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Muito além do Projeto México: a militarização da seleção brasileira nos anos 1970

Miguel Enrique Stédile 27 de outubro de 2021

“O Brasil não pode perder a Copa de 1970. Temos que ganhá-la através da disciplina, de muito treinamento, hierarquia e patriotismo”.

Mais do que uma sentença, a frase do general Costa e Silva numa audiência com João Havelange e os dirigentes da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), em 1968, era uma questão de sobrevivência para ambas as instituições. A perda popularidade unia a Ditadura Civil-Militar e a Seleção Brasileira naquele ano.

Os militares não apenas não haviam cumprido a promessa de permanecer temporariamente no governo, como haviam fechado o regime com o nefasto Ato Institucional número 5. Já a participação da Seleção na Copa do Mundo anterior, em 1966, fora um verdadeiro caos, atribuído a má gestão de João Havelange nos cofres da CBD e a frente da chefia da delegação na Inglaterra.

Indiscutivelmente, o Projeto México é o principal marco histórico para o estudo da militarização do selecionado brasileiro. Entretanto, como procurei defender na minha tese de doutorado – “Aqui sangraram pelos nossos pés: Futebol, política e identidade nacional na Ditadura militar (1974-1985)” (História UFRGS) – este não foi o ápice, mas o primeiro episódio de um fenômeno mais complexo.

Até então, a Seleção Brasileira ainda não se encontrava incorporada ao projeto ideológico dos militares, afinal a CBD compartilhava do mesmo projeto de sociedade da elite tecnocrática, financeira e militar que dirigiu o Estado na Ditadura. Para ambos, os subalternos (o povo ou o jogador de futebol) devem ser educados e disciplinados por uma elite culta em direção à ordem. Neste sentido, a Seleção Brasileira não foi, até 1968, objeto de preocupação dos ditadores, que se distanciavam do futebol, por considerarem um símbolo da propaganda “populista” dos governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Na medida em que a gestão de Havelange na CBD revela-se um desastre nos cofres e nos campos, somada aos ímpetos totalizantes do regime e a profunda aversão aos civis pelo núcleo militar, o processo de militarização avança gradualmente. Desta forma, a militarização da Seleção Brasileira, a militarização da CBD ou o uso político do futebol são dimensões de um mesmo projeto, a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) nos esportes, mas que possuem certo grau de independência entre si, tempos e pesos distintos de implementação.

A militarização seria conformada pela combinação de uma série de elementos: a exigência do comportamento disciplinar do atleta correspondente a de um soldado – que já estava presente tanto nas políticas do Estado Novo para o esporte, quanto no Plano Paulo Machado de Carvalho em 1958 ; no papel que cumpriria a educação física tanto como formadora do caráter moral e cívico e, ao mesmo tempo, portadora do discurso tecnocrata da cientificidade aplicada; no controle sobre a Comissão Técnica da Seleção; no financiamento das atividades da Seleção e da CBD pelo Estado; na apropriação da gestão da Confederação Brasileira dos Desportos, além de controlar outras instâncias esportivas, como o Conselho Nacional de Desporto; e, por fim, justamente aquele pelo qual a Ditadura de Segurança Nacional é frequentemente associada ao Futebol e à Seleção Brasileira, a apropriação e instrumentalização propagandística destes símbolos e seus valores pela Ditadura.

No Projeto México, estes elementos estão presentes mesmo durante o breve comando de João Saldanha, com a presença dos capitães Cláudio Coutinho, Kleber Camerino e Benedito José Bonetti, egressos da Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx), como preparadores físicos, enquanto o subtenente Raul Carlesso era responsável pela preparação dos goleiros. Também está presente o financiamento público e privado do Projeto. E às vésperas da Copa do Mundo, João Havelange convidou o major-Brigadeiro Jerônimo Bastos, presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), para a chefia da Comissão Técnica, aumentando a presença militar, mas também entregando a gestão da delegação.

Brasil Copa 70
Fonte: Wikipédia.

