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“Lo fragil de la locura”: Bielsa chega à seleção uruguaia

Fabio Perina 6 de junho de 2023

“La sangre se inquietaba en mis venas. Y aquel verano al norte parti. Para olvidarme de mi rutina y sentirme liberado al fin”.

O trecho a seguir é o início da música (completa ao final do texto) “Lo fragil de la locura” é da banda de rock argentino “La Renga” (do album “Despedazado en mil pedazos”, de 1996, quano o rock ditava o ritmo da cultura “futbolera” argentina. Aliás outro termo muito sugestivo do que será tratado nesse texto a seguir). Em maio, o treinador Marcelo Alberto Bielsa foi anunciado para a seleção uruguaia. (Obs: inclusive essa incorporação aumenta a participação de treinadores argentinos nas seleções sul-americanas de 5, ao final das últimas Eliminatórias, para 7, sendo Bielsa aos 67 anos certamente o mais experiente dentre eles). Uma amostra de sua entrevista: “La conducción se trata de convencer. Se puede ganar jugando de distintas maneras, pero no se puede jugar como uno no cree”.

Distinto do trecho da música acima que fala em norte, seu recente regresso do para a América do Sul após 12 anos de ausência em clubes europeus traz na bagagem passagens por Bilbao-ESP, Marselha-FRA, Lille-FRA e Leeds United-ING. (Obs: além de breve menção a uma insólita desistência de treinar a Lazio-ITA sem sequer dirigir um treino e a não menos insólita especulação de treinar o Santos). Sendo nesse último onde mais despertou idolatria dos torcedores pelo histórico acesso e retorno para a Premier League após longa ausência.

A recente notícia chamou a atenção muito mais do que a importância do personagem e do cargo. Mas sim pela necessidade de reinvenções e de reencontros com os resultados (e até de algum sentido para a vida cotidiana) em ambos os lados. O que vai muito além do discurso midiático de senso comum de que enxergaria ai estilos e identidades tradicionalmente opostos: “jogo feio” para a Celeste e “jogo bonito” para Bielsa.

Os fatores que tornam essa narrativa mais densa é que de ambos os lados do Rio da Prata emergem imensas potências criativas de inestimável legado ao “futbol criollo”. Mesmo diante das maiores dificuldades, um olhar meramente “resultadista” impediria de enxergar a riqueza de processos do jogo e até mesmo outros processos da vida. Do lado albiceleste, “Loco” Bielsa pode jogar no mesmo time de rosarinos ilustres com sublimes combinações de genialidade e loucura como Lionel Messi, Angel Di Maria, Cesar Luis Menotti e até mesmo o cantor Fito Páez. Enquanto do lado celeste não faria feio com ícones como Pablo Bengoechea, Álvaro Recoba, “Loco” Abreu, Luisito Suárez e, claro, “maestro” Oscar Tabarez.

Além dessa questão de identidades, a trajetória histórica de resultados mostra uma gangorra de ascensão de Bielsa junto com o declínio da seleção uruguaia. Bielsa conquistou os campeonatos argentinos de 91 e 92 pelo Newell’s Old Boys e de 98 pelo Vélez Sarsfield que o credenciaram para a seleção argentina. Onde apesar de ganhar uma medalha de ouro olímpica junto do jovem Messi em 2004 não permitiram completar o ciclo para a Copa de 2006, pois não apagaram o vexame na Copa de 2002. (Obs: inclusive dai emergiu a principal acusação à ‘loucura” de Bielsa de estar preso e apaixonado de suas próprias ideias e “morrer” agarrado a elas, por exemplo, se recusar a atender o clamor midiático e popular de escalar juntos os centroavantes Crespo e Batistuta). Começando o refluxo do que foi assim chamada “revolução bielsista”, até hoje sem títulos relevantes.

O que coincidiu com a pior fase da seleção uruguaia em cerca de duas décadas nas quais as participações mundialistas foram vexatórias (90 e 2002) ou até mesmo ausentes (94, 98 e 2006). Vide as gerações de vacas magras e craques isolados como Bengoechea e Recoba que venceram apenas uma Copa América em 95. Inclusive quando houve a breve mas frustrante passagem do treinador argentino Daniel Passarella entre 99 e 2001. Havendo a partir de então um retorno aos melhores resultados com o (quase) eterno ciclo do “maestro” Tabarez junto de Forlan, Lugano, Abreu, Suarez, Cavani, Godin, Muslera e outros. Acumulando novo título de Copa América em 2011 e sobretudo mais participações mundialistas seguidas e classificações a fases avançadas (2010, 2014 e 2018).

