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João Etzel Filho: o monarca dos empates

Leo Lepri 23 de maio de 2020

Série Copa Puntero traz 11 perfis de personagens que passaram pela história dos Mundiais; no segundo episódio, o árbitro que escalou Garrincha na final de 1962

Ilustração: Deborah Santiago Guimarães.

Em março de 1962, uma delegação brasileira desembarcava no Chile. O objetivo principal era ver onde que o escrete nacional iria se instalar para jogar a Copa do Mundo daquele ano. Dois anos antes, o país foi abalado por um dos piores terremotos da história, 9,57 graus na escala Richter — o tremor provocou a morte de 5,7 mil pessoas, e arrasou cidades como Talcahuano, Chillán, Concepcion e Valdívia. A frase “como não temos nada, tentaremos fazer de tudo”, do dirigente Carlos Dittborn, virou um lema chileno: o país foi escolhido como sede quatro anos antes desse grande desastre natural, e ainda assim estava determinado em mostrar, no Mundial, que poderia superar os danos.

No dia 29, o árbitro paulista João Etzel Filho chegava em Campos do Jordão para apitar o jogo da Seleção Brasileira, ao lado de João Havelange, então presidente da CBD, e do presidente do Instituto Brasileiro do Café, Sérgio Frazão. Dois dos goleiros principais da Seleção não atuavam: Gilmar quebrou a ponte móvel e Castilho tratava uma luxação no dedo. Para substituí-los, Pelé atuava no gol. “É um craque em qualquer posição”, dizia Sérgio Gomes, do Jornal dos Sports. O time treinado por Aymoré Moreira se preocupava muito com as lesões — craques como Chinesinho e Quarentinha estavam no departamento médico. Era muito importante que a arbitragem fosse de confiança, para que ninguém se lesionasse.

“O governo federal deu uma verba de 20 milhões; o IBC, de sua parte, destinou 30 milhões; 17 milhões serão oferecidos por industriais de São Paulo. Até aí já temos 67 milhões que, somados à minha modesta contribuição de 5 milhões, atingiremos, nessa altura, 72 milhões. Se forem realizadas as duas exibições, chegaremos a 80 milhões”, afirmava Paulo Machado de Carvalho, vice-presidente da CBD. As “duas exibições” eram amistosos em São Paulo e no Rio Grande do Sul, bancados por barões das indústrias locais. Para Machado de Carvalho, o valor apenas cobriria a despesa do escrete no Chile. Em valores de março de 2018, 80 milhões de cruzeiros são R$ 2,485 milhões. “O nosso plano é evitar que a CBD tenha qualquer despesa com o scratch”, disse o então vice-presidente.

Vestindo as camisetas do Instituto Brasileiro do Café, o time azul venceu o amarelo por 3 a 2. Pelé jogou no time amarelo e Garrincha, no azul, despistando a todos. Mais de 6 mil pessoas assistiram ao time, e a arrecadação da partida passou de 1,5 milhão de cruzeiros, garantindo uma boa verba para o árbitro. Dias depois, Etzel Filho estaria no Pacaembu, como auxiliar, na vitória sobre o Paraguai por 4 a 0 — uma das “exibições” citadas por Machado de Carvalho que precisavam acontecer para cobrir as despesas. Também foi auxiliar na vitória contra Gales por 3 a 1, no mesmo Pacaembu. Meses depois, estaria no Chile, como representante da arbitragem brasileira na Copa do Mundo.

A denúncia

Nas duas partidas, o outro bandeirinha foi Olten Ayres de Abreu. Nascido em Mossoró, era advogado, professor, árbitro e conselheiro do São Paulo Futebol Clube. Olten, que morreu em 2015, era pai de Denise Abreu, ex-diretora da ANAC, fundadora do Partido da Mulher Brasileira (PMB) e secretária de iluminação pública do governo de João Doria na capital paulista.

Olten, em 2010, fez uma revelação bombástica: João Etzel Filho teria feito parte de um esquema para que Garrincha pudesse jogar a decisão da Copa do Mundo de 1962.

Na época, não havia suspensão automática. Após ser expulso na semifinal, contra o Chile, Garrincha precisaria passar por um julgamento para que a Fifa decidisse o seu destino. A expulsão aconteceu por uma agressão de Mané, maior estrela daquela Copa, ao chileno Eladio Rojas. Só uma pessoa testemunhou a agressão: o auxiliar uruguaio Esteban Marino.