Estes elementos serão acentuados nas Copas seguintes, incluindo normas disciplinares e comportamentais em 1974 e 1978 e atingindo seu ápice na Copa disputada na Argentina, onde além do comando do Capitão Cláudio Coutinho, a ditadura controlava ainda a própria CBD com o Almirante Heleno Nunes e a manutenção do major-brigadeiro Bastos no CND.

Cabe ainda destacar que o caso brasileiro não encontra correspondência equivalente em grau de militarização com as outras Ditaduras sul-americanas do mesmo período. Argentina, Chile e Uruguai também utilizaram o futebol como mecanismo de legitimação de suas Ditaduras, em especial, através da organização de eventos esportivos, como a Copa de 1978 na Argentina e o Mundialito de 1981 no Uruguai, e na exigência de sucesso nos resultados esportivos nos três casos. Entretanto, a Ditadura brasileira estabeleceu níveis autoritários de controle superiores ao de qualquer regime totalitário sul-americano, quiçá só comparável ao nazifascismo europeu.

Porém, um único agente não é capaz de determinar monoliticamente uma identidade. Especialmente, com a complexidade com que se articula e se constitui uma identidade nacional. Ao contrário, esta identidade só é sedimentada se for necessariamente validada por grande parte da população em qualquer hipótese. Em suma, não há identidade nacional sem repercussão popular e base material. Desta forma, a conquista do tricampeonato mundial estava em conjunção com outros dois fatores intrínsecos, o milagre econômico e o apoio da classe média à Ditadura.

Seleção 1970
Seleção Brasileira de 1970. Fonte: CBF

Por isso, ainda, os estudos sobre a militarização do futebol no período devem dar especial atenção, assim como aos jogadores e a mídia, ao torcedor. Este sujeito que é, em última instância, o validador desta identidade. E ao observar seu comportamento, considerar que em regimes autoritários, as formas de resistências tendem a se manifestar de formas menos abertas, de acordo com as margens de negociação e segurança possíveis. Como fica explícito no testemunho contemporâneo de Paulo Francis para o jornal Pasquim:

A multidão nas ruas, depois das vitórias brasileiras na Copa do Mundo, estariam somente celebrando o futebol? Nada de comparável aconteceu em 1958 e 1962. Nem o fato do Tri ou da posse definitiva da taça explicam de todo a arruaça, pois arruaça foi. Havia algo mais, óbvio e inconsciente. Desde 1964, esta foi a primeira vez que o povo se sentiu unido em torno de um objetivo nacional. A inexistência de veículos de extravasão política, o tédio, o medo, e a miséria da vida do Brasil de hoje encontraram um antídoto nos nossos 11 jogadores em campo. Eles saíram daqui desmoralizados como nós. Lá fora, se reencontraram, talvez porque livres da nossa opressiva atmosfera doméstica, e a gente, por procuração, partilhou esse estado de espírito. Agora acabou, mas ficaram alguns sinais na parede para quem sabe lê-los. (O PASQUIM, n. 54, 1970, p.25)

Se a militarização foi bem sucedida nos anos 1970, nas Copas seguintes, a Ditadura não demonstrará a mesma competência em apresentar bases materiais para o ufanismo. O efêmero Milagre esgotou-se e, em seu lugar, estabeleceu-se uma enorme crise econômica. Por sua vez, a gestão do almirante Heleno Nunes será notoriamente vinculada ao descontrole nos gastos e do uso político da CBD. Mas, principalmente, dentro de campo, a tecnocracia desfiguraria o futebol brasileiro e perderia o aval do torcedor. E não tardaria para o descontentamento das arquibancadas chegar às ruas, num processo em que, mais uma vez, a identidade nacional é reconstruída e ressignificada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Miguel Enrique Stédile

Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de "Da Fábrica à várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre" (Prismas, 2015) e co-autor de "À sombra das chuteiras meridionais: uma História Social do futebol (e outras coisas...)" (Fi,2020).

Como citar

STéDILE, Miguel Enrique. Muito além do Projeto México: a militarização da seleção brasileira nos anos 1970. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 40, 2021.
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