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Neymar e o (novo) capitalismo selvagem

Após quatro anos defendendo o Barcelona Neymar resolveu procurar, segundo ele, novos desafios na sua carreira. As especulações que surgiram dias antes do anúncio oficial de sua saída do Barcelona versavam sobre o futuro de Neymar, os valores envolvidos na transação e o questionamento se seria interessante para a sua carreira a transferência para o Paris Saint Germain (PSG).

Não quero entrar no debate dessas especulações por entender que seja improdutivo. Minha proposta nesse texto é acessar o que está em jogo no mundo do futebol quando um atleta como Neymar (juntamente com o seu staff) decide sair de um grande clube como o Barcelona para se transferir para uma Liga que não está no centro do mapa europeu mesmo possuindo grandes jogadores por lá.

Segundo os dados da Deloitte[1] entre os 20 clubes mais ricos do mundo em 2017 existe apenas um clube francês: o Paris Saint Germain. Os dados são referentes a temporada 2015/2016 e o PSG é o sexto clube mais rico com uma receita de 520 milhões de euros. As cinco primeiras colocações são ocupadas, respectivamente, por Manchester United (689 milhões de euros), Barcelona (620,2 milhões), Real Madrid (620,1 milhões), Bayern de Munique (592 milhões) e Manchester City (524,9 milhões).

É, portanto, a partir desses dados que quero discutir a transferência de Neymar a partir de um (novo) capitalismo selvagem. É exatamente a partir dessa dimensão do capital que quero analisar essa transferência e com ela os aspectos que fornecem elementos contraditórios que colocam em constante tensão a dimensão afetiva e de amor dos torcedores com a profissão de jogador de futebol.

O assunto a ser discutido não é a clássica dimensão do capital em que as grandes empresas de países desenvolvidos exploram a mão-de-obra barata em países subdesenvolvidos. Pelo contrário, esse novo capitalismo selvagem do qual o futebol está inserido refere-se ao contexto em que empresas e, nesse caso, clubes de futebol que possuem grandes receitas e por meio do capital captam jogadores mesmo de clubes de futebol com capital superior ao seu. Vamos aos fatos.

Em outubro de 2016, Neymar havia renovado o seu contrato com o Barcelona até 30 de junho de 2021. A multa estipulada naquele momento era progressiva e previa uma multa de 200 milhões de euros para o primeiro ano, 222 milhões para o segundo ano e 250 milhões para o terceiro ano de contrato[2]. Como o contrato foi rescindido no segundo ano, o PSG teve que desembolsar a quantia de 222 milhões de euros. Com a transferência tornou-se o jogador mais caro da história do futebol.

cheque
O cheque de 220 milhões de euros. Foto: Reprodução.

No mundo do futebol não existe problema algum em dizer que um jogador foi comprado, que outro foi vendido, que existe um investidor interessado. São mercadorias e como tais podem circular mediante a dinâmica de compra e venda. Nessa dinâmica o que move a circulação não é a paixão. São as negociações financeiras e com elas uma série de pessoas que fazem parte desse cenário, tal como agentes, empresas que exploram a “marca” do jogador e o atleta.

É óbvio que nesse momento da carreira de Neymar o dinheiro não seja uma questão tão fundamental como era no início quando ele era apenas um “bem que poderia ser valorizado com o tempo”. Hoje ele e sua família possuem uma vida confortável do ponto de vista financeiro. Mas isso não exclui – mesmo que ele tenha dito que não foi para o PSG por causa do dinheiro – que o capital é parte da estrutura da qual todos nós e inclusive Neymar fazemos parte.

Para entender em que lugar quero chegar é preciso relembrar que Neymar saiu do Santos para o Barcelona em 2013. Essa contratação foi investigada, na quarta seção da Procuradoria da Audiência Nacional da Espanha, por fraude e corrupção e envolveu o presidente do Barcelona, Josep María Bartolomeu, o ex-presidente Sandro Rossell (preso em maio de 2017[3]), o pai e a mãe de Neymar[4]. Em dezembro de 2016, o Barcelona fez um acordo com o Ministério Público e pagou uma multa referente a dois crimes fiscais contra a Fazenda Pública no valor de 5,5 milhões de euros (20,3 milhões de reais). Esse fato evitou uma punição aos dirigentes do clube[5].

