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Libertadores #01

Maurício Brum 21 de agosto de 2021

Em parceria com o Impedimento, o Puntero publicará uma seleção com dez dos maiores jogos na história do torneio. No nosso episódio #01 voltamos a 1964: o Santos perdeu para o Independiente e o maior campeão da América nasceu sob o nariz de um ditador

Libertadores 1964

No imaginário do torcedor brasileiro do fim de século, o São Paulo de Telê Santana é o time fundador da paixão do país pela Copa Libertadores. O bicampeonato de 1992/93 é o responsável pelo renascimento do interesse brasileiro na competição na era da tevê ao vivo, mas é uma meia-verdade que o país jamais tenha cobiçado a competição antes — houve ciclos em que o interesse cresceu ou diminuiu por razões diversas. E, trinta anos antes do sucesso do São Paulo, o Brasil já ficava com o ouvido colado no rádio em função das noites copeiras — o Santos de Pelé, o primeiro time daqui a desbravar os caminhos da Libertadores, venceu para o país as suas taças inaugurais, dando à Copa uma audiência cativa no início dos anos 60.

Em 1964, um jogo do Santos pela Libertadores obrigou até mesmo o ditador Castelo Branco a mudar o horário de um importante pronunciamento marcado para a noite em que o time estrearia na competição.

A Copa chegava então à quinta edição. Até ali, seus títulos haviam se distribuído entre apenas duas equipes, em um par de bicampeonatos: o Peñarol abriu a lista de conquistadores em 60 e 61, e o Peixe venceu as suas em seguida. Parecia que, após um par de títulos para cada lado, nada seria mais lógico do que o continente testemunhar um tira-teima histórico para concluir o quinquênio: algo melhor do que os dois bis se encontrarem para definir o primeiro tri?

Só faltou combinar com os uruguaios. O plano começou a ser frustrado antes mesmo de a Libertadores de 1964 se iniciar: em uma época em que só os campeões nacionais (e o defensor do título) chegavam à disputa, o Peñarol foi superado pelo Nacional no torneio doméstico da Banda Oriental e, pela primeira vez, não jogou a Copa. Já a queda do Santos viria um pouco mais tarde, dentro da competição. E, em vez de desempatar com os aurinegros para ver quem tinha a maior dinastia da década, o Peixe serviu de degrau para o futuro grande campeão de todos os tempos mostrar que vinha pronto para as maiores glórias: o Santos perdeu a coroa para o Independiente de Avellaneda.

Libertadores 1964Por ser o atual campeão, o Peixe entrou direto nas semifinais — uma vantagem que, nas primeiras décadas da Libertadores, favoreceu as conquistas sequenciais como em nenhum outro período. De seu lugar de honra, o time de Pelé observava enquanto os outros competidores se devoravam uns aos outros: o Bahia surpreendeu negativamente e caiu para o Deportivo Italia, da Venezuela, ainda nas preliminares; os próprios venezuelanos não foram além em um grupo vencido pelo Colo-Colo, onde também o Barcelona de Guayaquil teve sua caminhada abreviada; Cerro Porteño e Aurora de Cochabamba não assustaram o invicto Nacional de Montevidéu. Já o adversário do Santos saiu de uma chave onde Millonarios e Alianza Lima levaram uma enxurrada de gols dos vermelhos de Avellaneda: treze em quatro jogos, o melhor ataque da competição.

A Libertadores daquele ano começou em 3 de abril, apenas dois dias depois do golpe que tirou João Goulart da presidência do Brasil e acabaria por levar o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco ao posto máximo da nação. Apoiado por importantes setores da sociedade e da imprensa, além das próprias Forças Armadas, o novo mandatário ainda precisava dar uma aparência de legalidade às suas ações. Quando o Santos entrou em campo para sua estreia na Libertadores, três meses mais tarde, muitos dos problemas que haviam reforçado a retórica golpista seguiam vigentes no cotidiano brasileiro — a alta dos preços, o desabastecimento, a chamada “agitação política”.

Em 15 de julho de 1964, Castelo Branco preparava-se para dar um golpe dentro do golpe — para manter as aparências, precisava justificar ao Brasil o drible que daria no mesmíssimo Ato Institucional (AI-1) que havia servido para legitimar sua chegada ao poder. Naquela noite, o presidente entraria em cadeia nacional para explicar a necessidade de estender seu mandato até março de 1967, mais de um ano além do previsto pelo AI-1. Para isso, dependia de uma votação com cara de favas contadas que ocorreria no Congresso, coagido e manipulado após uma série de expurgos e cassações em abril.

Libertadores 1964
Foto: Reprodução.

Na mesma hora em que o marechal começasse a falar nos microfones, o Santos deveria dar o pontapé inicial na sua campanha: recebia o Independiente, no Maracanã, que havia se convertido em sua casa para as noites internacionais. Sua maior preocupação naquele momento não deviam ser os rumos do país, mas a preservação de seu legado vitorioso: Pelé era dúvida — e, sem Pelé, as coisas ficariam ainda mais complicadas para um time que dava alguns sinais de já não estar tão imparável quanto antes.

