que ele seja lembrado por sua história, mas principalmente que funcione em nossas memórias como um tempo que não volta mais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Histórias cruzadas: o Muro de Berlim, os esportes e eu. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 4, 2019.
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