“Ele bateu com o peito do pé no traseiro do Rojas. Não foi grave”, disse ao Sportv, em 2012, o jornalista Argeu Affonso, testemunha ocular da partida.

O vídeo mostra que a agressão foi uma molecagem de Garrincha. A expulsão, entretanto, era imperiosa: Garrincha não poderia jogar a final contra a Tchecoslováquia. Aí começa o episódio contado por Olten Ayres de Abreu.

“O João Etzel pegou 10 mil dólares, na época era muito dinheiro. Deu para o Esteban Marino a mando dos dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol. Eu encontrei com o João Etzel depois e ele me falou: fui eu que ganhei a Copa do Mundo, fui eu que peguei os 10 mil dólares e levei para o Esteban Marino” — disse Ayres, em entrevista ao Sportv.

João Etzel Filho havia morrido 23 anos antes da denúncia. Nascido em Budapeste e naturalizado brasileiro, ele faleceu em 1988, aos 73 anos de idade, vítima de um infarto do miocárdio. O seu obituário na Placar da época não é nada abonador.

“Eu era um operário que, como todos os outros, aproveitava as folgas aos domingos para dar meus passeios. Um dia acabei em um campo de várzea, lá no Brooklin, e fiquei vendo um jogo. Lá pelas tantas sacaram o juiz e pediram para que eu apitasse o resto do jogo”, afirmou ele em entrevista ao Estadão, em 1979. Etzel apitou por 27 anos, até 1963. Depois, foi comentarista da rádio Jovem Pan.

Os jogos

Além de ser figura carimbada do futebol brasileiro, Etzel ainda estava presente nas mais importantes decisões. Também em 1962, ele foi o auxiliar de Santos x Peñarol, final da Libertadores da América. O árbitro, na ocasião, foi o holandês Leo Horn, com quem ele também dividiu o apito na partida entre União Soviética x Chile, naquela Copa do Mundo.

No Brasil, Sílvio Lancelotti chamava João Etzel Filho de “monarca dos empates”. Tinha grande trânsito na Federação Paulista, apitava alguns dos melhores jogos e era especialmente escalado para contendas internacionais, no Brasil ou fora do país. Era uma escolha natural para a Copa do Mundo de 1962. A flagrante proximidade com a CBD de então também era um ponto positivo: viajar com Havelange e Machado de Carvalho implicaria em menos despesas para a Fifa.

Etzel foi árbitro em apenas uma partida: o empate em 4 a 4 entre a União Soviética, de Lev Yashin, e a Colômbia, então treinada pelo lendário Adolfo Pedernera. A amigos e familiares, Etzel costumava dizer que prejudicou a União Soviética nesta partida, como uma espécie de “resposta” à ocupação dos russos na Hungria em 1956. Essa frase consta na revista especial da Placar “100 Anos De Futebol No Brasil”, em 1994.

Entretanto, todos os gols colombianos parecem regulares.

Mas não dá para dizer a mesma coisa da partida entre a União Soviética e o Chile pelas quartas de final daquela Copa do Mundo. A falta que origina o primeiro gol chileno não existiu. Leo Horn, o mesmo árbitro holandês da final da Libertadores de 1962, é o juiz daquela partida, e Etzel é um dos auxiliares.

É claro que as poucas imagens da época não autorizam ninguém a dizer claramente o que aconteceu. As frases de Etzel e o testemunho do seu ex-companheiro de arbitragem, Olten Ayres de Abreu, são tudo o que se tem sobre aquele tempo. A partir dos anos seguintes, algumas coisas começam a surgir.

João Etzel, ainda em vida, contestou as denúncias de suborno. “Essa história que contam, de que ele foi gratificado por nós, tem muito exagero. O Aymoré Moreira (técnico da Seleção Brasileira de 1962) não pode provar que o Marino levou dinheiro. Por que o Marino viajou para Montevidéu logo depois do jogo? Ora, porque sua missão já havia terminado e ele levou os 400 dólares correspondentes às 20 diárias. Eu o levei até o aeroporto”, afirmou em entrevista ao Estadão, em 1979.

Entretanto, ele admitiu, na mesma entrevista, que pressionou Marino a não depor contra Garrincha. “Eu corri para o vestiário, peguei o Marino pelo braço e disse: ‘Como é que você bota o Garrincha para fora? Você não sabe que vamos jogar a final da Copa? Então veja lá o que você vai botar no relatório’”.