Naquela época a transação do Barcelona para tirar Neymar do Santos foi de 86,2 milhões de euros (284,5 milhões de reais) em que a maior parte dessa negociação ficou com a empresa do pai de Neymar, a N&N, que recebeu 132 milhões de reais e aos agentes coube 8,9 milhões de reais[6]. Portanto, se fossemos considerar somente essa transação podemos dizer que o negócio foi bom para ambas as partes.

Um clube como o Barcelona não investiria tal quantia em um único jogador se possuísse um alto grau de risco. Claro, o atleta poderia ter se lesionado, mas para isso existem os seguros para que o clube não perca em nenhum momento o que investiu. Salvo essa condição, a certeza dos lucros nessa dimensão futebolística faz com que transações financeiras desse tipo sejam apenas um investimento.

Ao contratar um jogador de expressão como o Neymar e que possui uma grande mídia interessada em acompanhar seus atos tudo o que se referisse a ele se tornaria um bom negócio para o clube. Aqui vale um argumento que talvez crie um certo olhar de estranhamento. Nessa estrutura da qual Neymar faz parte, comandada pelo capital, mesmo diante de tais valores de seus contratos podemos afirmar que Neymar ganha pouco em termos de retorno financeiro diante do que produz quando comparado com quem explora sua força de trabalho. As marcas que representa lucram muito mais do que Neymar. Nessa dimensão um depende do outro. Neymar não teria o salário que tem se essas marcas não quisessem ganhar dinheiro com a sua imagem e as marcas, por sua vez, não venderiam tanto se não tivessem Neymar como garoto-propaganda.

A chegada ao Barcelona representava a lua de mel de Neymar. Jogaria em clube reconhecido mundialmente. O Barcelona como se auto-intitula é “Mais do que um clube”. Neymar teria a chance de jogar ao lado dos maiores atletas da atualidade, Neymar, Xavi e Iniesta e, depois, com Suárez. Sem contar, é claro, Daniel Alves seu amigo inseparável. Os quatro anos foram de muitas conquistas. Essa dimensão da amizade com Daniel Alves voltará a ser próxima já que os dois vão defender, novamente, o mesmo clube. Segundo Daniel Alves:

O Ney que teve muita influência na minha vinda pra cá. Foi Neymar quem me indicou no PSG e sou muito grato a ele. Se ele me indicou, acho que é porque queria vir. Não sei se é um plano, mas foi o que aconteceu.

04/08/2017- França- Neymar treinou pela primeira vez com os novos companheiros na tarde desta sexta-feira e demonstrou entrosamento com os velhos amigos Foto: C.Gavelle / PSG
Em seu primeiro treino Neymar reencontrou o seu amigo Daniel Alves. Foto: C.Gavelle/PSG.

O dinheiro investido pelo Barcelona retornou por meio dos títulos conquistados no período, nove ao todo com Neymar defendendo o clube e 186 partidas disputadas, com a exposição que o clube possui na mídia e com os parceiros comerciais que injetam muito dinheiro por lá[7], colocando o clube, segundo os dados apresentados da Deloitte como o segundo clube mais rico do mundo.

Essa relação de amor ao clube foi rompida quando a dimensão do capital apareceu novamente. O PSG aceitou pagar a multa rescisória ao Barcelona para ter o jogador brasileiro em seu elenco. A imprensa espanhola e os torcedores do Barcelona consideraram uma traição do atleta. Como ele poderia fazer isso? Deixar um clube como o Barcelona para ir jogar no PSG?

Sendo mercadorias os jogadores circulam por onde o capital os levar. Nessa dimensão profissional a paixão e o amor por algum clube podem até existir, mas não são determinantes para a permanência do jogador. Em que pese o vídeo de Neymar para divulgar sua paixão pelo clube, pela Catalunha e por ter feito parte da história do clube ao mesmo tempo ele revela o quanto Neymar é produzido nos bastidores. O vídeo (abaixo) começa com o jogador olhando para o seu celular e na sequência sua fala é ilustrada com imagens e um texto em inglês. Nada em Neymar aparece por acaso.

https://www.youtube.com/watch?v=bgVu1-NmE1Y

Não quero com isso dizer que Neymar tenha sido falso em seu discurso. Quero pontuar que diante do clima gerado pela sua saída que ele não poderia assumir outro discurso que não o de agradecimento. Ele também aponta que precisava de novos desafios. Não duvido, mas entendo que não era somente isso.

