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Libertadores #8

Maurício Brum 22 de janeiro de 2022

Em 2015, o River Plate de Marcelo Gallardo começou a construir sua série de títulos da Libertadores em um jogo que nunca acabou — literal e simbolicamente

Libertadores #8

O exílio forçado está quase no fim. Antes que 2019 acabe, Adrián Napolitano poderá pisar novamente um estádio de futebol. Mais exatamente: pisar no estádio, a velha Bombonera de todos os dias que, para ele, nos últimos quatro anos, não foi de dia algum. Quando finalmente voltar para sua segunda casa, Napolitano encontrará um Boca diferente daquele da noite em que seu nome se tornou conhecido em todo o continente: um clube com mais cicatrizes, uma incômoda freguesia diante do River Plate em torneios internacionais, e com o rival tendo empilhado títulos desde então.

O suplício xeneize na metade final da década passa diretamente pela jornada em que Adrián Napolitano se fez infame. Tão logo foi identificado, já o chamavam por outra alcunha, derivada de sua profissão: el Panadero, o responsável pela exclusão do Boca daquela Libertadores, segue levantando todos os dias às quatro da manhã para amassar o pão que, algumas horas depois, distribui entre seus vários clientes na zona sul do conurbano bonaerense, região de Lanús.

Libertadores #8
Adrián Napolitano, el Panadero, responsável pelo ataque aos jogadores do River Plate em 2015.

Não era qualquer torcedor: viajava com o Boca pelo continente, levando o azul y oro aos campos mais distantes. Uma das fotos que mais costuma ilustrar reportagens a seu respeito o mostra no improvável Mangueirão, em Belém do Pará, durante o insano Paysandu 2×4 Boca de 2003, quando a equipe de Carlos Bianchi deu a volta no histórico triunfo que o Papão havia conquistado em Buenos Aires, na ida, através de um memorável gol de Iarley. Em outro retrato, ele aparece na piscina de um hotel, retratado ao lado do próprio Bianchi.

River 1×0 Boca, a ida de 2015

 

Em 14 de maio de 2015, porém, não havia mais Bianchi. Nem houve virada. O técnico em vias de se tornar lendário e multicampeão estava do outro lado e trazia vantagem: na ida, o River Plate triunfou no Monumental de Núñez por 1×0 e, embora a diferença fosse estreita, vinha sendo senhor da partida na Bombonera, que chegou ao intervalo igualada sem gols. E do intervalo já não voltou — Napolitano foi o homem por trás do episódio do “spray de pimenta”, quando o composto químico foi borrifado sobre a equipe adversária e outros azarados ao redor, impedindo que o jogo fosse retomado. O Boca foi decretado perdedor e eliminado. O River, após um começo de Copa muito ruim, avançou e seguiu rumo ao título.

E não parou mais de vencer, com frequência esbarrando no próprio Boca e o eliminando pelo caminho — até o extremo da final de 2018, um duelo direto em Superclássico.

* * *

Boca e River se enfrentaram tão cedo naquela Copa de 2015, em plenas oitavas-de-final, porque a campanha Millonaria havia sido um terror na fase de grupos: o River estreou perdendo, emendou quatro empates consecutivos e chegou à rodada final obrigado a vencer se quisesse seguir em frente. Pegou o San José de Oruro, da Bolívia, e fez 3×0 — sua única vitória no quadrangular, suficiente para passar com a pior pontuação geral entre os 16 sobreviventes.

Ainda eram tempos em que a Libertadores colocava a melhor campanha contra a pior e, naquele 2015, calhou de ser justamente o Boca Juniors o líder geral, com resultados radicalmente distintos do seu oponente de sempre: seis vitórias em seis jogos, dono dos melhores ataque e defesa da competição até ali, com 19 gols marcados e apenas dois sofridos.

Absolutamente dominante, o Boca não imaginava vida fácil em um Superclássico, mas via o momento propício para dar o troco da eliminação sofrida no ano anterior: na Copa Sul-Americana de 2014, a caminho do primeiro do que hoje são dez títulos na era Marcelo Gallardo, os velhos rivais se encontraram na semifinal e o River avançou.

A ideia de transformar o reencontro de 2015 em uma revanche, no entanto, começou a dar errado quando Carlos Sánchez fez o 1×0 de Núñez, encerrando os 100% boquenses. Na volta, o River começou a consolidar o que se tornaria uma sequência de jogos decisivos triunfando sobre o Boca, que desde lá passou a incluir também a Supercopa Argentina de 2018, a final da Libertadores passada e as semifinais da Copa deste ano.

 

Para Napolitano, o padeiro, a série de conquistas do River foi resultado direto de favorecimentos que já estavam em marcha naquela noite em que despejou o spray sobre os atletas rivais. Foi por aí que construiu sua defesa pública em outubro, quando ressurgiu na imprensa argentina para falar do que foi de sua vida desde então: “Hoje, depois de todo esse tempo, as pessoas estão vendo o que acontece. Que estava e está tudo arranjado”. Parte da sua esperança é que a torcida do Boca, que o ameaçou por vários dias após a eliminação que o Panadero causou, concorde com essa teoria — e permita que volte a frequentar a Bombonera em paz, agora que a punição pessoal está expirando.

O borrifador garante: “Nunca quisemos suspender o jogo, era só para botar pressão e saiu do controle”.

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Bochorno e eliminação boquense em 2015

 

Mas o jogo foi efetivamente suspenso, jamais retomado, e nunca chegou ao fim — literal e simbolicamente. O Boca Juniors continua se ressentindo das dores continentais que nasceram naquele malogrado intervalo, ainda comendo o pão apimentado que Napolitano amassou.

O River Plate ainda não parou de vencer e, mesmo após a derrota para o Flamengo em Lima, já tem outra final no horizonte para tentar lamber as feridas e atormentar os xeneizes um pouquinho mais: está também na decisão da Copa Argentina, contra o Central Córdoba de Santiago del Estero, e entrará favorito nesse outro jogo valendo taça que acontecerá antes de 2020 raiar.

Mas é inegável que a virada de Gabigol deu um novo ânimo à torcida do Boca, que também se fia em uma possível saída de Gallardo (interessa ao Barcelona). Quiçá a era maldita para os boquenses esteja se aproximando do término tão desejado, já que não aguentam mais esse longo segundo plano ao qual foram relegados. Enquanto o River não se acaba, resta o consolo: podiam ser até mais três títulos Millonarios neste fim de 2019, agora só resta a possibilidade de um. Ou nenhum?

No caso de Adrián Napolitano, visto, provavelmente, da solidão de sua televisão, onde tem assistido às partidas do Boca e sofrido com as vitórias do River desde o desastre que ajudou a precipitar em 2015. Para ele, talvez, nem interesse tanto que o Flamengo finalmente tenha conseguido parar Gallardo. O Panadero exilado só quer pisar na Bombonera. E, quem sabe, ter esse momento como o início simbólico de uma nova era no futebol argentino, a contracapa que finalmente fecharia aquela noite apimentada em que o livro da desgraça Xeneize se abriu.

Mas, por enquanto, sempre há o fantasma da permanência de Gallardo e dos títulos que não se acabam mais pelos lados de Núñez. Uma semana após perder a Libertadores, lá estava o River Plate vencendo outro jogo e se colocando na briga por um dos títulos que ainda não levou nesta sequência multicampeã sob o Muñeco: o do Campeonato Argentino.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #8. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 21, 2022.
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