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Libertadores #7

Maurício Brum 8 de janeiro de 2022

A memória das jornadas amaldiçoadas do rubro-negro na Libertadores: Cabañas e o Flamengo de todas as maldições copeiras.

Libertadores 60 #7

Quem conhece a relação torturante do Flamengo com a Libertadores nas últimas décadas não desconfia que, quando o namoro começou, tudo parecia devidamente domado. Poucos clubes foram capazes de decifrar os caminhos da Copa de forma tão rápida quanto o rubro-negro carioca: em 1981, o Fla repetiu o lema das conquistas romanas e veio, viu e venceu já na sua primeira participação continental. Com direito a históricas polêmicas de arbitragemgoleadas memoráveis e uma agressão deliberada na final, que era para provar que o clube da Gávea havia entendido direitinho como funcionam as lides copeiras, para o bem e para o mal, pois Libertadores não se vence só com afagos.

Mas, depois daquilo, o que veio não foi outra Libertadores, mas um imenso vazio. Não importava quem estivesse em campo.

Passado o mágico time dos anos 1980, que conquistou o título logo de cara e ainda sonhou com um regresso à final ao jogar os triangulares semifinais de 1982 e 1984, o Flamengo se perdeu em alguma esquina entre os Andes, o Chaco e o Prata. Nunca mais conseguiu mostrar ao continente o mesmo tipo de domínio da sua participação inaugural. No longo hiato entre a força da equipe de Zico e os sonhos renascidos sob Jorge Jesus em 2019, o Fla apresentou uma sucessão de times que prometeram à torcida muito mais do que efetivamente entregaram, e uma série de decepções doloridas quando o assunto era Libertadores.

Poucas foram tão surreais quanto aquela de 2008, quando um certo Salvador Cabañas reduziu a tranquilidade e as esperanças do Maracanã a nada.

* * *

Aquele Flamengo, é bem verdade, estava muito longe de ser o time dominante que onze anos mais tarde voltaria a uma final da América do Sul. E, embora estivesse a apenas uma temporada de distância de vencer seu primeiro Brasileirão de pontos corridos — de forma improvável, com o pior aproveitamento da história entre os campeões –, em 2008 ainda se tratava de uma equipe que havia entrado na Libertadores com uma campanha até adequada, mas longe de brigar por título, no campeonato nacional do ano anterior.

Em 2007, o São Paulo havia vencido a Série A, a segunda em uma série de três consecutivas, com sobras, tornando-se o primeiro e ainda hoje único clube a confirmar o título dos pontos corridos em outubro. O Fla, por sua vez, pegou a vaga continental em 3º lugar, com uma posição mais imponente do que a pontuação: fechou o ano 16 pontos atrás dos campeões. Mas Libertadores não são vencidas apenas com times dominantes, ou mesmo com o melhor time de um país, como o próprio São Paulo vinha provando naquele fim de década: enquanto dominava o futebol nacional, o tricolor paulista também enfileirava sucessivas eliminações continentais diante, justamente, dos adversários brasileiros que costumava bater no torneio doméstico.

Se fazer campeonatos bons raramente garante uma Copa brilhante, pelo menos no caso brasileiro, o oposto também poderia ser verdade: o que impedia uma equipe de campanha apenas regular “encaixar” e chegar longe na taça continental? O Flamengo de 2008, em alguns momentos, pareceu estar nessa direção: não chegou a concretizar jogos mágicos na fase de grupos da Libertadores e até levou uma paliza do Nacional de Chengue Morales, em Montevidéu, mas venceu seu grupo sem problemas e fez uma das melhores campanhas da etapa inicial da Copa — vice-líder geral, atrás apenas do rival Fluminense, e pelo saldo de gols.

Os sonhos começaram a ficar mais sérios nas oitavas-de-final, no gramado do Estadio Azteca, com sua altitude e suas arquibancadas cavernosas capazes de receber cem mil empurrando o América na tentativa de transformá-lo no primeiro mexicano a campeonar no torneio que, embora seja sul-americano, sempre se arrogou o direito de definir o melhor time de todo o continente. Tratava-se de um clube que, apenas dois anos antes, havia reinado sobre a Concacaf, e agora queria estender seus domínios também aos territórios hostis da Conmebol.

O grande triunfo do Azteca

Pois lá, na Cidade do México, o Flamengo fez-se gigante de forma pouco comum em suas jornadas internacionais das últimas décadas: após liderar o placar por duas vezes e sofrer empates imediatos em ambas, os rubro-negros não se deixaram abater e construíram uma enorme vitória por 4×2 com dois gols nos minutos finais — Diego Tardelli fez a terceira vantagem da tarde norte-americana aos 43 do segundo tempo e, desta vez, o que aconteceu no lugar de um novo empate do América foi mais um gol flamenguista: Léo Moura, aos 47.

