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A maior tragédia da história do futebol

Em minha tese de doutorado caminhei pelas histórias do futebol olímpico especialmente em relação às disputas pelo controle do futebol entre o COI e a FIFA. Ao percorrer e investigar histórias do futebol olímpico que ficam em segundo plano no universo futebolístico encontrei vários elementos para entender o futebol para além dos Jogos Olímpicos. Naquele momento, por não ser meu foco de pesquisa, a tragédia acontecida em uma partida do Torneio Pré-Olímpico apareceu como uma nota de rodapé. Nesse texto vou explorar como os jornais brasileiros – O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil – trataram a maior tragédia em um estádio de futebol.

Quando se pensa em tragédias em estádios de futebol, provavelmente, a mais lembrada seja a que aconteceu no estádio de Hillsborough. Isso acontece por ter sido em 1985, entre europeus e em uma final. Naquela tragédia morreram 96 pessoas. Para saber mais sobre o episódio leia o texto do Mattheus Reis publicado pelo Ludopédio.

No entanto, a maior tragédia que aconteceu em um estádio de futebol foi em uma competição do torneio pré-olímpico. Isso mesmo, do torneio pré-olímpico que classificaria para os Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. A partida, realizada em Lima, no Peru.

Os argentinos venciam a partida por 1 a 0 quando o Peru teve um gol anulado pelo árbitro uruguaio Angel Eduardo Pazos. Diante da anulação, um torcedor peruano entrou em campo para bater no árbitro, mas foi parado com um chute recebido de um policial. Essa ação do policial gerou uma reação da torcida que começou a quebrar o alambrado e invadir o campo para bater no árbitro e nos jogadores argentinos. A polícia revidou com bombas de gás lacrimogêneo e com o uso de cães enquanto os torcedores responderam com pedras e garrafas. Na tentativa dos torcedores escaparem do gás lacrimogêneo houve pânico e o resultado foram 315 mortos e mais de 800 feridos no incidente.

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Cenas da tragédia. Foto: Reprodução/Divulgação.

São esses detalhes desse episódio que quero explorar na investigação junto aos jornais brasileiros. Além disso, estabeleço um diálogo com o momento político que o Brasil vivia por ocasião desse acidente. Em suma, a proposta é dialogar com os acontecimentos dessa partida para pensarmos se encontramos soluções interessantes para questões similares 50 anos após os fatos apresentados.

No dia 26 de maio de 1964, o jornal Folha de S.Paulo estampava na capa do periódico a seguinte manchete: “Asfixia matou 90% em Lima”[1]. A reportagem interna desse dia do jornal, no acervo digital, encontra-se ilegível. O texto sobre a tragédia, “Lima sem clima” é assinado pelo jornalista Arnaldo Chiorino[2]. A manchete de destaque dessa página não era sobre a tragédia, mas a respeito da partida entre Palmeiras e Corinthians pelo torneio preparatório de basquetebol. No entanto, a imagem de destaque, tem como chamada “Lance da morte” que mostra o gol anulado do Peru.

O jornal O Estado de S.Paulo deu destaque na capa principal do jornal sobre a tragédia: “Incidentes no estádio de Lima: 300 mortes”[3]. Na própria capa aparecem relatos sobre a tragédia, mas uma boa parte também se encontra ilegível.

Os erros que aconteceram no Peru não diferem de outras tragédias ocorridas posteriormente em estádios de futebol. Os erros, por sua vez, não acontecem por meio de ações isoladas. São uma espécie de rede que detona via efeito dominó e que incluem erro de logística quanto a capacidade do estádio, ações equivocadas da polícia e desespero dos torcedores. Tudo isso funcionando conjuntamente tem como resultado a tragédia. Assim o jornal O Estado de S.Paulo se referia aos acontecimentos:

“Cerca de 300 pessoas pereceram e mais de 1.000 foram feridas no decorrer de graves tumultos que se registraram ontem, no estádio municipal de Lima, ao ser interrompido um jogo de futebol entre as seleções amadoras do Peru e da Argentina. […] Milhares de pessoas tentaram deixar o estádio precipitadamente. Entretanto, as portas de aço de várias saídas do estádio estavam fechadas e dezenas de homens, mulheres e crianças foram pisoteados e esmagados pela multidão apavorada que tentava ganhar as ruas. A maioria das vítimas, constituídas de mulheres e crianças, pereceu no interior das passagens subterraneas que levam às saídas”[4].