Língua ferina

“Há uma conspiração para eliminar o Brasil e outros concorrentes mais fortes. É um jogo de muita malandragem”. Essas palavras foram ditas por Etzel em uma mesa redonda do Canal 4, de São Paulo, no final de maio de 1970. Na época, o ex-árbitro dizia ter certeza que o Brasil não ganharia a Copa do Mundo, pois não havia feito o “dever de casa” com os juizes escolhidos pela Fifa para o Mundial.

“Existe uma espécie de grupo internacional que controla toda a arbitragem da Copa. Esse grupo obedeceria a objetivos inconfessáveis que vão de interesses econômicos até políticos. É ele que determina, de antemão, quem vai ganhar a Copa”.

Depois, deu o caminho das pedras. “O grande erro de nossos dirigentes foi terem esquecido Helmuth Kaeser, secretário-geral da Fifa e que considero como a maior eminência parda dentro da organização, preferindo trazer Ken Aston, um péssimo juiz e elemento sem força dentro da Fifa”. Etzel também elogiou Didi, então técnico do Peru, por ter se reunido com o árbitro Arturo Yamasaki — “que fez o impossível para o Chile ganhar do Brasil em 1962”. Chamava-o de “alcoólatra contumaz”, também. Arturo, morto em 2013, foi justamente o árbitro que expulsou Garrincha na semifinal de 1962. “Ele já tem sérios precedentes, as Copas de 62 e 66 que o digam”.

Didi, por outro lado, acusava Etzel. “Esse é um homem que não pode ficar de fora da campanha da Seleção Brasileira na Copa do Mundo”, afirmou à Placar em 1970.

Arturo Yamasaki Maldonado era peruano, radicado no México. Ficou conhecido por apitar “a partida do século” entre Itália e Alemanha, na Copa de 1970. Apitou mais de mil partidas no México, foi presidente da Comissão de Arbitragem da Federação Mexicana e figurou até mesmo em um filme de Roberto Gomez Bolaños — “El Chanfle”. Além das Copas de 62 e 70, apitou também o Mundial de 1966 e os Jogos Olímpicos de 1968 e 1972. Ingressou no “Hall da Fama” da Concacaf em 2007.

Reconhecido como um dos “melhores árbitros do mundo” no Peru e no México, foi acusado em 2004 de omissão pela ex-árbitra Citlally Gómez. Ela denunciou abuso sexual de um outro árbitro — Francisco Meraz — à comissão de arbitragem, e Yamasaki decidiu não levar adiante a história. Na época, Yamasaki tinha 75 anos, e alegou que não seguiu a denúncia por ter “demência senil” — um ano depois, ele se afastaria do cargo.

Sobre decisões como árbitro, Yamasaki jamais foi alvo de qualquer investigação. Quando morreu, foi saudado pelas confederações, pela FMF e por clubes como América e Pumas, além de ser lembrado no Peru como o maior juiz já nascido no País.

A acusação sobre Yamasaki não foi a única da sua vida. “Havia muito (suborno) no futebol. Mas muita gente também foi vendida sem saber. No antigo Ponto Chic, no largo do Paissandu (em São Paulo, capital), muita gente foi vendida sem saber. E o corretor era o famoso João Chiavone. Ele acertava o negócio, deixava o corretor olhando de longe e ia abraçar o jogador ou o juiz supostamente vendidos. Abraçava, não falava nada e o otário do dirigente lhe passava a grana. Quem comprava mesmo não ia ao Ponto Chic. Procurava o juiz ou o jogador bem longe dali”.

João Chiavone foi conhecido como um dos primeiros técnicos da história do São Paulo. Em 1930, foi dispensado por colocar Araken e Friendereich no time de suplentes. Também treinou o Corinthians, por 10 partidas.

Etzel também afirmou que ajudou a subornar o árbitro colombiano Ovidio Arrego para prejudicar o Brasil contra a Bolívia, na Copa América de 1963. Segundo Etzel, o Brasil não tinha mais chances de ser campeão sul-americano, e o objetivo era prejudicar a Argentina, que, segundo ele, havia combinado com árbitros peruanos para ser campeã.

“Mandei que o Danilo (Alvim, brasileiro técnico da seleção boliviana) fosse conversar comigo e, quando ele apareceu, repetindo a história (de que ganharia 10 mil dólares se fosse campeão sul-americano), perguntei-lhe: ‘Você quer ser campeão? Tem mil dólares para gastar?’. Cheguei ao juiz colombiano (Arrego) que era meu companheiro de quarto e perguntei: ‘Você quer ganhar um regalo de mil dólares?’ Ele perguntou para quê e eu disse que era para fazer e Bolívia ganhar do Brasil.”