Nessa lógica, o seu salário aumentou (40 milhões de euros/ano, no Barcelona era de 15 milhões + 8 em bônus), além de passar a ser garoto-propaganda da Copa do Mundo do Catar (60 milhões por temporada até 2022) fazem parte do seu interesse em buscar novos ares[8]. Também apontou, na coletiva de imprensa de sua apresentação ao PSG, que não ia para o clube francês para ser a estrela. Que nunca buscou essa condição. Embora tenha dito isso, no Barcelona o grande astro era Messi, e essa condição sempre foi atribuída a Neymar desde os seus tempos do Santos.

O interessante é notar como a imprensa e os torcedores do Barcelona ficaram bravos quando o seu clube se deparou com uma ação que ele promove nos mais diversos centros futebolísticos. Ao mesmo tempo em que o Barcelona diz que desde a suas categorias de base existe uma filosofia de jogo trabalhada e que esses jogadores passam a integrar, em algum momento, a equipe principal, ele também compra jogadores de outros clubes. Diante do seu poder de compra os clubes localizados, especialmente, em centros futebolísticos que possuem uma outra estrutura financeira as propostas do clube catalão se tornam irrecusáveis.

O que talvez o Barcelona não esperava era ser, um dia vítima, de sua própria estratégia de comprar jogadores renomados e que podem gerar muita visibilidade e retorno financeiro ao clube.

Nessa dinâmica de compra e venda cada vez mais selvagem, para me referir ao título do texto, o capital dita as regras do jogo. A transação pode ter gerado descontentamentos internos no clube, mas no final das contas o clube vai olhar para o saldo do investimento do seu negócio que começou em 2013 e terminou em 2017. Perceberá que não perdeu dinheiro, mas talvez, ficará com a sensação que poderia lucrar mais do que o valor da multa paga pelo PSG.

04/08/2017- França- Neymar já está em sua nova casa. O atacante foi apresentado oficialmente nesta sexta-feira como jogador do Paris Saint-Germain e concedeu a primeira entrevista coletiva como atleta do clube, ao lado do presidente da equipe, Nasser Al-Khelaifi. Foto: C.Gavelle / PSG
Neymar já está em sua nova casa. O atacante foi apresentado oficialmente nesta sexta-feira como jogador do Paris Saint-Germain e concedeu a primeira entrevista coletiva como atleta do clube, ao lado do presidente da equipe, Nasser Al-Khelaifi. Foto: C.Gavelle/PSG.

O PSG, por sua vez, sabe que o retorno ao seu investimento será uma questão de tempo. Uma dimensão dessa certeza pode ser comprovada por dois fatos: a exposição que o clube ganhou na mídia após o anúncio da contratação e da quantidade de camisas com o nome do jogador brasileiro vendidas em seis horas (10 mil camisas vendidas a 100 euros gerou um faturamento de 1 milhão de euros)[9].

Isso não quer dizer que as portas para os brasileiros estejam fechadas no clube da Catalunha. Basta ter um jogador que cumpra os requisitos do negócio lucrativo que a negociação será feita para aparecerem novos brasileiros por lá. Se esqueceu que a mercadoria não tem pátria? Amor? Esqueça! Ela tem um preço, apenas.

[1] https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/uk/Documents/sports-business-group/deloitte-uk-sport-football-money-league-2017.pdf

[2] https://www.fcbarcelona.com.br/futebol/time-principal/noticias/2016-2017/neymar-jr.-assina-sua-renovacao-com-o-fc-barcelona-ate-2021

[3] http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/executivo-amigo-de-teixeira-ex-presidente-do-barca-conheca-sandro-rosell.ghtml

[4] http://espn.uol.com.br/noticia/672694_justica-espanhola-confirma-processo-contra-o-barcelona-por-fraude-na-contratacao-de-neymar; https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/04/deportes/1493905731_260674.html

[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/02/deportes/1501660136_435053.html

[6] http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/2014/01/fim-do-misterio-barca-explica-como-realizou-contratacao-de-neymar.html

[7] https://www.fcbarcelona.com.br/futebol/time-principal/noticias/2016-2017/neymar-jr.-assina-sua-renovacao-com-o-fc-barcelona-ate-2021

[8] Neymar vai ganhar mais de R$ 377 milhões por ano no PSG

[9] http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-frances/noticia/torcedores-do-psg-esgotam-10-mil-camisas-de-neymar-em-apenas-seis-horas.ghtml

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Neymar e o (novo) capitalismo selvagem. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 7, 2017.
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