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O pânico arremessou a multidão pelas estreitas saídas do estádio: comprimidos, caidos, pisados, muitos morreram. Foto: Jornal do Brasil (reprodução).

Enquanto não se sabia com precisão o número de pessoas envolvidas, a alternativa para retirar os mortos do estádio foi a de recorrer para carros particulares, ônibus, táxis e caminhões como alternativa para o caos, a situação de conflito não ficou restrita ao estádio. Avançou para as ruas e houve conflitos fora do estádio tendo como resultado a morte de três guardas-civis[5]. Assim relata a reportagem da Folha:

“Enquanto numerosos cadaveres permanecem ainda nos jardins dos hospitais, aguardando o penoso trabalho de identificação, grande parte das vítimas vai ser sepultada hoje, num clima de dor e revolta. A catastrofe que abalou o Peru e o mundo, nascida num campo de futebol, marcou profundamente a população local, que iniciou diversos movimentos de rua, contidos pelo Exército e policiais. O país está em luto oficial por oito dias e o estado de sítio já decretado, vigorará por trinta dias, no mínimo. O governo destinou também 10 milhões de soles para auxílio às famílias das vítimas”[6].

A partida entre o Peru e a Argentina era considerada a mais importante do Torneio Pré-Olímpico. Ambos estavam invictos e eram apontados pela imprensa como os dois fortes candidatos para conquistar a vaga olímpica. A campanha da Argentina a colocava em primeiro lugar da competição. Havia vencido a Colômbia (2×0), Equador (1×0), Chile (4×0) e Uruguai (3×1). O Peru havia empatado com Equador (1×1), vencido a Colômbia (3×1) e Uruguai (2×0)[7]. O Brasil até aquele momento havia vencido o Chile (2×0), empatado com a Colômbia (1×1) e vencido o Equador (3×1).

Segundo o Jornal do Brasil, o presidente peruano Belaúnde Terry proibiu que a final do torneio fosse realizada em Lima e a CBD foi contactada para que pudesse arcar com as despesas da partida entre Brasil e Peru que iria definir a segunda vaga olímpica, já que a Argentina estava classificada[8].

Na tentativa de ouvir os diferentes lados, o jornal O Estado de S.Paulo trazia, via agências internacionais, informações sobre um dos envolvidos no incidente bem como uma fala do árbitro da partida. O envolvido detido, um homem de 35 anos, apelidado de “Bomba” era Matias Rojas. De acordo com a notícia sua ficha anterior o colocava em situação delicada: “‘Bomba’ é reincidente, sendo temido pelos juises peruanos. Homem extraordinariamente robusto e de temperamento exaltado, não vacila em invadir campos de futebol para agredir os árbitros quando discorda das suas decisões”[9].

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Um torcedor invade o campo, tenta agredir o juiz e é contido. Foto: Jornal do Brasil (reprodução).

O árbitro, Eduardo Pazos (nessa notícia o sobrenome está grafado como Passos), ao chegar em Buenos Aires para fazer uma escala antes de voltar para Montevidéu falou com os jornalistas presentes no aeroporto. Antes de apresentar o ponto de vista do árbitro, o jornal apresentava um comentário apontando que o árbitro estava perturbado, que se eximia da responsabilidade pela tragédia e que não foi sua intenção anular o gol porque havia indicado falta do jogador peruano antes da finalização a gol. Assim declarou o árbitro:

“Somente uma pessoa penetrou no campo quando anulei o tento. O público permanecia tranquilo. Solicitei ao chefe de policiamento que mandasse retirar o invasor do campo e fui prontamente atendido. Entretanto, logo depois outro torcedor saltou o alambrado e correio em minha direção, empunhando uma garrafa quebrada, Foi então que o público começou a manifestar-se. Decidi então suspender a partida, pois seria perigoso prosseguir. Convoquei os jogadores, os juises de linha, e descemos todos para os vestiários. Assim nada sofremos”[10].

O Jornal do Brasil era o que mais trouxe fotos do incidente, certamente pelo fato de ter um enviado especial no Peru, Apolônio Barbosa também trabalhava para a AP-FP-UPI e Reuters trazia mais detalhes sobre o incidente. A repercussão da tragédia foi destacada pelo Jornal do Brasil pontuando o que alguns jornais do mundo disseram sobre o acontecido. O jornal O Estado de S.Paulo praticamente reproduziu a mesma notícia do Jornal do Brasil pelo fato de republicar as informações que chegavam das agências internacionais[11]. Aponto, a partir dos trechos destacados pela notícia, mesmo sabendo o acesso ao material original pode fornecer outros elementos de análise.