Com gol qualificado, era um placar praticamente irrecuperável, e uma daquelas vitórias que, se o título vem, depois se tornam simbólicas do momento em que um time campeão sente que não pode mais perder a Copa. Mas não o Flamengo. Não em Libertadores. E não com Salvador Cabañas do outro lado.

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Libertadores 60 #7
Ainda se debate o que teria sido a carreira do paraguaio.

É difícil saber o que seria de Cabañas, do América e até mesmo da seleção paraguaia se, um ano e meio mais tarde, o homem que aniquilou o Flamengo naquela Libertadores não tivesse a carreira interrompida por um tiro na cabeça. A história é conhecida: na madrugada de 25 de janeiro de 2010, em uma boate da capital mexicana, o Mariscal envolveu-se em uma discussão e foi vítima de uma tentativa de homicídio. Ele sobreviveu. A bala, calibre 38, permanece até hoje em sua cabeça — era mais arriscado tentar uma cirurgia para removê-la do que deixar o projétil onde estava.

Cabañas tinha 29 anos quando sua carreira foi interrompida, ganhava em torno de 2,5 milhões de dólares por ano e, segundo familiares, já tinha um pré-contrato assinado com o Manchester United para a temporada seguinte. Tudo acabou abruptamente. Ele próprio tornou-se uma espécie de bomba-relógio, um risco para qualquer clube que decidisse dar-lhe uma chance: os médicos diziam que uma pancada na cabeça, uma bolada infeliz, poderia terminar o serviço que o pretenso assassino começou no banheiro do Bar Bar — deslocar a bala e inviabilizar o goleador também fora dos gramados.

Cabañas só voltaria a jogar em times de divisões inferiores, bem longe da velha glória. O tiro também o impediu de atuar na Copa do Mundo de 2010, a competição em que um Paraguai minuciosamente montado por Tata Martino fez frente à futura campeã Espanha e só perdeu por 1×0 após desperdiçar a chance de sair vencendo, em um pênalti mal batido por Óscar Tacuara Cardozo. Os torcedores guaranís ainda hoje se perguntam o que poderia ter sido daquela Albirroja com Cabañas no ataque.

Já os brasileiros guardaram para sempre a memória do que ele fez em 2008, em especial o Maracanazo pessoal liderado pelo camisa 9 do América. Curioso encontro, aquele: Cabañas, que depois seria alvo de uma tentativa de homicídio, construiu sua lenda particular marcando dois gols em cima de Bruno, o goleiro que viria a ser condenado a mais de 20 anos de prisão pelo assassinato de sua ex-amante, um crime ocorrido — a exemplo do tiro em Cabañas — também em 2010.

O Cabañazo

 

 

Na jornada do Maracanã em que o Flamengo entrou com ampla vantagem, o Mariscal abriu o placar aos 20 minutos, em um chute de fora da área que desviou na zaga para encobrir Bruno. Enrique Esqueda dobrou a vantagem aos 38, um placar que ainda classificava o Fla pelos gols como visitante, mas deixaria os cariocas na corda bamba pelo resto da noite. A esperança equilibrista que, finalmente, foi derrubada quando Cabañas acertou uma falta de 30 metros no canto direito de Bruno, novamente com desvio no caminho, fazendo 3×0 aos 32 do 2º tempo.

O Flamengo caía em uma das viradas mais absurdas de sua vida. E Cabañas tornava-se um fantasma do futebol brasileiro: após conquistar o Maracanã em 7 de maio, amplificou o temor ao aniquilar também o Santos com um par de gols oito dias mais tarde, e confirmou essas impressões todas um mês depois, em 15 de junho, quando também fez gol em cima da Seleção Brasileira em um triunfo paraguaio no Defensores del Chaco. O América de 2008 só parou nas semifinais, para a futura campeã LDU de Quito, no gol qualificado. Já o Paraguai se classificaria àquela que, até aqui, é sua última Copa do Mundo.

Mas Cabañas, depois, não pôde continuar. Tentou voltar a jogar bola, sem recuperar o espaço que teve antes. Hoje, sonha em se tornar treinador. Já o Flamengo, naquela noite, fortaleceria uma incômoda antimística copeira, a sensação de que as coisas sempre encontrariam um jeito de dar errado, das maneiras mais incríveis e absurdas, em viradas improváveis ou gols agônicos em jogos paralelos, como ocorreu em 2012 ou 2017. Era como se o Fla estivesse proibido de sorrir na Libertadores, que após ceder a inaceitável virada para o América nunca mais seria capaz de fazer uma vitória grandiosa em mata-matas como aquela do Azteca.

Até que veio 2019.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #7. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 7, 2022.
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