Porém o ponto de inflexão ocorreu ao longo de 2022 com o breve ciclo do jovem treinador Diego Alonso. Após a aposentadoria de Tabarez diante de uma campanha muito oscilante nas Eliminatórias, ele agarrou o cargo e obteve simplesmente todas 4 vitórias nas rodadas finais (e mais alguns amistosos) que permitiam se ilusionar que uma geração envelhecida ainda poderia render em uma última participação mundialista. Porém a eliminação logo na fase de grupos custaram a demissão de Alonso. (Obs: um fato extra-campo no mínimo pitoresco que chamou a atenção de vários internautas durante a recente Copa de 2022 foi a declaração da federação uruguaia de querer inserir mais duas estrelas na camisa por consta dos ouros olímpicos conquistados no amadorismo dos anos 1920!).

Marcelo Bielsa
Fonte: Wikipédia

Os poucos confrontos anteriores entre o treinador Bielsa e a seleção uruguaia ao longo de 3 edições de Eliminatórias (2 pela Argentina e 1 pelo Chile) foram de ampla vantagem ao primeiro com algumas vitórias e alguns empates, porém sem perder. E principalmente ambos os lados obtendo as vagas mundialistas (exceto pela trágica derrota uruguaia nos pênaltis para a Austrália em 2006).

“Con Bielsa vendrá el paquete completo: su fortaleza de convicciones hasta la testarudez; su exigencia inflexible de cumplir todo lo hablado; su corrección y su antipatía; su obsesivo perfeccionismo y su rigidez, la que por estos pagos le reprochan por volverse a veces “más bielsista que Bielsa”.”

Por fim, além dos óbvios resultados imediatos que ambos os lados esperam e da necessária empreitada da transição geracional, desse lado da coluna também se espera que esse encontro revigore suas trajetórias. Pois o legado bielsista pro futebol é imenso (muito além do que elogios de Guardiola) ao refletir uma obsessão pelo trabalho e pela aprendizagem sem precisar de marketing pessoal para massagear seu ego. Na alta, sua particular “revolução” não foi em nada egoísta. Mas buscou socializar seus ganhos intelectuais e simbólicos: primeiro com a imensa empreitada de tentar fundar uma terceira via intelectual no futebol argentino quando ele esteve profundamento dividido entre “menottistas” x “bilardistas”. Porém na baixa, sendo conhecida a anedota que imediatamente após o vexame de 2002, Bielsa se trancou por meses em seu rancho em Rosário assistindo video-taipes de partidas para sedimentar suas visões sobre o jogo. Inclusive também elogiado por transformar suas coletivas de imprensa em verdadeiros seminários, distinto da maioria dos treinadores ou na mesmice ou na polêmica vazia. Distinto também por seu hábito tão particular durante as partidas de ficar agachado de cócoras à beira do campo, como quem tentando enxergar para além do óbvio…

Enquanto o legado uruguaio celeste é imenso ao refletir uma obsessão pela fruição e pela aprendizagem. Em uma trajetória a seguir tentando esboçar as etapas de distintas “formações históricas”: foi a seleção que mais cresceu durante o “futebol amador” dos anos 20 e 30; ainda resistiu como potência no “futebol de massas” entre os anos 50 e 80; porém foi a que mais aceleradamente declinou diante do “futebol mercado” desde os anos 90. Contudo, sua potência criativa ainda pulsa por ser possivelmente o país onde a relação futebol e sociedade encontra menos defasagens entre o alto rendimento e a participação. Pois para crianças e jovens adultos o jogar bola é prática próxima do universal. Vide um provérbio popular contra o “resultadismo” emergir de lá: “Ganamos o perdimos, igual nos divertimos”. Tanto é que o seu campeonato nacional, para além dos gigantes Nacional e Peñarol, segue sendo na prática semi-profissional diante de inúmeros clubes e canchas nos quais ainda pulsam nas veias lembranças de amadorismo. Tal qual os ensinamentos de outro rosarino, Che Guevara: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

(Obs: como breve nota de conjuntura, no início de junho, dias antes da estréia de Bielsa em amistoso, a seleção uruguaia obteve um inédito título do Mundial sub-20. Em pleno solo argentino, a hinchada celeste espera despertar para repetir a música da hinchada albiceleste do país vizinho: “Ahora nos volvimos a nos ilusionar…”)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Lo fragil de la locura”: Bielsa chega à seleção uruguaia. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 6, 2023.
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