“Ele ficou abismado, perguntando se eu não era brasileiro, e eu disse que era para a Argentina não ser campeã. Ele topou e o Brasil, que tinha feito uma grande partida, podendo ganhar até de 10 a 0, acabou perdendo por 5 a 2. (Na verdade, o jogo foi 5 a 4). O Arrego fez misérias.”

“Mandei, sim. Tive amigos e inimigos”.

Em 26 de outubro de 1968, o árbitro e jornalista José Astolfi resolveu abrir a boca contra os dirigentes do futebol paulista. Denunciou corrupção de dirigentes e árbitros — e apontou João Etzel Filho como “o chefe” do esquema. De acordo com Astolfi, Diede Lameiro afirmou que João Etzel armava para ajudar clubes pequenos nas divisões inferiores.

“Neste futebol a gente precisa ceder um pouco para subir. Tenho íntimas ligações com o João Etzel e já sei que você (Astolfi) é muito honesto. E honesto demais. O São José (de São José dos Campos) foi campeão da terceira, da segunda e agora está na primeira graças ao João Etzel, meu padrinho dentro da federação. O João às vezes manda o Marreiro (outro árbitro) roubar aqui em São José, mas bom cabrito não berra, bom malandro não estrila. Sabia que o Marreiro mais tarde lhe devolvia com juros aquilo que ele tirava do São José”.

Na época, o presidente da Confederação Nacional de Desportos era o general Elói Meneses, que afirmou que iria “apurar tudo”. Meses depois, em 29 de abril de 1969, Mendonça Falcão, que era presidente da Federação Paulista de Futebol quando das denúncias, foi cassado pela ditadura militar. Os grandes clubes — inclusive o Corinthians, clube onde Mendonça Falcão era associado — apoiaram a decisão.

Jornal dos Sports do dia seguinte afirmou: “João Etzel Filho, um dos seus mais importantes asseclas, a esta altura, já era o homem que mandava e desmandava no Departamento de Árbitros, escalando e vetando juízes, embora fosse um deles. Em 1963, com a pressão da imprensa, Falcão, numa outra manobra de efeito, tirou Etzel da Federação, mas, mesmo fora dela, o ex-juiz continuou com força total dentro das arbitragens”.

O próprio Etzel confirmou esta influência na rumorosa entrevista ao Estadão, em 1979. Quando perguntado “Você mandou no futebol paulista”, ele assentiu.

“Mandei, sim. Tive amigos e inimigos. Os inimigos eram poucos, incapazes de me fazer mal. Tentaram, mas não puderam me derrubar. Eram dirigentes ou simples puxa-sacos.”

Sobre as acusações de Astolfi, entretanto, negou duas coisas naquele mesmo papo de quase 40 anos atrás: que tinha sido afastado da Federação Paulista por pressões — “saí porque quis e quando quis” — e que chefiava qualquer esquema de corrupção.

“Todos nós éramos culpados, todos tinham culpa no cartório. Aquele que está comprometido com o outro não tem coragem de ir contra ele. Nunca vendi ninguém, como andam dizendo. Se em algum jogo aconteceu um imprevisto, foi por acidente. Mas furto, no duro, não. Eu tinha fama de que comigo ganhava quem eu queria. Realmente eu tinha capacidade para isso. Mas só fazia isso para salvar a minha pele. Quem ajudava os grandes sempre estava em atividade. Caso contrário, estava na rua”.

Negou, entretanto, que enriqueceu com o futebol.

“Sou um homem remediado. Tenho uma vida tranquila. Mas não ganhei tanto assim. É que eu soube aplicar o que ganhei”.

E só admitiu favorecimento direto em uma ocasião: em um jogo Brasil x Uruguai, pela Copa Rio Branco, em abril de 1947.

“Ganhamos por 3 a 2 e eu expulsei o Schiaffino, que estava jogando muito bem. E não me arrependo, porque lá eles faziam a mesma coisa. Vi muita sujeira contra o Brasil e, como sou brasileiro, resolvi roubar para o meu time também. Estou errado?”


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leonardo Lepri Ferro

Jornalista e paulistano, toco o Puntero Izquierdo ao lado de amigos, e também falo sobre futebol e cultura sul-americana no blog Latinoamérica Fútbol Club.

Como citar

LEPRI, Leo. João Etzel Filho: o monarca dos empates. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 53, 2020.
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