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Bombas de gás estouram nas arquibancadas e multidão foge. Foto: Jornal do Brasil (reprodução).

O jornal alemão Die Welt questionava a importância dos Jogos Olímpicos ao apontar que muitos dos encontros terminavam em luto ou estádios de sítio; o jornal francês L’Equipe clamava por uma ação decisiva que poderia salvar os esportes coletivos; o jornal italiano La Stampa (Turim) dizia que milhões de latino americanos se entregam ao esporte por meio da paixão e que os jogos eram mais importantes que as eleições políticas; outro jornal italiano o Corriere Della Sera (Milão) que era a situação política do Peru (e não o futebol); o Corriere Dello Sport (Roma) trazia como manchete “História Negra do Futebol” (novamente aqui o negro como inferioridade); o jornal L’Unitá, do Partido Comunista, o jornal El Mundo (Havana) e o jornal Hoy (sem especificar sua origem), apontavam a polícia como culpada[12].

Dois dias após a noticiar o caso os jornais brasileiros consultados deixaram de falar sobre o tema. Os números apontados pelo Jornal do Brasil indicavam 400 mortos e mais de 1500 feridos e devido a essa tragédia o Torneio Pré-Olímpico não terminou e a Argentina, que estava em primeiro, foi declarada campeã e classificada para Tóquio. Como Brasil e Peru tinham o mesmo número de pontos ficou decidido que o seria realizada apenas uma partida de desempate entre as duas seleções. A partida entre Brasil e Peru aconteceu apenas em junho de 1964[13].

O Peru, até então considerado um dos favoritos para ir aos Jogos de Tóquio parece ter sofrido as consequências da tragédia, pois na partida de desempate realizada no Brasil os peruanos perderam por 4 a 0. Com a vitória o Brasil estava classificado para os Jogos Olímpicos de 1964[14].

O fato é que mais de 50 anos depois continuamos com questões parecidas das que apresentei ao longo do texto. É claro que se trata de contextos totalmente diferentes, mas que guardam algumas semelhanças. Em relação a presença das torcidas nos estádios brasileiros existe uma restrição em clássicos paulistas, a chamada torcida única. A violência é frequentemente vista apenas como uma condição dos torcedores, especialmente dos torcedores que pertencem às Torcidas Organizadas, mas, como apontado nesse texto, a violência por parte dos policiais também está presente há muito tempo. Quanto mais tentamos avançar nas soluções dos problemas, mais retrocedemos com as opções escolhidas. Parece que a chave avanço acoplada ao retrocesso é um elemento presente há muito tempo na conjuntura da América do Sul.

[1] Folha de S.Paulo, 26 de maio de 1964, capa.

[2] Folha de S.Paulo, 26 de maio de 1964, p. 8.

[3] O Estado de S.Paulo, 26 de maio de 1964, capa.

[4] Idem.

[5] Peru sepulta os mortos sem presença da Polícia. Jornal do Brasil, 27 de maio de 1964, capa.

[6] Lima: exercito contem nas ruas povo revoltado. Folha de S.Paulo, 26 de maio de 1964, p. 11.

[7] Argentina e Peru lutam pelo 1o. lugar. O Estado de S.Paulo, 24 de maio de 1964, p. 28.

[8] Mortos na tragédia passam de 400. Jornal do Brasil, 26 de maio de 1964, capa.

[9] Reina grande tensão em Lima; o govêrno suspende garantias e instaura rigoroso inquérito. O Estado de S.Paulo, 26 de maio de 1964, p. 2.

[10] Idem.

[11] Morreram na capital peruana 328 pessoas; os sepultamentos das vítimas começaram ontem. O Estado de S.Paulo, 27 de maio de 1964, p. 2.

[12] Papa Paulo VI manda mensagem de pêsames e jornais comentam Lima. Jornal do Brasil, 27 de maio de 1964, p. 16.

[13] Brasil e Peru decidem no Maracanã quem vai a Tóquio com a Argentina. Jornal do Brasil, 8 de junho de 1964, p. 32.

[14] Brasil vai a Tóquio com vitória fácil. Jornal do Brasil, 9 de junho de 1964, p. 15; Brasil venceu e vai a Tóquio. O Estado de S.Paulo, 9 de junho de 1964, p. 20.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. A maior tragédia da história do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 26, 2017.
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