Embora viesse de vencer mais uma Taça Brasil, fora do país começavam a surgir alguns resultados que não costumavam ocorrer durante o auge vivido nos anos anteriores: em fevereiro, o Peixe tomou 5×1 do próprio Independiente, na Argentina, e cinco dias mais tarde levou 5×0 do Peñarol no Centenario. Apenas amistosos, é claro, mas em um tempo em que esses jogos eram encarados com a mesma seriedade — às vezes mais — dos confrontos oficiais, tamanha a importância das excursões. Aquele foi também o famoso ano em que o Santos caiu para o Colón de Santa Fe, na mais lendária jornada que o Cemitério de Elefantes já viu: 2 a 1, em maio.

Um início também ruim no Campeonato Paulista, com derrota para o América em Rio Preto, fez o técnico Lula mudar o planejamento para a estreia na Libertadores e dedicar força total à segunda rodada, quando os alvinegros derrotaram o Comercial em casa, apenas quatro dias antes do choque contra o Rojo. Na Vila Belmiro, contra o Bafo, Pelé já não havia jogado: sentia os efeitos de uma lesão sofrida contra o América, quando terminou na ponta para fazer número. A esperança de que se recuperasse a tempo de jogar no Maracanã pela Copa também não se confirmou: vetado, o Rei sofreu no túnel.

E, do túnel, viu o Independiente construir uma das grandes viradas da sua trajetória copeira. Após o Santos abrir o jogo de forma avassaladora, construindo um 2×0 com gols de Pepe e Peixinho, os argentinos fizeram uma substituição que mudou os rumos da partida: Miguel Ángel Mori, que ficaria na história por ganhar a Libertadores pelos dois times de Avellaneda (após o bi com o Rojo em 64/65, vestiu as cores do Racing em 67), entrou aos 37 minutos e, já aos 38, construiu a jogada do gol de desconto. Seu ingresso permitiu que Osvaldo Mura, visto pelos brasileiros como o melhor do time, jogasse mais à frente.

O Rojo empatou antes do intervalo, com Bernao, e dominou o segundo tempo inteiro. Venceu graças a um lance tardio, aos 45 minutos da etapa final: com a zaga santista mal postada e deixando muitos espaços, Savoy, Mario Rodríguez e Luis Ernesto Suárez não tiveram dificuldades para trocar passes em cima de Modesto e Haroldo, considerado o pior em campo. Suárez apareceu na cara do gol e bateu forte para superar o gigante Gylmar.

Foi a primeira vez que o Santos perdeu, de verdade, um jogo de Libertadores no Brasil — na volta da final de 1962, havia oficialmente levado 3×2 do Peñarol na Vila Belmiro, mas em campo o jogo acabou empatado: apesar de ter deixado a partida seguir até o fim, o juiz decretou, na súmula, o encerramento formal do duelo aos seis minutos do segundo tempo, muito antes do empate santista. Desta vez, havia sido também na bola.

Libertadores 1964

A volta não salvou o sonho do tricampeonato santista, que acabaria só vindo em 2011: em Avellaneda, o Independiente venceu novamente, por 2×1, e avançou para a primeira das suas sete finais, contra o Nacional. Também o primeiro dos seus sete títulos. Nos vestiários do Maracanã, jogadores e dirigentes do Rojo cantaram para celebrar: “Sí, sí señores / Yo soy del Rojo / Sí, sí, señores / De corazón / Porque este año / De Avellaneda / Sale el nuevo campeón”. O novo e maior.

Muitos anos mais tarde, o cartola Julio Grondona, que presidiu a federação argentina por décadas e havia comandado o Independiente nos vitoriosos anos 60 e 70, recordaria dos jogos contra o Santos como um dos duelos difíceis que venceu nos bastidores. Em conversa telefônica gravada em 2013, Grondona gabava-se sobre como usou “dois bandeirinhas” para atropelar o árbitro europeu (o inglês Arthur Holland, que Grondona confundiu com o holandês Leo Horn) e garantir a vitória contra os brasileiros em 64. O Santos reclamou muito de um pênalti não dado no jogo de ida, e da cera não punida na volta, além de uma série de impedimentos questionáveis. Após a primeira partida, o Correio da Manhã assinalou: “o juiz britânico deixou de marcar várias faltas, além de não assinalar impedimentos seguidos da linha argentina”.

O alvinegro praiano até ameaçou não voltar à Copa em 1965, se tivesse a chance, mas venceu novamente a Taça Brasil e acabou marcando presença. Os boicotes do indignado futebol brasileiro à Libertadores só viriam alguns anos mais tarde. Apesar da arbitragem, a atuação do Santos nos confrontos foi considerada tão “medíocre” pela exigente crítica da época que o principal comentário nos diários brasileiros era que o Independiente merecia ter vencido por mais.

E o marechal? Castelo Branco cedeu. Na véspera da partida, a Secretaria de Imprensa do Planalto informou que, “em atenção ao horário do jogo” (21:30), anteciparia o pronunciamento para às nove da noite — e a fala ficaria mais curta, para acabar antes de Holland apitar pela primeira vez. Como havia argumentado Armando Nogueira em sua coluna no Jornal do Brasil: “Não tenho opinião formada sobre a polêmica da coincidência de mandatos que tanto apaixona os políticos; mas, posso garantir ao Presidente Castelo Branco que o povo vota contra a coincidência de seu discurso com o jogo de logo mais. Quem avisa amigo é: sem feijão e sem Pelé, a revolução [sic] não toma pé”.

Sem Pelé, nem o Santos ficou em pé. Mas o governo militar aprendeu desde cedo a importância que o futebol teria para não minar a imagem dos generais.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #01. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 39, 2021.
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